Depois desta conversa, fui procurar o Jace. Ainda havia um assunto pendente entre nós.

Ao chegar ao corredor da sala de música, ouço uma melodia que é, provavelmente, tocada por mãos hábeis e ligeiras, mãos de pianista. No entanto, é possível que até mesmo o mais inexperiente da música detete que, por vezes, não há sentimento. A música é vazia e ao chegar aos ouvidos o seu vazio dá lugar a um peso invulgar que nos preenche, mesmo sendo uma canção maravilhosa.

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Entro a passo de caracol na sala de música. O Jace está sentado, com um ar carrancudo e uma expressão que me é estranha, à frente do piano tentando tocar uma das muitas pautas que ali se encontram.

É então, como que num abrir e fechar de olhos, a frustração tomou-lhe o rosto e ele utiliza as teclas do piano para descarregar a fúria que sente.

O som grave e desafinado emitido pelas teclas quase me deixa surda. Mas ele parece nem se incomodar, como se fosse algo comum para ele.

Sei que devo manter-me calada mas sinto que o Jace precisa de desabafar, mesmo que da pior maneira, e não há melhor pessoa que eu para o compreender, modéstia à parte.

— Jace. - Digo, fazendo assinalar a minha presença.

Ele mantém os olhos fixos no piano, como se parecesse me ignorar embora eu saiba que não é isso. Tanto tempo sendo amigos e caçando demónios fez com que me habitua-se ao enigma que o loiro é. Ele pode parecer frio e cruel mas, no fundo, ele sofre muito com a dor dos outros. E é isso que o está a colocar tão irritado; a preocupação. E provavelmente, eu sei com quem ele está preocupado.

Tento pensar noutra coisa, ou melhor, noutro alguém. O meu raciocínio trabalha à velocidade de um carro de corrida e relembro-me da rapariga com os cabelos loiros, mais dourados que os meus, e olhos verdes tão belos e hipnóticos que a maior parte dos rapazes a admira e adora. Tal como acontece ao sexo oposto quando vê o Jace. Mas o que se havia de esperar de irmãos?

— A Briana ligou para o instituto, ontem à noite. Ela queria falar contigo.

Ele levanta a cabeça, como um animal a farejar o ar, e foca o olhar em mim. É incrível como todas raparigas, que eu já conheci, quase desfaleceram só de olhar nos olhos do Jace quando eles, para mim, são completamente normais apesar de serem muito bonitos.

— A Briana? A minha irmã? - Levanta-se ligeiramente, do banco, em frente ao piano, enquanto fala. - Aconteceu-lhe alguma coisa?

Sou atingida por um súbita vontade incontrolável de rir embora seja uma falta de respeito para com a preocupação de Jace. Sinceramente ele não deve estar mesmo bem.

Com um sorriso no rosto, bato-lhe levemente na cabeça como se esta fosse uma porta que eu tivesse de abrir para libertar o Jace de todo aquele remorso, fazendo-o acordar daquele transe.

— Jace, achas mesmo que a tua irmã ía ligar para dizer que tinha falhado numa missão ou algo assim parecido? - Cruzo os braços, parando de rir ao ouvi-lo soltar um longo suspiro. - O que se está a passar contigo? Eu sei que te custa ver o sofrimento daqueles ao teu redor mas, desde que foste buscar a Clary, ficaste pior.

— Lauren...nem eu sei o que se está a passar. - Ele cerra os punhos e volta a relaxa-los como se estivesse a exercitar os músculos. - Só sei de uma coisa. Uma coisa que eu pensava não ter já importância para mim. E isso está a dar cabo da minha cabeça.

Ergo um pouco uma das sobrancelhas. Num momento não entendo o que ele quer dizer e no outro, as imagens que aparecem à minha frente e as palavras que me ressoam aos ouvidos, fazem tudo ter sentido como se uma névoa que se tinha formado à minha volta fosse varrido por uma brisa trazendo a luz do sol novamente.

— Jace, tu gostas da Clary. - Ele arregala-me os olhos, surpreendido com a minha conclusão mas logo a seguir desvia o olhar. - Não negues isso a ti próprio. É algo completamente natural e bom para ti.

— Achas!? Achas mesmo isso!? Tu não foste criada sabendo que amar é destruir e ser amado é ser destruído.

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— Tens razão. Não fui. - Eu não passei nem metade do que ele e a irmã passaram antes de ele completar 10 anos e ela 9, altura em que o pai foi assassinado e ele foi trazido para o instituto. - Mas, os meus pais nunca me fizeram passar pelo mesmo treinamento que o vosso e eu sou uma ótima guerreira. Sei que amavam o vosso pai mas aquilo pelo que ele vos fez passar estava errado.

Ele não me contradiz. Em vez disso senta-se novamente no banco almofadado como um peso morto e de costas voltadas para o piano. "Boa, Lauren. Acabaste de o colocar ainda mais deprimido." penso eu.

Vendo os estragos acidentais que tinha acabado de causar, decido deixar o Jace a refletir para com ele mesmo. Talvez se eu não estivesse ali, ele se acalma-se e ouvisse a voz do coração.

Tal não me é permitido porque o Jace volta a dialogar comigo.

— Eu não sei o que fazer. A minha vida parece ter ficado de pernas para o ar. - Ele segura os cabelos que lhe caem para os olhos, como num gesto de os puxar, e coloca-os para o lado enquanto suspira. - Isto está a ir depressa de mais.

Observo a postura dele. Ele está com as costas encostadas ás teclas do instrumento musical, os braços estão caídos ao lado do corpo com as mãos pousadas sobre as coxas como um peso morto e tem as pernas esticadas. Só de vê-lo assim sei que ele está indeciso. Isso magoa-me de certa maneira.

E então faz-se luz. Normalmente, por esta altura, quem estaria a acalmar o loiro seria o Alec, porque ambos partilham uma ligação de parabatai, algo um pouco raro no mundo dos caçadores das sombras e que é o suficientemente forte para que essas pessoas se sintam como irmãos ou mais do que isso porque sentem, compreendem e sabem tudo acerca um do outro.

O pior, no meio disto tudo, são os sentimentos do Alec. A relação entre parabatais é estritamente proibida e , quando isso acontece, os companheiros são afastados um do outro. Por tanto azar, o Alec desenvolveu mais do que simples sentimentos fraternais pelo Jace e tem medo de lhe revelar o que sente. Logo, se o Jace já teve esta conversa com o Alec antes, este deve estar muito irritado par anão estar aqui.

— Tu disseste isto ao Alec, não foi? E ele ficou irritado contigo.

O Jace olha para mim com os olhos quase a saltarem-lhe das órbitas. Eu detesto quando as pessoas fazem isto, eu não tenho culpa de ter a clarividência mais precisa e melhorada.

— Lauren...como é que... - Mostro-lhe as costas da mão direita e aponto para a runa que se encontra nesta, um olho que tudo vê e que nos permite sermos chamados aquilo que somos: caçadores das sombras. - Pois, isso. Eu esqueço-me sempre dessa tua habilidade.

— Tu falas como se eu fizesse de propósito. Eu lá tenho culpa de que consiga aperceber-me das coisas primeiro que os outros? - Esbracejo no ar.

Ele ri-se um pouco e sinto a minha missão cumprida porque finalmente distraí-o do assunto que o preocupa a ele e a mim. No entanto, eu ainda tenho o dia cheio de trabalho e só agora comecei. Ainda tenho de ir falar com o Alec e depois tenho de me certificar de que a Clary ainda está viva.

— Bem, eu tenho de ir. Deseja-me sorte.

— Com o quê? - Pergunta ele, andando ao mesmo passo que eu até ao corredor e franzindo a testa.

— A falar com o Alec.

De facto, vou precisar de muita sorte para falar com o Alec. O comportamento dele não é tão complexo como o do Jace mas o mesmo não posso dizer do seu feitio que é tanto simpático quanto de repente se torna impulsivo e irritado. Mas, é claro, que eu tinha que detestar que os meus amigos fiquem zangados um com o outro.

— Lauren, acho melhor hoje não falares com ele. Ele anda muito enervado com o que aconteceu na discoteca. - Diz-me o Jace, colocando a mão no meu ombro para me parar.

"Claro. O que esperarias? Que ele não tivesse uma crise de ciúmes ao perceber que gostas de uma rapariga e não dele?" Penso comigo mesma. Deve ser dificil não se ser correspondido no que toca ao amor e o Alec deve sofrer ainda mais, especialmente por saber que, para além de não ser correspondido, o seu sentimento é proibido.

— Está bem. Então vou ver a Clary, queres vir? - Sei que a resposta será negativa por isso não me surpreendo quando ele nega com a cabeça. - Muito bem. Eu compreendo.

Falamos de assuntos sem importância enquanto andamos pelo corredor, assuntos como qual era a melhor maneira de matar um demónio ou qual era a melhor refeição que já tínhamos provado. Foi perto de onde o corredor se dividia em duas direções diferentes, que ele começa a falar da Briana.

— Tens falado com ela? Desde que voltámos da missão no Pandemonium.

Aceno que não com a cabeça. Se ele ainda não falou com a Briana então vai estar em maus lençóis. E o melhor é avisá-lo.

— Conselho de amiga, Jace. Fala com a Briana. - Ele vira-se para mim e a expressão no seu rosto mostra que não compreendeu. - A não ser que queiras ser torturado quando ela chegar.

Ele faz uma careta e chegamos ao final do percurso. Ele vai para a biblioteca, provavelmente para seguir o meu conselho e também para se afastar da Clary, enquanto eu volto para a enfermaria. Pelo caminho encontro a Izzy e vejo que algo não está bem pois tem os punhos cerrados e está a controlar a respiração.

Quando me vê, os seus olhos ganham um brilho espantoso e que só vejo quando é elogiada por algum rapaz de que ela goste.

— Oh, Lou. Ajuda-me! - Ela agarra-me os braços forçando-me a olhá-la nos olhos-

— Que aconteceu? Foi a Clary? - Tento olhar por cima do ombro dela, que é fica a 5 centímetros do meu, para a porta da enfermaria de onde sei que sairá um pouco de luz mas encontro-a fechada. - Izzy?

— É o Alec. Ele foi vê-la e não parecia nada bem. Ele praticamente expulsou-me de lá e nem quereria ver como ele estava. Os olhos dele pareciam carregar electricidade suficiente para matar alguém. - Explica ela.

Sei que não tenho motivos para alarme. Eu sei que o mais velho do nosso grupo não iria fazer nada de imprudente, sendo de a Clary está a ser protegida com ordens do Hodge o que significa autoridade absoluta aqui no instituto, mas entendo a agonia de Isabelle. Então, lentamente, liberto-me das mãos dela e caminho calmamente para a enfermaria.

Ouço sussuros. Diria até que são lamentos ou perguntas dirigidas a alguém que não pode responder. O Alec está pura e simplesmente a tentar compreender o por quê do Jace, que nunca pensou numa rapariga como alguém especial, se interessou pela Clary embora ele não tenha as respostas ou pelo menos não as venha a ter enquanto ela estiver a dormir.

Abro a porta e ele cala-se passando depois por mim sem nunca olhar para trás ou para nós duas. Quando ele se afasta, faço sinal para que a Izzy o siga e o tente confortar, como uma irmã deve fazer em momentos como este, e entro.

Está tudo igual. A Clary continua deitada sobre o divã com o cabelo ás ondinhas e laranja, quase igual à cor das cenouras, espalhado sobre a almofada, parecendo-se com o que as crianças chamariam de Bela Adormecida, o que faria jus à beleza dela, embora a realidade não seja tão feliz e maravilhosa como nos contos de fadas.

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Sento-me na cadeira, ao lado do divã, e pego na mão de Clary que apesar de tudo não está gelada como acontece aos cadáveres. Isso dá-me esperança de um dia melhor amanhã