Era aproximadamente meio dia quando Lisa saiu de seu escritório na Clínica Psiquiátrica Aquarius. Os corredores estavam praticamente vazios, com exceção da equipe de limpeza, mas eles estavam em outro setor. A clínica reabriria em uma hora e meia. Tempo suficiente para sair e almoçar.

Estava pronta pra sair quando percebeu que não estava sozinha.

Atrás do balcão da recepção, que estava vazio, havia uma porta que levava até um depósito de arquivos; de lá Lisa escutou o inconfundível som de papelada sendo retirada de gavetas de ferro. Decidiu ir verificar. Não era a primeira vez que super-heróis desesperados procuravam informações sobre os seus pacientes e Lisa adorava assustá-los e expulsá-los de sua clínica.

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Mas por mais surpreendente que fosse, não foram super-heróis que ela encontrou ao atravessar a porta, mas um senhor muito elegante e charmoso que revirava as gavetas de um jeito quase calculado, para não desarrumar.

Esse senhor não era ninguém menos do que Hannibal Lecter, um de seus colegas de trabalho e amigo. Ele a olhou surpreso.

– Ah, olá, srtª Gray. – cumprimentou delicadamente, como se não estivesse fuçando em seus arquivos.

– Olá, Dr. Lecter. – sorriu Lisa, cruzando os braços ao perceber que Hannibal segurava seus relatórios sobre a reabilitação de vilões. – Está interessado em participar das reuniões?

Elisabeth conhecia muito bem os hábitos dos vilões. Sabia que quando um deles se interessava por alguém ou por algum assunto, procurava investigar secretamente. Alguns chegavam até a adotar um comportamento obsessivo. Como aquela vez em que descobriu que Lex tinha uma salinha no porão cheio de informações sobre ela.

Ela tinha achado aquilo o máximo.

Também não via qualquer tipo de ameaça ou ofensa nos atos de Hannibal, apenas curiosidade. Sinceramente, gostava da ideia de Dr. Lecter acompanhando suas reuniões, participando delas... Lisa conhecia muito bem seus hábitos e sabia que ele se encaixaria no perfil de seus pacientes.

Hannibal segurou o documento nas mãos, hesitando um pouco antes de responder.

– Não acho que me encaixaria nesse tipo de tratamento. Não gosto muito da ideia de ser analisado de perto por outras pessoas. – disse Lecter, gentilmente – Além disso, tenho meus próprios pacientes.

– Então o que faz com meus relatórios? Devo lembrá-lo de que são confidenciais? – perguntou Lisa, simpática demais para quem está tendo sua privacidade violada. Mas quando é que não há pessoas violando sua privacidade? Era algo familiar e até reconfortante para ela.

– Estou apenas interessado em seus métodos. Espero que não se incomode... – Hannibal interessado em seus métodos? Certo. Por mais encantadora que fosse a ideia, Liza não se achava tão brilhante assim.

– Claro que não, Hannibal. – Lisa assegurou – Apenas gostaria que me perguntasse antes. Não sou capaz de recusar qualquer pedido seu, sabe disso.

Hannibal deu um de seus encantadores sorrisos.

– Muito bem. Importaria se eu levasse seus relatórios? Prometo entregar hoje mesmo.

– Claro.

Lisa, por um momento, se perguntou se Hannibal não estava querendo fuçar na vida de um de seus pacientes e bagunçar suas mentes... Não, melhor não pensar nisso. Ela sempre achara melhor guardar palpites e esperar o desenrolar da história antes de fazer algo. E sabia que Hannibal não chegaria a se expor até esse ponto.

– Gostaria de me acompanhar num almoço? – perguntou o doutor, depois de consultar o relógio. – Posso preparar algo simples, e poderá voltar a tempo.

– Eu adoraria! – respondeu, surpresa e feliz com o convite.

Adorava quando Hannibal cozinhava.

Mesmo que a carne fosse exótica.

***

O apartamento de Dr. Lecter não ficava muito distante da clínica. Não fazia muito tempo desde que ele se mudara para a cidade.

Acostumado com pequenas cidades, Hannibal viu nisso um agradável desafio; além de tornar mais fácil suas caças. Pois, numa cidade grande e cheia de vilões, não era dada muita atenção a pessoas desaparecidas. O único problema e provável ameaça era Will Graham.

Will por algum motivo que Hannibal não entendia – mas que a medida que conhecia Lisa começava a ter algumas teorias – tinha se mudado um pouco depois dele para a cidade. Tinha ficado intrigado no começo, mas o que o deixava surpreso era que Will havia decidido sair de sua tranquila rotina em sua cabana, concertando barcos, para morar na cidade grande.

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Mas Will não era o único que tinha mudado radicalmente seus hábitos para morar em Metrópolis, ou melhor, na mesma cidade que Elisabeth Gray. Pra falar a verdade, desde que Lisa havia se formado psicóloga, muitas pessoas se deslocaram de seus lares, para viverem na mesma cidade que ela. Algo extremamente intrigante para Hannibal, principalmente quando nem Lisa, nem mesmo essas pessoas, percebiam isso.

Sabia disso porque havia pesquisado tudo a respeito de Lisa e seus pacientes.

Já havia alguns anos que Hannibal começara a estudar a mente de pessoas com habilidades especiais e por mais extraordinário que seja tudo o que descobrira até agora nada se comparava ao poderoso magnetismo e influencia que Elisabeth exercia sobre as pessoas. Ele mesmo conseguia sentir a energia que emanava de Lisa naquele momento, enchendo seu carro com algo que não conseguia decidir se era confortável ou não.

Queria fazer de tudo para descobrir a origem dessa força, queria estudá-la e conhecer os métodos de Lisa.

Hannibal abriu a porta para o seu apartamento na cobertura de um dos prédios mais caros da cidade, segurando a porta para Elisabeth. Um sensor de movimento os encontrou e uma música que Lisa reconheceu como sendo sua preferida, a Sonata No. 13 Allegretto Grazioso de Mozart, começou a tocar suavemente no apartamento sem ter um exato ponto de origem. Como se viesse de todos os lados.

– Eu realmente preciso de um desses... – disse Lisa para ninguém em particular. O nível tecnológico de Metrópolis era altíssimo e adorava gabar-se com outro colegas que isso era culpa da LexCorp e seu querido paciente.

– Conhece? – perguntou Hannibal se referindo a musica e tirando o paletó; depositando-o cuidadosamente num dos ganchos do cabideiro.

– Mozart. Uma das minhas preferidas. – sorriu. Hannibal lhe ofereceu um lugar na sala e ela se sentou.

– Tem muito bom gosto, Lisa. – cortejou.

Lisa sorriu e agradeceu, comemorando internamente o elogio. Admirava muito o doutor e o considerava perfeito em quase todos os aspectos. Pra falar a verdade, Lisa considerava muitas pessoas perfeitas. Para ela até mesmo defeitos eram considerados fascinantes. Isso geralmente causava preocupação em seu pai e seu avô.

Não conversaram muito enquanto Hannibal preparava a refeição. Lisa observou enquanto ele cortava um pedaço de fígado perfeitamente limpo em fatias e se esforçava ao máximo para não pensar da onde tinha vindo. Não valia a pena preocupar-se com algo que já estava morto. Era muito mais útil preocupar-se com os vivos. Aquilo não passava de carne, e o que quer que tenha o possuído em vida não estava mais ali e nunca mais precisaria disso. Esses eram os únicos pensamentos que faziam Lisa comer e saborear sem medo as receitas de Hannibal.

– Está servido. – anunciou ao voltar da cozinha levando os pratos já servidos em cada uma das mãos.

Lisa dirigiu-se à mesa. O cheiro era delicioso, como sempre, e os pratos estavam devidamente decorados.

Hannibal puxou uma das cadeiras para Lisa se sentar, o gesto de um puro cavalheiro. Era difícil se zangar com ele e seus maus hábitos quando ele era tão encantador.

Chamava esses tipos de sociopatas de vilões simpáticos, pois deixavam a banalidade de lado na hora de se relacionar e se comportavam mais humanamente do que os vilões antipáticos. Se você não fazia o tipo de vítima deles, podia ficar tranquilo.

– Teve notícias de Will? – perguntou o doutor depois que haviam se sentado.

Lisa o fitou antes de responder, tentando ler suas intenções.

– Muito bem, considerando tudo. – deu uma garfada e falou com descaso – Ele também pergunta por você.

Com o mesmo interesse disfarçado, ela quase disse.

Lisa percebia que os dois possuíam uma obsessão um pelo outro assim como um vilão e super-herói; mesmo não exatamente os sendo. Eles não saiam por ai gritando aos sete ventos o quanto se odiavam. Lisa gostava disso neles. Ela sabia que no fundo eles não se odiavam, mas se sentiam ameaçados um pelo outro, algo muito natural para duas pessoas tão mentalmente parecidas.

– Acredita que ele trouxe os cães com ele? – continuou – São tão lindos e educados! E o apartamento dele está sempre em ordem! Incrível. Não sei como ele consegue.

Hannibal parecia estar pensando em alguma coisa para dizer. Lisa sentia que ele sempre escolhia com muito cuidado o que dizia para ela, mas não sabia exatamente por que.

– Também é muito ligada a animais. – era mais uma afirmação do que uma pergunta. E desviou um pouco do assunto Will.

– Sim, tenho dois gatos. Mas depois de ver Will penso em adotar um cãozinho. – disse Lisa enquanto cortava cuidadosamente mais um pedaço de fígado. Estava concentrada na ideia do cãozinho.

Lisa olhou para o pedaço de carne e pensou nos cães de Will e em seus gatos. De repente, ocorreu-lhe algo.

– Sabe, – começou, o tom chamando a atenção de Hannibal – acho que se eu tivesse de escolher entre matar uma pessoa ou um animal, escolheria a pessoa.

Hannibal parou com o garfo ar e o pousou novamente no prato. Era quase um sinal para que Lisa continuasse; adquiriu até a postura que usava na frente se seus pacientes; aquela que dizia: “Como se sente sobre isso?”

– A humanidade num todo é uma praga. Sei que já deve ter ouvido isso, mas destruímos nosso próprio habitat e ainda nos consideramos a espécie racional. O mundo estava perfeitamente bem até nós surgirmos... Talvez possa parecer frio da minha parte, mas acho bom que estejamos nos matando uns aos outros. Quanto menos humanos melhor. - respondeu naturalmente, como se estivesse falando sobre a economia nacional.

– Vejo que não tem tanta esperança assim na humanidade quanto faz parecer.

– Eu faço minha parte, mas admito que minha fé as vezes é abalada pela crueldade e banalidade do mundo. – Lisa estreitou os olhos e olhou para o vazio – Você mesmo disse uma vez, não é? “A crueldade é algo que a humanidade criou, não os animais”, algo do tipo. Daí vem a minha escolha entre uma pessoa e um animal. Uma pessoa trás mais mal ao mundo. – parou um instante e depois retomou – Bom, é fácil dizer isso quando a pessoa não é alguém importante pra você... – Lisa riu, arrancando um sorriso involuntário de Hannibal - Como os humanos são fascinantes! Às vezes me surpreendo com a minha própria hipocrisia.

Hannibal manteu o pequeno sorriso. Era agradável conversar com alguém que compartilhava as mesmas ideias que você, até mesmo lhe fez sentir um pouquinho de emoção. Mas só um pouquinho mesmo. Às vezes se sentia tão a vontade com Lisa que poderia confessar todos os seus pecados... Desconfiava que fosse a influencia das habilidades de Elisabeth.

– Hipocrisia. Outra coisa que a humanidade se deu. – ele comentou.

– Admito que todos os seres humanos possuem hipocrisia, mas alguns são menos toleráveis que outros.

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– Por exemplo?

Lisa deu uma ultima garfada antes terminar a refeição. Enquanto conversava fazia gestos com o garfo no ar.

– Acho que o que mais me incomoda é quando uma pessoa faz algo achando que é certo, mas quando o outro faz acha que é errado. – balançou a cabeça, pensando em Lex e Clark – Isso me faz perder a cabeça.

Já havia perdido a conta de quantas vezes Clark mentira para Lex e depois literalmente quase derrubava as portas do escritório e entrava desfilando, o acusando de mentiras. Isso arrasava Lex, fazia-o pensar que era de fato um monstro. Esse tipo de influencia era a pior de todas.

As pessoas insistem tanto que uma pessoa é um monstro que ela acaba realmente se tornando uma. Lisa fazia o contrário, repetindo que elas eram perfeitas até o momento em que se tornassem ou que elas se sentissem assim. Era como tudo começava.

– Lisa? – chamou Hannibal, estava tão distraída que não percebeu que ele falava com ela – Já são treze e quinze. Quer que eu a acompanhe até a clínica?

Lisa checou o relógio e ergueu-se com um pedido de licença desajeitado.

Não estava acostumada a ser tão sofisticada, mas na presença de Hannibal sentia essa necessidade.

Hannibal levantou-se igualmente e levou-a até a porta.

– Não precisa me acompanhar, Hannibal. – disse Lisa enquanto Hannibal a ajudava com o casaco. – Você não tem necessidade de ir. Me entregue os papéis amanhã, vou estar ocupada hoje.

– Certamente.

Hannibal abriu a porta. Ao sair Lisa aproveitou e tomou a liberdade de abraça-lo e dar-lhe um beijo na bochecha.

– Obrigada pelo almoço. Espero que me convide mais vezes.

– Minha cozinha está sempre aberta para amigos, Lisa. Venha sempre quando quiser.

Lisa riu com o trocadilho canibalístico, mesmo que dirigido a ela, e apreciou o sorriso que o acompanhava.

– Tá aí um sorriso que eu adoro ver. Deveria sorrir mais vezes! – disse ela no seu jeito delicado, e tornou a caminhar para longe da casa – Até mais, Hannibal!

Lisa sorriu enquanto ele se despedia e fechava a porta.

Hannibal. Tão encantador. Mas se fosse compará-lo a uma canção seria com certeza Devil in Desguise. Pensou distraída em como de fato podia ouvir a música tocar na sua cabeça à distância toda a vez que o via.

Estava atravessando a rua e pensando no prêmio da sexta-feira quando lembrou-se de repente que não tinha vindo com seu carro.

Droga!

Correu de volta para o casarão, e para Hannibal, que já esperava pronto do outro lado da porta.