Era Bella e estava pálida como uma folha de papel em uma das mãos trazia um copo marrom e na outra, uma pequena sacola de pano. Ela entrou correndo pela porta, sem olhar para Habel enquanto passava, abaixou-se e tomou Khain em seus braços. O abraço foi forte e apertado, durando um longo e pacato momento. Habel fechou a porta e Bella ainda não o havia soltado.

— Me diz que você está bem. – murmurou baixinho, ainda com o corpo colado ao do garoto.

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— Estou. Juro que estou. Não foi nada demais. – disse Khain, forçando a voz o mais suave possível. Ele estava cansado, nauseado e sua visão escurecida. Sentia-se fraco, mas não queria demonstrar isso para a garota.

— Eu tive um sonho. Estava tendo ele quando o Habel me acordou e contou o que aconteceu.

Khain respirou fundo e olhou nos olhos da garota. Havia algo ali, cintilando naquele quarto escuro. Os olhos, profundos e intensos, estavam marejados de lágrimas e o garoto, apreensivo, passou o dedo na parte inferior da pálpebra da garota, limpando.

— Quer contar?

Após passar a manga da blusa nos olhos para limpar as lágrimas, fechou os olhos e abaixou a cabeça. Abaixou tanto que se encostou ao peito do garoto e ali ficou parada, imóvel.

— Tinha um cara de cabelo vermelho e, sei lá, chifres. E você estava na frente dele e os dois estavam rodeados por umas sombras. As sombras estavam de pé e falavam uma língua estranha. Eu também estava ali, mas um pouco longe e você, bom, você estava sangrando. – ela parou e respirou fundo. Levantou a cabeça e encarou Khain nos olhos. – Esse negócio que você tem no braço estava sangrando. Sangrando muito. Você soluçava de dor e o cara de cabelo vermelho veio na minha direção. Eu não conseguia me mexer ou correr ou gritar, aí ele pegou no meu pescoço e me cheirou.

Preocupado, Khain passou a mão no rosto de Bella, acariciando-a com cuidado, depois a rodeou com o braço e acariciou o cabelo da garota. Ela sonhou com Bael e comigo. Óbvio que não é coincidência. Ele deve ter feito isso de algum jeito.

— Ele me cheirou de um jeito esquisito, parecia um animal. Um cachorro, eu acho. Não, parecia um lobo, mas um pouco mais forte. Talvez um javali. Tipo aquele Javali que teve pra jantar naquela virada de ano. Só que um pouco menos... – Ela dizia, então olhou para Khain e abriu um sorriso tímido. – Desculpa. Então, ele chegou perto de mim. Perto do meu rosto, como se fosse me beijar e disse: Eu conheço você. O Khain achou que podia me enganar, mas assim ele engana a si mesmo. Diz pra ele que ele acabou de matar você.

O garoto abraçou Bella com força. Merda. Eu sou um idiota.

— Khain, o que tem naquela floresta que eu não sei?

O garoto fechou os olhos e balançou a cabeça. Não queria envolver Bella naquilo, mas havia acabado de envolver. Uma enorme culpa cresceu no interior de Khain e imediatamente ele percebeu que aquilo era um aviso. Bael estava ficando impaciente e queria mais sacrifícios.

Os dois comeram em silêncio durante algum tempo. Bella inclinou-se para trás e encostou as costas no peito de Khain. O garoto sentiu o coração palpitar um pouco mais rápido e torceu para que ela não percebesse.

— O velho Gaer vai mandar te crucificar se souber que você estava na floresta de novo. – disse Bella, dando um gole no líquido do copo e depois o colocando na mão de Khain.

Khain deu um pequeno gole no interior do copo e o líquido revelou-se suco de laranja. Estava um pouco amargo, mas estava gostoso e não queria que a garota achasse que ele não gostou e, por isso, deu outro gole.

— É por isso que você não vai contar pra ninguém, né? – perguntou Khain, dando uma nova mordida no bolo.

— Você quer que eu guarde todos os seus segredos? Sabe que pra isso, eu preciso saber todos os seus segredos, né?

O garoto tossiu um pedaço do bolo e a garota se mexeu enquanto o peito de Khain se movia com a tosse. Ela riu baixinho.

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— Se contar tudo, eu vou perder o ar de homem misterioso que você tanto gosta.

Bella inclinou o corpo e virou-se, encarando Khain nos olhos. Seus olhos eram escuros e vastos, repletos de uma meninice brincalhona. Ela se aproximou e beijou Khain nos lábios. O garoto, apesar de tudo, sentiu o rosto corar um pouco e agradeceu por o quarto estar escuro o suficiente para que Bella não percebesse.

— Promete que não vai se meter nessas coisas malucas que você se mete? Eu fiquei preocupada. Eu estava tendo esse sonho no exato momento em que o Habel me acordou e contou que você tinha desmaiado.

Khain engoliu saliva e olhou para o lado onde a pequena chama iluminava o quarto. Bella se virou e encostou novamente no peito do garoto.

— Eu não posso prometer isso. De certa forma, eu estou preso em uma coisa e não tem como fugir. – comentou, enquanto levantava o braço e passava os dedos nos cabelos de Bella. Estavam cheirosos e limpos. Ela deve ter lavado pra vir me ver. O garoto achou engraçado o fato de, mesmo ela estando tão assustada, ainda tomou banho antes de ir vê-lo.

— Então deixa eu te ajudar. – disse ela, com a voz baixa.

— Eu não posso. Não quero te envolver nisso. Não mais do que você já está envolvida.

— Então esse sonho tem mesmo um fundo de verdade, não é? – perguntou ela, com um leve espanto na voz. Após o garoto assentir com a cabeça, ela virou-se novamente e se aconchegou no peito do garoto como estava antes. – Eu gosto de você e me preocupo. Queria que você dividisse tudo comigo e me contasse pelo que passa. Me dissesse o que tem de errado com aquele lago na floresta. Me falasse sobre essa coisa estranha no seu braço que cada hora está de um jeito. Eu queria saber mais sobre o que está acontecendo com você para que você esteja agindo tão esquisito. Não por curiosidade, mas pelo simples fato de que eu quero estar nisso com você, seja o que for. Eu quero estar ao seu lado.

Khain nunca havia visto este lado sentimental de Bella e isso o pegou desprevenido. Ela nunca foi do tipo amoroso ou carinhoso, mas ali, naquele quarto escuro, abraçado com ela, sentiu um carinho que jamais havia sentido antes e sorriu ao saber que por baixo daquela casca dura, ela era uma garotinha carinhosa e amável. Talvez só não gostasse que os outros soubessem.

— É perigoso. – começou Khain, então fechou os olhos e respirou fundo. – Olha. Eu tenho um contrato com uma coisa e se eu não levar pessoas para o lago no meio da floresta periodicamente, coisas ruins vão acontecer. E, se eu levar, coisas boas vão acontecer. É simples, na verdade.

Bella não disse nada, apenas continuou ali, respirando calmamente. Não pareceu assustada ou impressionada. Ela era tranquila e isso acalmava Khain.

— Ele tem olhos e ouvidos em todo o lugar, então eu não posso falar mais do que isso. Se eu falar, tenho medo do que possa acontecer com você.

A garota então se mexeu e se desencostou de Khain enquanto abraçava os próprios joelhos e ficava de costas para o garoto.

— Você é um idiota, Khain.

Os dias seguintes foram muito calmos. A masmorra estava tranquila e nada mais de esquisito aconteceu. A neve caia incessante na ilha toda e por isso a maior parte das atividades e trabalhos eram feitos dentro da masmorra. Khain cuidava dos cachorros quase todos os dias e Habel ajudava fazendo todas as outras atividades. Estava na cara que ninguém queria que Khain se esforçasse muito. Estavam todos preocupados com o garoto e nada do que ele dizia mudava isso.

Os garotos encontraram Qanah’hyr algumas vezes, mas ele sempre dizia estar ocupado demais para conversar e que, com o tempo, ele explicaria tudo para os dois. Esse dia não chegava nunca e Khain, bravo, sabia que a pressa toda do sujeito era um simples pretexto para não falarem sobre o ocorrido na floresta, já que ele não fazia nada na masmorra. Qanah’hyr revelou-se um homem pacato, pelo menos quando não estava bebendo, e também muito preguiçoso. Procurava mil desculpas para não trabalhar e Turka, um dos lenhadores, estava começando a se enfurecer com a quantidade de vezes que Qanah’hyr o despistava na hora de cortar madeira para os fogões.

Laura estava cada vez mais distante de Khain, Habel e Bella, mas por algum motivo, sempre parecia estar conversando com Fetz em algum lugar. Khain não ligava muito para isso e também não tinha o direito de ligar. A essa altura, todos já sabiam que ele e Bella estavam juntos, mas ninguém dizia nada. Bom, pelo menos não na frente de um dos dois.

Bella, com o tempo, revelou-se uma grande leitora. Ela tinha vários livros escondidos entre suas coisas que Khain não fazia ideia de que existiam. Eles nunca haviam conversado sobre isso antes e agora passavam horas trancados no quarto lendo os livros emprestados um do outro. Ela também gostava de desenhar e tornou-se corriqueiro aparecer um desenho pela manhã no chão do quarto de Khain, deixado por baixo do vão da porta. Eram quase sempre caricaturas dos dois em situações inusitadas e o garoto os guardava dentro de um livro para que não amassassem. Ela tentou lhe ensinar a desenhar e mesmo ele não sendo muito bom, gostava de passar esse tempo com a garota.

Habel não parecia se incomodar com a relação dos dois e isso deixava Khain extremamente aliviado. Habel era o melhor amigo de Khain e ele não queria que isso fosse estragado. Os três passavam muito tempo juntos e ninguém parecia se importar do garoto passar tanto tempo com o casal. Eles não achavam isso incômodo e Habel sabia quando deixar os dois a sós, então tudo funcionava perfeitamente bem.

Khain estava mergulhado em um sono profundo quando escutou alguém bater a sua porta. Despertou bruscamente e coçou os olhos até a vista desembaçar. Bocejou e, quando foi se levantar, percebeu que Bella estava aninhada ao seu lado, ainda dormindo. Havia esquecido que ela estava ali, então se ergueu com cautela, precavendo-se para não acorda-la. Ainda bem que ela dorme igual um morto.

A batida soou novamente e Khain, após uma careta, se apressou para abrir a porta com receio de que a garota acordasse. Lembrou-se de um livro que Bella tinha sobre um homem que reanimava cadáveres mortos e sorriu.

Abriu a porta cuidadosamente, o que não impediu que a dobradiça fizesse o barulho de sempre, e encontrou Habel parado do lado de fora do quarto. Ele vestia uma roupa esverdeada e bonita e seus cabelos estavam penteados para trás com cuidado.

— Se arruma. – disse ele, ver o amigo seminu. – Vai vestir alguma coisa. O Qanah’hyr disse que precisa falar com a gente.

Era esse o momento que Khain estava esperando há tanto tempo. Finalmente teria explicações sobre o que ocorreu naquela floresta e isso, pelo menos da sua perspectiva, era extremamente excitante.

Apressado, se arrumou como pôde sem deixar a luz da porta chegar até Bella. Pegou duas maçãs que havia separado em um pano. Uma, colocou uma em cima das roupas da garota e a outra enfiou no próprio bolso.

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Após colocar sua camisa, pegou um papel e escreveu um pequeno bilhete para quando a garota acordasse. “Tive que sair. Espero que tenha dormido bem. Tem uma maçã em cima das suas roupas.“

Fechou a porta cuidadosamente ao sair e novamente isso não adiantou para que o rangido da fechadura não gritasse.

— Eu o encontrei enquanto ia tomar banho. Ele pediu pra eu te chamar, pois não fazia ideia de onde eram nossos quartos. – comentou Habel, enquanto os dois caminhavam pelos corredores da masmorra. – Ele disse pra irmos até o quarto dele e, sei lá, quem escolheria uma cela no terceiro andar da masmorra pra ficar?

Khain fez uma careta e, após tirar a maçã do bolso e dar uma grande mordida, respondeu.

— Sei lá. Ele é maluco.

— Um maluco perigoso. – completou Habel, virando uma curva do corredor de pedra.

— Sim. Tenho que concordar.

Havia algo naquele sujeito que deixava Khain inquieto. Era óbvio que ele era de um lugar muito distante, levando em conta o leve sotaque em sua voz e o jeito esquisito de se comportar. Os costumes dele eram estranhos. Khain já o viu bater no chão com o pé esquerdo duas vezes antes de abrir uma porta ou sussurrar algumas palavras antes de comer. Mas mesmo assim, havia mais alguma coisa que Khain não sabia distinguir. Talvez fosse só a vontade do garoto de conhecer algo diferente, mas ele não conseguiria explicar bem. Era a mesma coisa que o levou a correr atrás daquele cão no fatídico dia em que conheceu Bael. Era a mesma coisa que o fez entrar naquele mato e encontrar Bella sendo atacada.

Os dois garotos estavam indo cada vez mais fundo na masmorra. A masmorra era um lugar assombroso e gigantesco, com inúmeras escadarias desciam quase que infinitamente, sempre indo em direção ao centro do mundo. Ninguém nunca desceu muito, pois nunca houve um motivo muito claro pra isso. Sempre havia uma história ou outra entre os moradores da ilha sobre fantasmas ou alguém que se perdeu lá e nunca mais voltou, mas sempre pra assustar criancinhas. O fato é que a masmorra era antiga. Muito antiga e havia nela coisas que ninguém nunca saberia. Que ficariam lá até o mundo acabar, pois ninguém se atrevia a entrar tão profundamente naquele labirinto.

Ninguém sabia ao certo o que ela havia sido anteriormente. Não havia qualquer registro escrito sobre o passado do local e tudo o que se sabia era passado oralmente. Nunca houve motivo algum para que fosse escrito algo sobre o lugar, então a maioria das pessoas apenas ignorava o passado daquelas escadarias, salões e celas. As histórias mais antigas diziam que era uma cadeia abandonada onde os criminosos do continente eram mantidos. Outras histórias, mais antigas ainda, diziam que o local não era obra do homem, mas sim de criaturas das profundezas do abismo que construíram o local como um caminho até o mundo dos mortais.

Habel não sabia a verdade, conhecia bastante da masmorra. Khain nunca entendeu bem o motivo, mas o amigo gostava de lá. Antigamente passava o dia inteiro desaparecido e, quando todos estavam preocupados, ele aparecia, todo sujo, dizendo que estava explorando. Era o único que gostava de perambular pelas escadarias do local e parecia ser o único capaz de descer pra além do terceiro andar sem usar uma corda para não se perder. Mesmo ultimamente ele não ter ido muito para lá, não parecia ter se esquecido dos antigos caminhos, pois guiava Khain sem parar um minuto sequer parar pensar, mesmo os corredores parecendo tanto uns com os outros.

Após um tempo de caminhada e mil conversas sobre assuntos banais, Khain ouviu no ar, em um som quase inaudível, um som ecoando pelos corredores. Conforme caminhavam, o som foi tomando forma e logo se revelou: uma música. Era uma gaita e Khain logo se deu conta de que era a gaita que havia afanado de Qanah’hyr quando o viu pela primeira vez.

— Ele disse que estaria por aqui... – comentou Habel, pensativo, investigando os quartos e celas vazios do corredor.

O som foi ficando cada vez mais alto, até que o garoto abriu uma das portas e, iluminado pelo fraco fogo de uma tocha, estava Qanah’hyr, sentado no chão com as costas apoiadas na parede, tocando sua gaita azulada. A melodia era triste e melancólica. Passava um aspecto solitário e cansado, mas logo parou.

Ele usava a capa negra habitual, mas dessa vez seu cabelo estava escondido por um chapéu pontudo, onde uma pena avermelhada enfeitava-o, erguida, presa por uma faixa. A cela era fria e escura, repleta de umidade e teias de aranha. Em um canto, havia vários sacos de pano amarrados, escondendo seu interior. Algumas velas de várias cores estavam postas sobre o chão, algumas de pé e outras deitadas, todas apagadas. Em todos os cantos, inclusive nas paredes e no teto, havia desenhos circulares e palavras estranhas escritas em lugares calculados milimetricamente para que ficassem simétricos no pequeno aposento. Num canto mais afastado, alguns livros, pena e papel estavam organizados com todo o carinho e cuidado do mundo, como se fosse um pequeno tesouro. Não havia cama.

Qanah’hyr levantou os olhos e encarou os garotos. Seus olhos estavam com uma aparência aborrecida, emoldurados por uma olheira profunda e escura.

— Vocês chegaram rápido. Achei que iam se perder e eu nunca mais os veria. – comentou, fazendo um gesto com a mão para que se aproximassem enquanto guardava a gaita no bolso com um cuidado meticuloso.

—Eu aposto que conheço a masmorra melhor do que você. – respondeu Habel, sentando-se de pernas cruzadas enquanto Khain se sentava ao seu lado.

— Eu sei que sim. – respondeu o homem, assentindo. Khain podia jurar que sentiu uma leve ironia na voz, mas não tinha certeza. – Bom, tenho uma coisa pra mostrar pra vocês. Espero que tenham dormido bem e não estejam cansados demais. – esta ultima parte foi dita olhando para Khain.

O garoto deu um leve riso tímido e balançou a cabeça. Devia ter se incomodado pela insinuação de Qanah’hyr, mas não se incomodou. Como ele sabe que eu dormi com a Bella?

— Escutem. – disse ele, aproximando o rosto do rosto dos garotos lentamente. - Vocês querem ir embora daqui? Da ilha?

Khain e Habel foram pegos de surpresa. Khain um pouco menos, pois quando se virou para olhar o amigo, ele pareceu completamente abismado. Era uma perspectiva que Khain já possuía pelo seu trato com Bael, mas Habel não. Talvez nunca tivesse pensado nisso com seriedade. Era um sonho distante, quase uma fantasia infantil.

— Quero. – Respondeu Khain, fazendo com que Habel rapidamente voltasse a si.

— Sim, quero. – Disse Habel, tropeçando nas próprias palavras. Sua voz soou trêmula e talvez um pouco confusa, o que fez Qanah’hyr abrir um pequeno sorriso.

Qanah’hyr se levantou lentamente e Khain pôde ouvir os ossos do sujeito estalando durante o movimento. Ele está nessa posição faz quanto tempo? Ele dormiu assim? O homem foi até um dos sacos largados no canto e se abaixou novamente os desamarrando.

— Eu posso tirar vocês daqui. Veja bem, só vocês dois. – dizia, enquanto puxava a corda que amarrava o saco e jogava para longe. – Portanto, vocês precisam guardar segredo sobre tudo que aconteceu naquele dia na floresta e de tudo que vai acontecer daqui em diante. Tudo que me envolva.

Preocupado, o pensamento de Khain imediatamente repousou sobre Bella. E, posteriormente, em Laura. Ele havia prometido tirar Laura da ilha e não podia se esquecer disso. Não iria sair de lá sem as duas garotas.

Qanah’hyr puxou uma pequena adaga de dentro da sacola e virou-se para os garotos. A adaga era muito bonita e bem decorada, adornada com um grande rubi no cabo, um pouco antes da lâmina, prateada e brilhante, cintilando sob a luz do fogo da tocha.

Habel rapidamente se inclinou para trás. Seus olhos sagazes encaravam a lâmina enquanto sua mão puxava da cintura, escondida pela roupa, uma pequena faca de serra.

— Que história é essa? – Perguntou, tirando os olhos da adaga e voltando-os para Qanah’hyr. Khain permaneceu imóvel, observando. – Você chama a gente aqui pro fim do mundo, conta uma historinha sobre sair da ilha e puxa uma faca esquisita? Todo mundo aqui sabe que sair da ilha é impossível. Só um navio muito grande conseguiria passar pela correnteza.

De fato, muitas histórias eram contadas sobre pessoas que chegavam à ilha e imediatamente começavam a construir um barco ou jangada para voltarem ao seu antigo lar. Nunca deu certo. Havia alguma coisa naquelas águas que não deixavam os tais barcos saírem da ilha. Quando alguém tentava, dias depois, restos do barco apareciam na beira da praia, presos na areia. Vez ou outra, dizem os mais velhos, o corpo também voltava.

— Fica calmo, menino. Eu não vou machucar vocês. – disse Qanah’hyr, enquanto virava o cabo da adaga para Habel, entregando-a. – E se eu quisesse, de fato, machuca-los, não ia ser essa sua faquinha escondida que ia me impedir.

Habel pegou o punhal da mão de Qanah’hyr e o observou com cuidado.

— Vocês precisam confiar em mim pra isso dar certo. Vão precisar. – dizia, enquanto caminhava para o lugar que estava sentado anteriormente e se abaixava. – Eu vim aqui por um motivo em específico. Não vim como vocês vieram ou como qualquer outra pessoa dessa ilha veio. Então confia em mim, vão vir me buscar quando tudo estiver terminado.

— Tudo o que? – dessa vez foi Khain quem falou, enquanto Habel devolvia o punhal para Qanah’hyr. O homem fez um pequeno gesto cínico de agradecimento.

— Vai soar esquisito, mas tem uma coisa naquela floresta. Esqueçam os andarilhos que encontramos ou aquele cachorro esquisito que o Khain chamou. – disse claramente nervoso, enquanto lançava um olhar acusador para Khain. – Tem um ser muito antigo e poderoso naquele lugar e eu preciso encontra-lo. Vocês o chamariam de demônio e, bom, ele deve uma coisa ao local que eu trabalho e eu vim pedir essa coisa.

Khain prendeu a respiração. Óbvio que ele falava de Bael.

— E o que a gente tem com isso? Você quer que a gente entre naquela floresta novamente? – perguntou Khain, com uma falsa afobação. Não queria que Qanah’hyr sequer suspeitasse do trato que tinha com Bael, pois o demônio saberia. Ele tinha certeza disso.

— Eu preciso da ajuda de vocês. – disse Qanah’hyr, respirando fundo. – Eu não pediria isso se não precisasse muito. Esse lugar, essa ilha, tem algo nela que me deixa mais fraco e eu não sei o que é. Tudo aqui é mais difícil pra mim. Sabe quando nós caminhamos por aquele local que eu pedi para que vocês fechassem os olhos? Aquilo foi absurdamente mais difícil do que seria em um lugar normal. Algo aqui devora a energia que faz esse tipo de coisa.

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Habel, desconfiado como é, encarava Qanah’hyr com um olhar pensativo. O garoto sabia que aquilo era algum tipo de magia. Khain tinha certeza disso, mas nem ele próprio acreditava muito nesse tipo de coisa até encontrar Bael. O amigo estava confuso e Khain queria poder ajudar, mas não podia.

— E, por Eltharys, como a gente pode te ajudar com isso? – Irrompeu Khain. Se tivesse duas formas de sair daquela ilha, ele tentaria as duas.

— Vocês são jovens. Claramente tem algo de errado com os dois, mas isso não importa. O que importa é que eu posso ensinar vocês algumas coisas úteis. Eu sou professor em um lugar muito longe daqui. Ou pelo menos era.

Khain imediatamente animou-se. Estava feliz com uma segunda oportunidade de sair da ilha, mas agora ficou mais feliz ainda. Sabia do que Qanah’hyr estava falando.

— Você vai ensinar a gente a fazer magia? – Habel perguntou, com uma voz preocupada e repleta de dúvidas.

Qanah’hyr puxou um pequeno pedaço de giz de um dos bolsos de sua capa e colocou na frente dos olhos dos garotos, arqueando as sobrancelhas para cima.

— Vocês podem chamar de magia, mas eu não. Lá na escola, nós temos nomes específicos pra cada tipo de magia. – a ultima palavra foi dita em uma entonação exacerbada. – Veja bem. Esse giz aqui é um giz comum, né? – os garotos assentiram com a cabeça. – mas se eu desenhar aqui no chão, veja só. – continuou, enquanto os garotos se afastavam um pouco e Qanah’hyr desenhava um estranho círculo com algumas formas geométricas dentro. Era um desenho complicado, mas o sujeito o desenhou com perfeição. O círculo estava perfeito, as retas estavam perfeitas, tudo estava perfeito. – agora se afastem mais.

Khain e Habel se levantaram e deram alguns passos para trás, então se entreolharam. Habel parecia completamente perdido, mas Khain sorriu. Então Habel abriu um pequeno sorriso no canto da boca enquanto ambos voltavam-se novamente para Qanah’hyr e seu desenho.

Aos poucos, uma voz foi preenchendo a sala, de um som quase inaudível até ficar alto como se viesse de todas as paredes. A voz era de Qanah’hyr, disso Khain sabia, mas estava diferente. Estava forte e ecoava de forma sobrenatural naquele pequeno quarto de pedra. A língua na qual falava era completamente nova para Khain, que não reconheceu uma palavra sequer.

Então, sem prévio aviso, o fogo da tocha se apagou, como se uma ventania tivesse invadido o local. Ali, na mais completa escuridão, uma pequena luz começou a crescer na frente dos garotos. O círculo emanava uma luz alaranjada como a da tocha e, de dentro dele, como se saísse de um lago, uma pequena criatura surgiu enquanto o circulo se apagou. Era um pequeno lagarto e estava em chamas. Não como se ele pegasse fogo, mas ele parecia ser feito de fogo, moldado pelas chamas que lhe davam vida. Qanah’hyr, iluminado pelas chamas da criatura, o observava com um sorriso no rosto, enquanto Khain e Habel, incrédulos, se aproximavam lentamente.

— Vocês podem chegar mais perto, ele não morde. – disse, enquanto os garotos se sentavam em volta da criatura.

O lagarto olhou para os dois e abriu a boca, como se insinuasse algo. Seu corpo era completamente feito de chamas, chamas concentradas, que não se misturavam. Elas davam forma as patas, cabeça, corpo e cauda do animal, sem se misturarem com o resto das outras chamas. Apenas o olho da criatura era diferente. Havia algo diferente.

Aos poucos Khain vinha sentindo sua marca formigar. Desde que a chama da tocha se apagou, mas ali, encarando o lagarto, a sensação se intensificou. Era quase dor. Quase.

Quando Khain se aproximou para olhar mais de perto, o lagarto desapareceu e a tocha, antes apagada, voltava a arder com seu fogo alaranjado.

Habel, maravilhado, voltou seus olhos para Qanah’hyr, enquanto Khain observava o círculo tentando entender alguma coisa.

— Como? – perguntou Habel. Em seu olhar havia um milhão de perguntas e Qanah’hyr colocou a mão no ombro do garoto.

— Eu vou ensinar vocês como. – disse, enquanto puxava um pequeno pano de um de seus muitos bolsos e limpava o desenho. Quando terminou de apagar completamente o círculo, Qanah’hyr mostrou novamente o punhal e olhou para os garotos de forma desafiadora. – Khain, você primeiro. Precisa esticar o braço e confiar em mim.

Habel e Khain se olharam novamente e assentiram com a cabeça. Primeiro Khain e depois Habel.

Khain não relutou e esticou o braço direito. O homem segurou com a mão esquerda em um aperto firme e observou a marca. Ela estava completamente negra, com a cor forte se diferenciando do braço branco do garoto, mas Qanah'hyr não a encarou e nem fez perguntas.

— Garoto, isso pode doer um pouco, mas é necessário. – Disse Qanah’hyr, agora puxando com a mão direita o punhal e apontando-o para o braço do garoto. Olhou para Khain, que assentiu com a cabeça.

A lâmina do punhal deslizou pela pele alva do garoto em um pequeno corte, logo abaixo de sua marca. Khain quase não sentiu dor, talvez pela empolgação em que se encontrava. Logo, um pequeno filete de sangue surgiu do corte e começou a escorrer pelo seu braço.

— Eu não queria ter que fazer isso aqui, mas não tem outro jeito. – disse Qanah’hyr, enquanto passava o dedo sobre o corte.

Com o dedo manchado de sangue, o homem rapidamente começou a passa-lo sobre o chão. Sempre passando o dedo novamente no corte, molhando-o novamente com o sangue de Khain, Qanah’hyr começou a formar um desenho onde ainda a pouco havia o círculo de giz onde o lagarto de fogo caminhava.

Um círculo com algumas letras em volta tomava forma. A, S, M, O, D, A, Y. E, dentro dele, um desenho repleto de curvas onde, no final, parecia uma pequena cauda se mexendo.

Claro que o desenho não foi feito apenas com aquele ferimento. Logo o corte parou de sangrar e Qanah’hyr teve que fazer outro. E depois outro. E mais outro. Ao todo, foram oito cortes e Khain sentiu cada um deles, mas logo estava terminado o círculo.

Então, Qanah’hyr se levantou e foi até sua mesa, onde pegou um grande giz branco.

— Mãos à obra.

Um enorme desenho foi feito no quarto inteiro. Nele, havia estrelas, círculos, luas e letras que não formavam nenhuma palavra em especial. Nenhuma que Khain conhecesse. PRIMEUMATON. ALPHA. OMEGA. TETRAGRAMATOM. ANAPHAXETON. E, em volta do círculo feito com o sangue de Khain, foi feito um pequeno triangulo.

O garoto achou aquilo tudo muito esquisito, mas não sentiu medo. Qanah’hyr parecia saber exatamente o que estava fazendo e estava muito concentrado. Já havia provado ser de confiança, então não havia motivos para duvidar. Era um pouco estranho, mas o garoto já havia passado por algumas coisas estranhas. Habel, por sua vez, se afastou completamente dos desenhos e ficou do outro lado do quarto.

— Olha, agora preciso que você tire a roupa. – disse o sujeito, enquanto observava seu desenho com os braços apoiados na cintura.