Cigarette Smoke

Ele é o Mensageiro


Me lembro perfeitamente do dia em que a caixa com livros que meu pai tinha mandado chegou aqui. Naquela época não fiquei lá muito contente (estava mesmo querendo roupas e esmaltes), mas teve um livro, escondido bem lá no fundo, ainda envolto em plástico, que me deixou curiosa. “Eu sou o mensageiro” de Markus Zusak.

Comecei a ler sem muito ânimo, mas a cada capítulo eu ia ficando mais comovida pelo personagem e a cada apuro que ele passava, cada dúvida, eu me sentia mais solidária, porque era a primeira vez que eu encontrava alguém tão parecido comigo. Desde então decidi que ia seguir o que o livro mostrava. Decidi que iria agir mais como Ed Kennedy e ajudar quem eu sentia que precisasse de mim.

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E agora, enquanto subimos a colina, sinto que é Jeremy quem precisa de mim... Ainda que ele não saiba disso.

O sol está ficando cada vez mais quente, porém seu calor é amortecido pelo vento frio que vem do mar.

– Onde estamos indo Sarah?

– Para o mar!

Meu cabelo chicoteia pelas minhas costas e o vento forte faz meus olhos lacrimejarem. Olho para trás e mal consigo ver o rosto de Jeremy.

– Já pensou que talvez esteja na hora de cortar esse cabelo?

– Amélia gosta assim.

– O que?

Ele me olha assustado ao se dar conta do que acabou de dizer.

– Ah...

– Legal Jeremy, muito divertido.

Só percebo que comecei a andar mais rápido quando ele me segura pelo cotovelo. Não quero parar para escutar o que quer que seja que ele pretende dizer e também não entendo o que foi essa minha reação. Ele não é sua propriedade Sarah!

– Sarah, para. Me desculpe, ok? Era o que eu sempre dizia quando alguém me mandava cortar...Não era minha intenção falar dela... Sei lá, acho que talvez seja porque eu estava pensando muito nela nos últimos dias...

– Acho que isso, num fator nada diplomático, só piora o que já não estava legal.

– Mas você acabou de dizer que era legal!

– Ironia! Sarcasmo! Absurdos saindo da minha boca! Interprete como quiser apenas não leve ao pé da letra.

– Porque está brava?!

– Eu não faço ideia!

Ele me olha como se seu próximo passo fosse me jogar do penhasco. O encaro de volta, como que perguntando por que ele ainda não fez isso. Meus olhos estão arregalados e me incomoda não conseguir ver os seus. Desisto disso.

– Certo, continue andando.

Caminhamos até que eu finalmente consigo sentir a brisa salgada no meu rosto. Começo a me arrepender por não ter colocado um casaco mais pesado. Uma sensação de que eu não deveria ter saído de casa passa pela minha espinha e piora quando sinto Jeremy se aproximar e passar os braços ao meu redor, apoiando o queixo no meu ombro.

– Eu pensei nela...

– Não quero saber.

– Fica quieta e espera eu terminar. Eu estava pensando nela nos últimos dias porque estava tentando entender o que estava acontecendo entre nós... Sarah, eu pensei que tinha me apaixonado por Amélia, mas agora conheço você e o termo “se apaixonar” ficou meio confuso.

Prefiro ficar em silêncio. Não estou pronta para abrir a boca e pisotear tudo com meus pés tortos. Um pensamento sinistro passa pela minha cabeça “E se ele estiver brincando Sarah? E se for apenas algum tipo de jogo malicioso?”

Preciso tirar isso a limpo o quanto antes. Porque se não qual vai ser a vantagem de ficar aqui, enfurnada nesse fim de mundo brigada com ele? Me viro de frente para Jeremy, as mãos em sua cintura.

– Jeremy, quero que você saiba que qualquer jogo sinistro que você estiver fazendo comigo será descoberto e vingado quando você menos esperar.

– Porque está dizendo isso Sarah?

– Senti uma necessidade enorme de deixar claro para você que eu não estou aqui de brincadeira.

– E isso significa que você gosta de mim e não está jogando do lado dos meus pais?

Ops. O que foi isso?

– O que quer dizer?

Observo ele me soltar e tirar o cabelo dos olhos. Finalmente posso encará-lo. Mas seu olhar não me acalma.

– Quero dizer Sarah, que quanto tempo você achou que poderia me enganar? Sério, eu sei que meus pais te pediram para cuidar de mim e tal, mas por que um preço tão alto assim?

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– Quem te contou?

– Isso não importa...

– Que te contou Jeremy?!

– Amanda.

Será que é muita maldade eu dizer que a odeio? De verdade? Do fundo da minha alma?

Me diz o porque de uma pessoa chegar a esse extremo? Pra que destruir a vida de outra dessa forma? E como foi que ela descobriu?

Um torpor invade meu cérebro... E isso não é bom. Minha respiração fica presa e começo a força-lá para fora.

– Sarah?

Respire, continue respirado. Por favor.

– Me leva pra casa... Rápido.

– O que está acontecendo?

– Crise.

Agradeço por ele entender de primeira. Jeremy me segura pela cintura e começamos a subir de volta para casa. A raiva não está diminuindo e me sinto a pessoa mais sortuda do mundo por ainda estar ciente dos braços dele ao meu redor. Se ainda posso senti-lo, então não estou pirando. Essa talvez seja a solução: Sentir.

– Jeremy?

Ele não para e nem dá sinal de que me ouviu. Finco os pés no chão e berro seu nome. Ele para e me encara.

– Me beija.

– O que?

– Me beija.

Sinto sua incerteza, é tão grande que posso senti-la na palma da mão que segura a sua. Encurto o espaço entre nós e sinto sua respiração descompassada no meu rosto. Sinto.

– Acho que talvez se você me beijar a crise passe.

– Ainda não entendo.

Não acho que tenho mais tempo para explicar. Também não sei identificar direito o que acontece na minha cabeça: eu quero gritar, mas também quero chorar, e quero bater em alguém, esmurrar, quero dormir depois.

– Sentir... Sentir você aqui me faz ficar acordada.

– E se ficar pior?

– Então me interna, por favor.

Ele me beija, sinto sua incerteza, sinto meu medo, sinto também o erro cada vez maior nisso tudo. Mas sinto também o mundo voltar ao normal, nada mais embaçado, nem descolorido.

– Se sente melhor?

– Eu acho que sim.

– Pode me explicar o que aconteceu então?

– Vamos pra casa, lá te explico.

Entro em casa e agradeço aos deuses por meu pai ainda não ter chegado. Ando até a sala e me curvo até ficar de joelhos na frente do sofá. Tateio o chão em busca de um álbum, guardado ali durante anos. Encontro no mesmo lugar onde o deixei da última vez.

– O que você está procurando?

Me sento ao seu lado e lhe entrego o álbum. Quando Jeremy abre não estou olhando as fotos, estou apenas observando sua reação.

– O que...?

– Foram todas cortadas. O encontrei assim no sótão.

– Você não sabe como ela é?

Balanço a cabeça em negativa. Todas as fotos de meu pai e minha mãe estão cortadas... A cabeça dela não se encontra no lugar onde deveria estar: em seus ombros.

– Você sabe quem as cortou?

– Eu penso que deve ter sido meu pai... Mas não sei... Que motivos ele teria?

Jeremy folheia o álbum e para em uma foto, uma bem antiga, onde meu pai aparece com o braço em torno dos ombros da mulher sem cabeça que dessa vez segura uma criança nos braços. A única foto de nós três juntos... Pelo menos a única que eu já vi.

– Você não sabe como ela é?

– Não. Só sei o que meu pai diz.

– E o que ele diz?

– Que eu sou idêntica a ela.

Ele passa a mão na foto, acariciando o bebê. Depois me olha e sorri. Entendo que é um sinal para que eu continue explicando.

– Pense que é estranho você crescer sem sua mãe, mas mais estranho ainda é não ter nem ideia de como ela é... Quando eu era pequena não entendia, mas sabia que faltava algo, alguém... Depois de alguns anos meu pai começou a ficar preocupado... Me levou a vários médicos e todos diziam que eu era perfeitamente normal... Até eu ter a primeira crise.

– Com doze anos, certo?

– É.

Não quero mais falar e mesmo se quisesse não encontro palavras nem termos para expor tudo isso. Acho que ele entende, mas começa a se mexer no sofá, como se estivesse incomodado com alguma coisa. Com alguma memória. Como alguma mensagem.

– Sarah preciso te contar algo.

Olho para ele e vejo por cima de seu ombro um movimento na porta. Seja lá o que ele quer me dizer, vai ter que esperar mais um pouco.

– Sarah! Estou em casa!