Charlotte a Herdeira da Trapaça

Capítulo IV - O Falcão e a Raposa


Há alguns metros da escola havia uma praça com um parque para crianças, mas com o sol a pino e na hora do almoço, não havia criança alguma ali. Não haviam muitas pessoas na rua também, nenhuma atenta o suficiente para prestar atenção na loira de cara amarrada que se encontrava sentada num balanço, olhando o celular compulsivamente a cada cinco minutos.

Charlotte entediada e irritada tentava se convencer que tinha caído numa piada de mal gosto e que devia ir para casa. Afinal, porque Mark e Dakota teriam mandado ela esperar ali e não apareceriam se não fosse mais um trote imbecil com calouros? Era óbvio, ela se xingava internamente por ter caído em uma situação tão estúpida.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Se balançou um pouco, tendo estranhas memórias dela naquele mesmo lugar quando criança, o que era impossível, dado o fato que ela nasceu e cresceu em Nova Iorque. Só passou a conhecer Mystery Hills quando fora morar lá. Achou que estava alucinando por efeito do sol intenso e resolveu se levantar.

Esticou os braços, tentando tomar coragem para andar até em casa, o caminho seria longo. Vislumbrou uma estranha sombra no céu, de ínicio era tão pequena que aparentava apenas uma ave qualquer, mas conforme ela passou a descer como um míssil, rápida e mortal, o animal se mostrou grande demais para ser comparado com qualquer ave existente, até mesmo uma harpia seria menor que aquilo. Ela ouviu apenas um grasnar e quando se deu conta, estava voando, sentindo uma dor incômoda nos ombros e nas pernas.

Um falcão gigante a pegou como se ela fosse um boneco de pano; apenas um coelhinho indefeso.

— QUE PORRA TÁ ACONTECENDO AQUI?! — bradou ensandecida, pensou em tentar se soltar, porém cair daquela altura não parecia uma ideia agradável.

As correntes de ar que o falcão usava para planar tranquilamente a sufocaram, além da eminente vontade de vomitar e da crise de pânico súbita. Seu pulmão não conseguiu puxar oxigênio, um choque correu por sua espinha, subindo pelo pescoço e causando um calor anormal em suas orelhas, seus olhos se recusaram a abrir por conta do vento forte atingindo seu rosto.

Ela só conseguiu voltar a raciocinar algo quando sentiu estar no chão. Arfava tentando conter a crise de pânico, mas mesmo puxando tanto ar não conseguia respirar. Seu coração estava querendo saltar pela boca e lágrimas involuntárias escorriam pelos cantos de seus olhos. Pânico, algo perigoso demais para se dar asas.

Abraçando o próprio corpo ela não conseguia enxergar nada direito, seus olhos escureceram e a sensação de que um desmaio era eminente percorreu sua mente.

— Hey, seus ossos ainda estão no lugar? — perguntou uma voz presunçosa, a fazendo erguer o olhar para dar de cara com um par de olhos conhecidos. Assim como o falcão de tamanho atípico, era a mesma pessoa que tinha matado aquelas coisas na floresta.

O pânico se instalou em seu peito, suas mãos e pés suando frio indicavam que ela estava a beira de ter uma crise digna de emergência hospitalar. Se levantou, não sem antes puxar de seu tênis de modo alusivo um pequeno canivete. Não era muito, mas podia tentar ao menos se defender.

— Quem diabos você pensa que é? — cuspiu as palavras, furiosa. — Isso é… puta merda!

Focou a visão, se dando conta que o mesmo rapaz que tinha passado o intervalo do dia anterior encarando-a esboçava um sorriso contido. Estava rindo dela e isso a deixava muito mais enfurecida do que ter sido sequestrada por um falcão e levada para só Deus sabe onde.

— Penso que sou o cara que salvou sua vida, duas vezes. — Deu de ombros, indiferente. — Um obrigado não seria demais.

— Eu vou te matar seu infeliz! — rosnou abrindo o canivete.

Quando se mora numa metrópole do tamanho de Nova Iorque, você é basicamente treinado para o que der e vier. Ela não era a única a andar com armas brancas escondidas, spray de pimenta e tudo que servisse para despistar algum delinquente.

— Ui! Ela tem uma faca — brincou erguendo as mãos. — Só me ouça garota “duro de matar”, você não sabe onde está se metendo. Se não notou esse falcão tem uma estatura meio fora do normal.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Estou cagando pro seu falcão tamanho família — ralhou —, mas que diabos estou fazendo aqui?! — Olhou em volta, confusa, constatando que a cidade estava há quilômetros dali e, que estava no meio de uma densa floresta, no pico de um monte.

— Você, por acaso, ouviu o que eu acabei de dizer? — Revirou os olhos, enquanto bufava. — Não se meta com o “clube de misticismo e mitologia” daqueles imbecis. Você é a carta que falta no baralho deles, e posso te garantir, não vai acabar bem para sua saúde!

— E me sequestrar com um falcão gigante faz bem a minha saúde por acaso?! — ironizou, passando a apontar o canivete na direção do rapaz. — É bom você começar a falar, porque preciso de respostas e digamos que minha paciência está num número negativo no momento.

Os olhos de Charlotte tinham um brilho vermelho conhecido pelo adolescente a frente dela, o que o assustou por um instante.

— Eu não posso te dar todas as respostas, até porque não as tenho — comentou enquanto coçava a nuca. — Se você estiver disposta a parar de apontar essa faca inútil para mim, até posso te dizer uma ou duas coisas. — disse desdenhoso, enquanto fez um punhal aparecer misteriosamente em sua mão, a lâmina demasiadamente colorida incomodava Charlotte tanto quanto o insolente que a girava entre os dedos.

— Você vai ver a arma inútil quando eu socar ela no seu…

— Certo, gracinha. Já entendi seu ponto — Abriu mais seu sorriso —, mas esse brinquedo aí e nada são a mesma coisa. Se quer alguma resposta, só faça o seguinte: Não se aproxime desse clube e, talvez, amanhã eu te mostro umas verdades.

Ele ignorou algumas pragas que Charlotte soltou e montou em seu falcão com toda a naturalidade do Universo, arqueando as sobrancelhas ao notar que a menina continuava no mesmo lugar ainda apontando o inútil canivete na direção dele.

— Precisa de uma carona, gracinha? — Alargou o sorriso zombeteiro que portava. — Ou prefere ir andando até a cidade?

— Seu… — Travou a mandíbula. — Vou até pro inferno andando, pode socar essa sua ave pré-histórica no rabo!

— Você é osso duro de roer, hein? Mas é o seguinte, gracinha, nós estamos há uns… bem… — Olhou na direção na direção da cidade, que parecia ser minúscula dali. — Diria que no mínimo sete ou oito quilômetros da cidade, e acrescenta a distância até sua casa que é naquele fim de mundo, fora essa descida bem íngreme aqui e todo tipo de animais pela área. Se você chegar na cidade vai ser amanhã, com muita sorte de não ser devorada por coiotes, é claro. — Seu sorriso era vitorioso, com uma pitada irritante de deboche.

Charlotte preferia ser devorada por coiotes a voar na mesma ave gigante que aquele garoto, mas ao mesmo tempo a ideia não parecia tão ruim quanto despencar por aquele morro abaixo e ter que lidar com coiotes famintos.

— Como diabos você sabe onde eu moro?! — Franziu o Cenho. — Quer dizer… — Piscou confusa, bagunçou os próprios cabelos com as mãos e fez um gesto de rendição com as mesmas. — Eu até vou aceitar, mas ainda vou te matar qualquer dia!

Arthur se conteve a apenas a soltar um riso nasal e estender a mão indicando que a ajudaria a subir na ave demasiadamente alta, mas Charlotte ignorou usando a asa do falcão, que se incomodou, de apoio para montar. Para desgraça dela tinha acabado sentada na frente de Arthur, que apenas para irritá-la passou seus braços pela cintura dela, dando a entender que estava a segurando para que não caísse.


Antes que ela pudesse xingá-lo e derrubá-lo do próprio meio de locomoção, o falcão já tinha levantado voo, o que a assustou, não era fã de altura. Tentava aproveitar a situação, estava voando ilogicamente numa ave gigante, mas só conseguia pensar em cair. Seus músculos se contraíram, tensão tomou cada centímetro de seu corpo e logo a ansiedade começava a dar seus sinais de sempre, a deixando com um nó na garganta.

O falcão não fazia manobras arriscadas como a que fizera no dia em que Arthur a tinha salvo pela primeira vez, pelo contrário ele planava leve e suave como uma folha seguindo o curso dos ventos.

— Só relaxe, gracinha, essa é uma das melhores sensações da vida. É pura liberdade, não tente resistir à ela — comentou calmo, apoiando propositalmente o queixo no ombro dela.

— V.. Vou... — O medo causado pela infame ansiedade mal permitia que ela falasse. — Relaxar quando te jogar desse falcão!

— Se fizer isso, você cai. Está até incomodando o coitado do Júpiter parecendo uma estátua em cima dele, ele iria mergulhar pra me pegar e duvido que você consiga se segurar — Se antes parecia pura arrogância, agora parecia a calma maré do mar em dias tranquilos. — Sério, relaxe, está tudo bem aqui.

Charlotte não apreciava nem um pouco toda a petulância do indivíduo, mas olhou para cabeça do animal à sua frente, o falcão voava sem problemas, atento a tudo ao seu redor, inclusive seus dois passageiros. Um animal fantástico, que pela lógica não deveria sequer existir. O sol era um pouco incômodo aos olhos estando àquela altura, o vento estava forte, todavia era forte de um jeito bom, que refresca a pele e parecia dar nova vida aos pulmões.

Então, ela apenas se permitiu sentir a tal pura liberdade do momento.

A sensação embriagante era realmente de liberdade, como se nada nem ninguém pudesse pará-la, como se o mundo fosse aqueles minúsculos pontos lá embaixo e ela estivesse no topo de tudo. Nenhum de seus problemas a alcançava ali, nenhum trauma era grande o suficiente para atingí-la, nem mesmo a dor e o vazio costumeiros em seu peito conseguiam alcançá-la.

Era como estar no paraíso.

— Isso mesmo — A voz de Arthur soa docemente em meio a toda aquela sensação —, se deixe ser, se deixe sentir. É assim que é voar.

Ela não respondeu, não havia resposta em mente. Sua mente estava completa e inteiramente inebriada pela mais profunda paz que já tinha vivenciado. O silêncio contribuia com tudo aquilo, a falta de gritos, de pessoas ao redor, de irmãos malucos gritando ou qualquer ruído senão o vento assobiando em seus ouvidos; Suspirou profundamente, gozando cada segundo de tudo aquilo.

— Não sei direito o que posso ou não te dizer — Arthur começou estragando um momento perfeito na vida da garota —, mas tenho certeza que você precisa saber: As pessoas dessa cidade, em maioria, são lobos na pele de cordeiros. Eu não confiaria nem na minha própria mãe nesse lugar.

— E de repente confia em mim? — desdenhou.

Ainda que nunca tivesse mantido muita confiança nas pessoas ao seu redor, era estranho pensar em viver alerta, como um falcão.

— Não coloco minha mão no fogo por você, gracinha — alfinetou —, mas tenho uma dívida com alguém e estou pagando. Facilite minha vida e pare se meter em problemas!

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Charlotte revirou os olhos, acabara de ser chamada de criança que precisa de babá. Desde que se lembra por gente, ela não dependia dos outros, pelo contrário os outros sempre dependeram dela. Seus irmãos, sua própria mãe quando estava num nível que desse para chegar perto dela sem virar saco de pancadas, seu pai dependia involuntariamente dela para manter a casa em pé e sua mãe no minimo viva, para fazer aquele lugar cheio de garrafas velhas de bebida parecer uma casa perante as frequentes visitas do Conselho Tutelar.

— Como se eu precisasse de ajuda — resmungou para si mesma. — Então só posso confiar em vossa ignorância?

Arthur não se importou em soltar uma gargalhada.

— Você é meio atrapalhada — brincou. — Confiança e crença são duas coisas bem diferentes, eu só preciso que acredite em mim o suficiente para que eu possa te provar o que estou te dizendo amanhã, não preciso de fé alguma de sua parte depositada em mim, é preciso fé nas pessoas para confiar nelas.

Ela notou que apesar de ele estar zombando da cara dela, seu tom era sério, sinal clássico de quem já vivenciou algo hostil na pele por conta de um passo errado. Não disse mais nada até que o falcão pousasse a uma distância segura de sua casa, ainda irritada com o rapaz que insistia em manter-se provocando-a.

Deu graças a Deus no instante que seus pés tocaram o chão, soltando um suspiro de alívio. Arthur também desceu do falcão, para surpresa dela, e começou a acariciar a cabeça do animal tranquilo.

— Sei que você confia muito na sua família. Não vou te dizer para deixá-los de lado, mas confiança cega é perigosa — comentou a fitando de soslaio. — Tome cuidado até com sua sombra e, se realmente quer embarcar nesse mundo louco de magia e tragédia, esteja aqui. Amanhã, por volta das oito da noite, vou te mostrar algo.

***

— Você por acaso sabe o significado da frase: Se atenha a vigiá-la de longe?! — E mais um soco direto no estômago. Arthur não tinha mais muita consciência da situação depois dos últimos socos na cabeça.

— Eu acho… — Sarah tentou contornar a situação com cautela, não é bom estar perto quando Kai está irritado. — Que ele entendeu bem até demais…

O homem largou Arthur que despencou no chão como um saco de lixo, tossindo e tentando assimilar o ambiente, se encontrava na casa de sua irmã mais velha, que estava tentando novamente salvar a pele dele.

— Acha que sou cego? — provocou. — Eu sei muito bem quem ela é, e sei muito bem o porquê quer manter ela longe disso. Mas adivinha só? O coelhinho indefeso estava entrando na boca do leão sem nem ter noção — Tossiu um pouco, enquanto tentava levantar — Se eu não a tivesse tirado de lá, só os Deuses sabem o que teria acontecido!

— Você acha que vai me ensinar algo, garoto? — Kai se virou, o fitando por cima como sempre. — Quantas vezes tenho que te dizer? Ela não é indefesa.