POV Effie

Pixie move os dedos habilmente com suas agulhas de tricô. Olho pras minhas próprias mãos e só vejo uma maçaroca enrolada pelos meus pulsos.

– É assim? – Levanto as mãos e mostro o meu...hum,trabalho pra ela,um pouco envergonhada.

Pixie suspira e olha séria pra mim.

– Eu preciso responder?

– Ah, eu desisto. – Suspiro e deixo o tricô na mesinha ao meu lado. Eu sempre fui péssima com costura e afins, mas tentei tricotar, afinal, não havia muita coisa pra fazer agora que a Capital inteira está atrás de mim.

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O ronco no meu estômago, que tento tanto ignorar, fica mais forte do que nunca. Cravo as unhas na poltrona branca manchada, fazendo ainda mais buracos no móvel,tentando me controlar.Só posso comer daqui a algumas horas,segundo o que eu Pixie combinamos sobre racionamento. Como o povo dos distritos consegue ignorar essa fome insuportável? Pra mim, uma pessoa que nasceu e cresceu na Capital sem nunca sentir fome sem ser por causa de alguma dieta para perder peso, está sendo bem difícil.

Meu estômago ronca mais uma vez e eu desisto. Me levanto e abro a porta dependurada do armário com força, pego um pote de manteiga de amendoim, abro e lambuzo os dedos com a pasta e enfio na boca. Pego uma fatia de pão de fôrma e uma colher, jogo metade do conteúdo do pote por cima e dou longas dentadas no pão. Pronto, tomara que seja o suficiente para fazer o meu estômago calar a boca.

– Para de comer tanto!Quer acabar com o estoque que eu levei séculos pra fazer? – Pixie reclama. Ela sempre reclama comigo quando tenho esses surtos de fome. Credo, agora sei como Katniss e Peeta se sentiam quando eu os perturbava com algo relacionado à boas maneiras. Isso deixava qualquer um louco mesmo.

– Essa guerra toda me deixa com fome, sabia? – Lambo a colher só pra provocá-la e rimos juntas. Há algumas semanas, eu estremeceria só de me imaginar em ser tão mal-educada desse jeito.

Bem, boas maneiras não ajudam muito quando você está numa guerra, não é?

– Eu ainda não consigo acreditar que você conseguiu juntar tudo isso. – Olho à minha volta. Há centenas de latas e outros alimentos não perecíveis enfiados num armário gigantesco e alguns outros poucos móveis velhos e descascados, além de um rádio e uma televisão que só funciona com um negócio chamado pilha, aonde há uma pequena carga de energia contida nele. Eu nunca ouvi falar nisso, deve ter caído em desuso há muito tempo.

Mas, comparada à possível tortura que eu estaria sofrendo agora se não fosse por Pixie, isso aqui é a melhor hospedagem do mundo.

– Eu sempre te disse que o mundo que você conhecia podia ruir por uma coisa bem boba.

Eu suspirei. Era verdade. Quem diria que um punhado de amoras poderia derrubar uma nação inteira?

Minha vida tinha virado de cabeça para baixo desde aquele dia que eu acordei no quarto de Haymitch Abernathy.Argh, só de pensar nele uma onda de preocupação e nojo atravessa o meu corpo.Eu não consigo me deixar de perguntar se ele está bem e de desejar secretamente que ele esteja numa cela tão imunda quanto ele por ter me deixado aqui à própria sorte.

O engraçado é que se eu e ele não tivéssemos tido aquela briga horrível um com o outro, eu jamais teria saído chorando e correndo do Centro de Treinamento – o lugar aonde todos que faziam parte dos Jogos de uma maneira ou de outra (mentores, acompanhantes, avoxes...) eram suspeitos de traição – ou ido para a casa de Pixie a tempo de assistir Katniss (Katniss) flechar o campo de força da arena. Haymitch salvou a minha vida no final das contas.

Ainda me lembro de quando eu e Pixie nos entreolhamos quando a televisão saiu do ar:

– Vamos – Pixie foi a primeira a acordar do estupor. – Nós temos que fugir.

– Pra...pra onde? – eu balbuciei. Eu sabia que eles viriam me buscar, eu era do time de Katniss, eles não deixariam livre.

– Meu pai construiu uma casa bem distante do centro da Capital. Ela já está abandonada há algum tempo, então não vão nos procurar lá. – Ela se levantou do sofá rapidamente e foi para o quarto, voltando com uma mala enorme e começou a conferir o dinheiro em uma bolsa. – Os meus pais faziam parte de um grupo que planejavam derrubar o Snow e foram descobertos e mortos. – Ela engoliu em seco. – Acharam que eu era muito pequena para não ser influenciada por eles na época que eles morreram, mas se enganaram. – Pixie fechou o zíper da mala. – Vamos, Effie.Ainda temos alguns minutos antes que eles percebam a sua falta no Centro de Treinamento.

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– Mas...e os meus pais?!Eles vão atrás deles assim que descobrirem que eu não estou na minha casa!

– Vão, mas é difícil que eles façam alguma coisa com eles já que você não fala com os seus pais há onze anos. Effie, nós precisamos ir.

– E você?!Você vai correr o risco de levar uma fugitiva da Capital com você? – eu estremeço.

– Eles mataram os meus pais quando eu tinha cinco anos, Effie. – Os olhos dela estavam determinados. – Eu espero isso há trinta anos. Não tenho nada a perder.

Então eu me lembrei da garotinha, sempre chorona e quieta, que eu tinha conhecido na sala da diretoria.Aquela garota que nunca falava sobre os pais e que tinha medo de tudo. Aquela garota que eu só tinha descoberto que era filha de rebeldes agora.

Os chiados da televisão pararam. Algo filma o Distrito 12,um aerodeslizador talvez.E então vários outros aerodeslizadores aparecem e começam a jogar bombas em cima das casas.As pessoas gritam pela rua enquanto a terra explode e a morte cai do céu.

Vamos, Effie – a voz de Pixie é a única coisa que me faz desgrudar os meus olhos horrorizados da tela.

Consegui mover os meus músculos da perna e saí do sofá. Eu não podia sequer ir à minha casa pegar as minhas coisas. Pixie pegou as chaves do carro e partimos.

E agora aqui estou eu, sem peruca ou maquiagem e com uma das roupas de Pixie que ficavam largas demais em mim, sem poder sair dessa casa com medo de que qualquer vizinho nosso desconfiasse da nossa presença. Já perdi a conta de quantas vezes eu olhei para a porta temendo que os soldados da Capital entrassem. Os meus pesadelos têm ficado cada vez mais frequentes. É sempre o mesmo sonho: revejo o Distrito 12 sendo devorado pelas chamas, mas dessa vez é Haymitch quem aparece nos meus sonhos e implora por ajuda. Então percebo que estou numa cela escura e que estou vendo Haymitch morrer pela televisão sem que eu possa fazer nada.

Será que os soldados da Capital teriam pegado o Haymitch?

Ora,deixe ele para lá.Ele deve estar bebendo em um lugar qualquer enquanto você está se preocupando com ele.Esqueça,Effie.

Pego o almanaque de palavras cruzadas que eu estava fazendo antes de (tentar) tricotar e seguro uma caneta com a outra mão. Com dezessete letras, ”o vitorioso encrenqueiro do D12”. Ah, pelo amor de Deus!

– O que foi? – pergunta Pixie quando eu jogo o almanaque com força de volta à mesa.

– Nada! – cruzo os braços como uma criança mimada. Eu e Pixie estamos com a mesma aparência de quando éramos crianças, aliás: Ela com a sua habitual trança e eu com o meu rabo de cavalo no topo da cabeça. – Quer dizer...é tudo o que está acontecendo!

– Acalme-se,Effie – Pixie larga as agulhas e pega um pacote de biscoito. – Sei que não é fácil, mas vamos ficar bem. Esse estoque pode durar meses, se nos esforçamos, e temos uma televisão que vai nos avisar tudo o que está acontecendo.

Ah, é. Pixie começou a estocar comida e coisas necessárias para a nossa sobrevivência assim que viu o truque de Katniss com as amoras. Eu não sabia como ela previu o que ocorreria, mas, parece que a minha amiga nunca foi a pessoa que eu pensava ser.

O problema é que havia guerras que duravam muito mais que meses. Ainda me lembro daquele livro de história e do capítulo sobre uma guerra que durou mais de cem anos. E Pixie só havia preparado um estoque para uma pessoa, ou seja, tudo acabaria mais cedo. Por quanto duraríamos até que a comida acabasse?

– Esse é aquele biscoito nojento? – Franzo a testa quando vejo o pacote laranja nas mãos da minha amiga.

– É sim, eu sei que você AMA esse biscoito. – Ela ri e abre o pacote. Era a única coisa que estaria no estômago dela nas próximas quatro horas.

O cheiro enjoado do biscoito me faz ter náuseas. Ponho a mão na boca e me levanto da poltrona a tempo de chegar à privada do banheiro e vomitar toda a refeição racionada que eu tinha comido. Tusso ao sentir a bile queimando a minha garganta,me levanto,dou descarga, lavo a boca na pia e volto para a sala.

– Minha nossa, Effie! – Pixie exclama. – Eu sei que você detesta esse biscoito, mas não sabia que odiava TANTO assim!

– É – me encosto no batente da porta improvisada que separava o banheiro da sala, ainda meio enjoada. – Eu acho que foi alguma coisa que eu comi nesses dias...

– Effie,já é a terceira vez que você vomita em dois dias!

– Eu vou ficar bem, não se preocupe. Você não tem um remédio para enjoo, tem?

– Tenho – A comida ainda não era um problema, mas os remédios eram poucos por aqui. Eu e Pixie combinamos de racionar tudo, principalmente os remédios, mas eu iria acabar tendo um sério problema de estômago se eu não tomasse alguma medicação. Ela se levanta e pega um kit de primeiros socorros de uma mesa e dá para mim. Engulo a pílula com um gole à seco mesmo. – Me diga, além dos enjoos e aquele desmaio de ontem, o que você tem?

– Nada demais – balanço os ombros. – Só me sinto muito cansada e ando comendo demais, daqui a pouco vou virar um botijão. É só o estresse.

Pixie me encara por alguns segundos como se estivesse me analisando

– Não, Effie – ela olha seriamente para mim. – Não é o estresse. Você está grávida.

– Grávida?! – grito. – Eu não posso estar grávida!Eu não tenho um namorado há mais de um ano, você sabe disso!

– Effie,esses são os principais sintomas da gravidez!

– Não!Pode ser qualquer outra coisa!

– Você não está pensando direito, Effie! Claro, não dá pra ter certeza sem um exame, mas é quase certo!

Olho para ela, tão confusa quanto eu. Minha cabeça girava e eu achava que iria desmaiar. Seguro a madeira do batente com força tentando não vomitar de novo.

– Espera, Effie.Se você não namora há um ano e não sai com ninguém desde então...quem é o pai dessa criança?

Oh, não!Eu não acredito nisso!Isso não pode estar acontecendo!Eu, Euphemia Marie Trinket, grávida do homem mais nojento, cretino, porco e imundo de Panem.

– Haymitch...Abernathy – minha voz quase morre na minha garganta.

– O mentor de Katniss Everdeen? – Pixie arregala os olhos.

– Sim! – Me jogo na poltrona – Aquele cretino que me humilhou da última vez que nos vimos!

Ela piscou algumas vezes, compreendendo. É claro que compreendia, fui eu mesma quem contei tudo o que havia acontecido naquela fatídica manhã, eu, que cheguei com os olhos inchados de tanto chorar, sem maquiagem, com as roupas do lado do avesso e com a minha peruca torta.

– E foi só uma vez, mas que droga! Que azar! – Não!Eu não posso estar grávida justamente de Haymitch!Isso é...um absurdo! É muito azar!– Desabo na poltrona, derrotada.

– Effie Trinket e sorte não combinam na mesma frase, lembra? – Em qualquer outra situação eu sorriria, mas agora não.

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– Ai,Pixie... – choramingo. – Haymitch me odeia. Ele sempre me odiou. E agora eu estou esperando um filho dele! Ele vai me odiar mais ainda!

– Ele não vai odiar o filho de vocês, Effie, ele não seria cruel a esse ponto.

– O problema é que ele está enfiado em qualquer lugar em Panem e eu estou aqui!Estamos no meio de uma guerra e mesmo que eu o encontre, eu nem sei se vou conseguir olhar na cara dele depois de tudo que ele falou pra mim!

A televisão liga sozinha, como sempre faz quando há algum boletim especial. Da última vez, a repórter anunciou que alguns produtos já estavam em falta na Capital, como os frutos do mar do Distrito 4. Eu e Pixie nos empertigamos na cadeira, atentas. Uma repórter aparece na tela,dá um boa noite e anuncia:

– Autoridades descobriram que Plutarch Heavensbee,Finnick Odair,Beete Latier,Katniss Everdeen e Haymitch Abernathy;os traidores de Panem,estão refugiados no Distrito 13,um distrito que já deixou de existir há muito tempo e que nós só tomamos conhecimento da sua existência agora. Os rebeldes Johanna Manson,Peeta Mellark e Portia Handson foram capturados.Alguns dos traidores ainda estão desaparecidos como Euphemia Trinket,a apresentadora da Colheita no Distrito 12...

Não consigo nem ao menos prestar atenção no resto ao ver o meu rosto na tela. Ao longo de todos esses anos trabalhando no maior ramo de entretenimento de Panem – os Jogos Vorazes- eu sabia que nem tudo que a Capital dizia era confiável, mas eu duvido muito que eles inventariam a existência de um distrito desconhecido se essa mentira pudesse facilmente cair por terra. E agora eu tenho certeza que não posso sair dessa casa.

E agora eu tenho a certeza de que Haymitch me deixou aqui de propósito.

– ...se identificarem qualquer um deles,contate as autoridades.Boa noite.

A tela volta a ficar escura. Pisco após alguns segundos olhando para a tela preta.

– Aquele...aquele...filho da puta! – Berro e começo a dar voltas em círculos pela saleta. – Como ele pôde me deixar aqui?!Por que ele não me avisou?!

– Effie,calma...

– Não me manda ficar calma! – eu grito. – Eu tinha um fiapo de esperança que ele só fosse mais uma vítima, de que Plutarch tinha planejado tudo sozinho, mas agora eu sei que aquele cretino sempre soube do plano! Que ele me deixou aqui pra morrer! – desabo de volta na poltrona e começo a chorar. Eu sabia que Haymtich me odiava, mas não sabia que ele me detestava a ponto de querer que eu morresse. Ah, não, ele tinha me dito naquele dia que se eu morresse não faria falta nenhuma. Ele sempre jogou isso na minha cara, eu que fui cega o bastante para achar que ele gostava um pouquinho de mim depois de todos esses anos trabalhando juntos.

– Effie... – Pixie se ajoelha a minha frente. – Não adianta chorar agora.

– Por que ele não me falou nada, Pixie? Por que ele não me levou pro Distrito 13 junto com ele? – soluço.

– Eu não sei. Mas você deve ser forte, Effie.Por você e pelo seu filho.

Meu filho. O filho de Haymitch. Ainda é cedo demais e sei que é invenção da minha cabeça, mas sinto algo se mexer no meu ventre.

– Eu vou pro quarto – digo.

Pixie assente silenciosamente e me deixa passar. O quarto é só um cômodo com dois colchonetes no chão e um criado-mudo, mas deve ser melhor do que uma cela úmida aonde Peeta deve estar agora. Peeta. Ele também foi enganado, assim como Katniss, assim como eu.

Passo os dedos pela minha barriga. Eu tinha quase trinta e cinco anos, não era casada e o meu trabalho como acompanhante não me deixava formar uma família, então, eu nunca achei que um dia eu teria um filho. E agora eu teria um que era do homem mais cretino de Panem e que não ligava se eu estava viva ou morta.

Lembro-me das palavras de Pixie “você deve ser forte, Effie.Por você e pelo seu filho.”

E eu seria forte. Por nós dois.