Naquela sala escura havia uma mesa. E sobre aquela mesa, só era possível ver uma silhueta oval, coberta por um lençol branco esfarrapado nas laterais e com algumas manchas estranhamente desbotadas. Ao que tudo indica, eram manchas de sangue que foram lavadas por vezes seguidas.

A sala era pequena e repleta de objetos. De pequenos a grandes tubos de ensaio. Algumas máquinas estranhas espalhadas pelo lugar, em cima das mesas e penduradas no teto. E fios.

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Muitos fios correndo por todo o chão da pequena sala. Era difícil se locomover lá dentro sem tropeçar em um ou outro. Mas o pequeno cientista em seu jaleco sujo de fuligem, que um dia, há muito tempo atrás foi branco, não tinha dificuldades pra andar por lá. Ele não parava um segundo. Vivia anotando coisas dia e noite, a qualquer coisa que fizesse. Por horas seguidas ficava fazendo misturas, injetando líquidos em tubos conectados a pequenos canos, que por sua vez percorriam toda a pequena extensão da sala e desapareciam por debaixo do surrado lençol branco e ligando e desligando máquinas barulhentas e remendadas, muitas das vezes soltando faíscas a cada hora em que eram usadas.

Depois de muitos meses, muitas noites de sono perdidas somente a base de café e remédios inibidores de sono ou então algumas misturas loucas que ele preparava na hora, em seus minúsculos tubos de ensaio, o trabalho de toda uma vida estava prestes a se concretizar.

Durante toda sua vida ele sonhou com aquele dia. Ao entrar na universidade, ele prometeu a si mesmo que iria realizar esse experimento e mudaria o rumo da história genética da humanidade. Ele trabalhou duro por tudo aquilo. Seus equipamentos eram um investimento de uma vida toda de economias, usadas para comprar suas ferramentas de trabalho, máquinas usadas e muita fita adesiva pra colar fios desencapados.

Naquela noite ele trabalhava freneticamente e imaginava que tudo daria certo. Ele colocava toda sua crença naquilo e corria de um lado para o outro, ajustando seus últimos detalhes, alimentando cada parte que faltava e esperando à hora do espetáculo final.

Após tudo concluído, os últimos tubos conectados, fios em seus devidos lugares, máquinas ligadas e preparadas, ele girou a chave de energia. Não que ele não estivesse trabalhando com energia. Mas ele criou um catalisador com algumas máquinas que havia comprado e instalou diretamente na rede de energia que alimentava a sala. Ao girar a chave, ele canalizou uma grande quantidade de energia. A energia de todo um quarteirão. Houve faíscas e tudo escureceu. A única coisa que brilhava era o que havia embaixo do lençol branco e surrado. O cientista se aproximou do lençol e o puxou.

Ao retirar o lençol, por baixo, a silhueta oval que ele mostrava era na verdade uma cápsula. E dentro daquela cápsula havia uma água verde quase fluorescente devido a grande quantidade de energia que corria lá por dentro, e ainda mais do que isso, havia uma criatura lá dentro.

Uma criatura como um humanóide. Ao observá-la sem reparar tanto, podia se dizer que era um ser humano. Mas olhando mais de perto, ele tinha os membros mais alongados, braços e pernas mais longos do que um ser humano normal. Sua cabeça era um pouco mais oval, com olhos grandes e completamente negros e cabelos que chegavam até a metade de suas costas. Um corpo esquelético e nenhum pelo por todo ele. O cientista observava esperançoso por algum movimento ou qualquer traço que representasse vida dentro daquela cápsula. E não aconteceu nada.

A energia percorria por toda a água e o corpo lá dentro vez ou outra tinha um espasmo involuntário, mas nada que se parecesse como uma coisa viva.


Na sua cabeça, o cientista via todo o trabalho de uma vida inteira desmoronando. O tempo de uma vida inteira perdido. Noites e mais noites de sono perdido, planos que havia realizado e a possibilidade de uma vida melhor, tudo isso indo por água abaixo. Ele ficou lá encarando a cápsula por um longo tempo e nada se movia.

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Ele andou até a chave de força, girou e desligou a máquina. Mais faíscas foram lançadas ao ar e pouco a pouco a energia voltou para dentro da pequena sala.

Desolado, ele apagou as luzes, deixou tudo da forma que estava não se dando ao trabalho de mover um nada do lugar. Pegou seu casaco que estava pendurado na porta, abriu a porta, e foi atingido por uma brisa gelada que vinha de fora. Naquela noite estava prestes a nevar, e o frio estava levemente desconfortável. Ele respirou aquela brisa por mais alguns instantes e enquanto ele fazia isso, ele pensava. Pensava em todas coisas que havia feito, e de tudo que havia abrido mão em prol de sua falha e louca ideia. Criar uma vida, ele pensava a partir daquele momento, era algo impossível, e ele se sentia um estúpido por ter dedicado toda a sua vida a algo que não possível. Ficou parando durante algum tempo sobre a soleira da porta, observando as árvores que dançavam com o vento gélido. Decidiu que aquilo não tinha mais jeito e que aquela falha foi à última de todas. Indo embora, ele deu uma última olhadela para trás e se deparou com brilhantes olhos negros que o observavam através do vidro da cápsula. Como se o vento gelado o houvesse congelado, ele ficou paralisado onde estava assustado e contemplativo. Durante alguns instantes, a única coisa que ele conseguiu fazer, foi encarar aqueles grandes olhos negros, mas logo o sorriso veio ao seu rosto e ele, jogando o casaco no chão, deu pulos de alegria.

A sua experiência iria lhe render um Nobel, e mudaria sua vida e a vida de toda a humanidade dali pra frente.

Ele havia criado um ser humano em laboratório. Um homúnculo. E sua vida iria mudar de agora em diante. Ele seria reconhecido por seu trabalho e revolucionaria o mundo da ciência. A cura pra muitas doenças seriam encontradas e o mundo lhe devia gratidão por isso. Era isso que ele pensava enquanto atravessava a sala e ia de encontro com a criatura dentro da cápsula.

Ele parou de frente para a criatura, os olhos começavam a verter algumas lágrimas, e a criatura apenas o observava. Ele começou a se balançar de um lado para o outro, extasiado, e a criatura o acompanhava com seus grandes olhos negros. Ele se aproximou um pouco mais e colocou sua mão direita sobre o vidro. A criatura o observava intensamente. Ele esperou durante algum tempo até que a criatura moveu lentamente seu braço esquerdo e tocou sua mão pelo outro lado do vidro.

Aquilo era a resposta que ele precisava.

O experimento foi um sucesso, pensou ele, pois o homem lá dentro não somente tinha seus sentidos como também era capaz de reagir racionalmente. Em sua concepção, ele se tornou um Deus que havia quebrado as barreiras do impossível e havia criado a vida.

Ele se apressou à máquina que ficava ao lado da cápsula e a criatura lá dentro o seguiu com os olhos. Ele apertou alguns botões e as comportas embaixo da cápsula se abriram, fazendo com que a água escoasse. Voltou a se aproximar da cápsula, e a abriu lentamente, e enquanto isso, a criatura o observava.

Após aberta a cápsula, ele moveu seu braço em direção à máscara que estava no rosto da criatura e a removeu. E enquanto ele fazia tudo isso, a criatura de olhos negros apenas o observava. Retirada à máscara, ele se pôs a contemplar mais uma vez o seu feito. Aquilo era a vida. A vida que o mundo nunca havia criado, ele teve sucesso em criar, assim pensava.

Suavemente ele levou sua mão de encontro à mão da criatura e a trouxe para cima, fazendo com que ela levantasse e se sentasse.

E enquanto ele fazia isso, a criatura continuava a observar.

Ele a puxou com calma e esperou enquanto ela se colocava de pé. A criatura tinha em torno de um metro e oitenta de altura e era uma cabeça mais alta do que o cientista.

Já em pé, ele a conduziu e fez dar seus primeiros passos. Desajeitadamente, ela se levantou e arriscou os primeiros passos. No começo, ela agia como um filhote que acabara de nascer. Trocava as pernas e andava desengonçada. Após alguns curtos passos, ela começou a se adaptar. Enquanto isso, seus olhos miravam diretamente os olhos do cientista, como se estivesse hipnotizada por ele.

A criatura tropeçou em alguns fios enquanto andava pela pequena sala enquanto o homem olhava e se regozijava orgulhoso de sua criação.

Depois do décimo passo, o cientista a soltou. Caminhou até a entrada da sala e esperou que a criatura viesse até ele, deixou que se movimentasse por conta própria. A criatura começou a caminhar, passos curtos e lentos, sem tirar os olhos do cientista, como se ele fosse o seu guia.

Enquanto ela caminhava, os olhos do cientista lacrimejavam de orgulho, de ter conseguido viver sua vida e ter feito algo que perdurasse por toda a eternidade. Realmente, pensou ele, eu sou um Deus.

Lágrimas corriam por suas bochechas enquanto ele sorria, até não conseguir conter seus sorrisos e começou a gargalhar. Suas gargalhadas soavam como de uma pessoa louca. E enquanto ele gargalhava, a criatura continuava caminhando lentamente em sua direção.

A euforia era demais, e ele não conseguia mais suportar.

Desde que havia colocado a ideia de criar um “ser humano”, tudo o que havia recebido era críticas e deboches. As pessoas costumavam rir dele pelas suas costas, e na sua frente. Perante isso, ele se tronou um homem solitário, e sua falta de socialização o caracterizava como um louco. Era assim que todos o viam.

De uma forma insana e que mostrava sua excitação em relação aquilo, ele começou a gritar, por entre gargalhadas e soluços de alegria, enquanto suas lágrimas escorriam pela face.

– EU SOU DEUS! EU SOU DEUS!

E enquanto ele gritava histericamente, a criatura caminhava em sua direção.

“EU SOU DEUS” dizia ele, “EU SOU DEUS”, e a criatura parou a sua frente.

Ele estava de braços abertos e a observando enquanto gargalhava e chorava feito um louco, e ela parou de observá-lo e abaixou a cabeça. Seus longos cabelos cobriram todo o seu rosto.

A criatura emitiu uns grunhidos estranhos que chamaram a atenção do cientista e ele percebeu que ela também ria.

De cabeça baixa, agora com seus olhos cobertos por seu enorme cabelo, parada de frente para o cientista, a criatura começou a gargalhar. O espanto do pequeno cientista foi tanto que ele cessou seus risos escandalosos na hora, e o que se ouvia era somente o som gutural da gargalhada da criatura. De início foi impressionante, mas depois se tornou assustador e aterrorizante. A alegria do homem se desfez em medo e a criatura inesperadamente parou de gargalhar. Levantou lentamente sua cabeça e seus cabelos negros escorreram por seu rosto revelando seus negros olhos com um brilho maligno. A criatura observou o homem diretamente em seus olhos e falou em uma voz rasgada e estridente, quase imperceptível.

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- Se você é Deus, prazer, eu sou o diabo.

Antes de qualquer tipo de reação que o homem pudesse ter, a criatura colocou uma mão em seus ombros e uma em sua cabeça e puxou para cima. A cabeça se desprendeu do corpo como se seu corpo fosse feito de papel e a criatura estivesse apenas rasgando um pedaço da folha. Sangue jorrou em cima da criatura e para todos os lados, manchando de vermelha aquela pequena sala com cheiro de química e faíscas, e dando cor ao cinza e negro dos fios, das máquinas e da fita adesiva.

A criatura jogou a cabeça do homem em um canto qualquer da sala, enquanto o corpo dele caia sobre os fios e uma poça de sangue se formava para preencher um espaço vazio. A criatura caminhou até o lençol surrado que estava jogado ao lado da cápsula, limpou o sangue do corpo e caminhou de volta, em direção à porta.

Ao sair, a criatura se agachou no canto, ao lado da porta, pegou o casaco de tweed que o cientista havia jogado no chão, e o vestiu, abriu a porta e sem olhar para trás, foi embora.

O casaco era um item indispensável, afinal de contas, naquela noite o tempo estava fechado, e fazia muito frio.