Catturato

Encaminhado


'' Acho bom que você saiba o que está fazendo'' Pensei, sentindo meus tornozelos afundarem na areia quente.

'' Eu sei'' Respondeu Ian distraidamente, tentando entender onde estávamos. '' Ok, acho que aqui já está bom de norte. Vá para nordeste'' Comandou.

Obedeci e seguimos alguns metros em silêncio. Os músculos das minhas coxas pulsaram dolorosamente e eu parei por instinto, deixando um gemido baixo escapar pela minha garganta quando minhas canelas foram envolvidas pela areia fervendo.

'' Não seja fresco'' Repreendeu Ian '' Minhas pernas aguentam bem mais do que isso ai''

'' Ah, sinto muito, Sr. Pressa'' Ironizei.

Ian tinha estado insuportavelmente impaciente desde que tiramos nossas pernas para fora do meu apartamento, há quase 1 dia e meio, sem permitir uma única pausa que durasse mais do que três minutos.

'' É só porque eu sei que meu corpo aguenta mais do que o que você anda antes de pedir uma pausa de mais de três minutos.'' Explicou Ian calmamente.

Eu duvidava, mas deixei o silêncio encerrar a nossa discussão. Fitei o horizonte que se estendia a nossa frente.

'' Está escurecendo'' Comentei '' Acho melhor continuarmos amanhã''

Minhas veias se encheram de adrenalina e eu senti minhas pernas avançarem um passo, sem qualquer autorização de minha parte.

'' Você realmente devia parar de fazer isso'' Rosnei para Ian

'' Não podemos parar tão cedo'' Disse meu hospedeiro, com a voz boiando em desespero. '' Temos pelo menos meia hora antes de escurecer e se pararmos durante a noite vamos ser comidos por coiotes ou...'' Ian disse tudo isso num fôlego só e eu senti seus gritos se chocarem com força contra o meu crânio.

'' HEI!'' Acho que eu gritei de verdade, mas como estava em companhia apenas de algumas toneladas de areia, não achei que tivesse atraído a atenção de alguém. '' Você pode, por favor, me explicar o porquê disso?'' Eu estava perplexo com a reação exagerada de meu hospedeiro.

'' Eu... Eu só...'' Eu consegui sentir meu cérebro se contorcendo dentro do crânio enquanto Ian tentava inventar uma desculpa plausível para seu comportamento anterior.

'' Eu não quero uma desculpa, Ian. Eu quero a verdade'' Pedi, tentando fazer minha voz soar calma.

Eu podia sentir o familiar medo de compartilhar informações, vindo de Ian. Suspirei e deixei que minhas pernas cedessem até a areia quente, ignorando totalmente o gemido que ressoou dentro do meu cérebro.

'' Por que você tem tanto medo de confiar em mim?'' Perguntei sem conseguir impedir a mágoa de se instalar no meu coração.

'' Eu só... Olha, é complicado. '' Murmurou Ian.

'' Não pode ser tão complicado assim'' Rebati.

'' Tem razão, não é, mas você... Você nunca entenderia. '' As tentativas de se explicar de Ian eram quase tão frustrantes quanto sua relutância em não me ver como um inimigo.

Deixei que minhas costas se chocassem contra o solo e fechei os olhos, permitindo que minhas retinas relaxassem depois do contato prolongado com o sol.

'' Algum dia você vai confiar em mim?'' Perguntei, sentindo o peso de um dia inteiro de caminhada pesar nas minhas costas.

'' Eu confio em você'' Um pequeno choquinho de culpa atravessou meu corpo ao mesmo tempo em que três palavras saltavam a barreira que Ian tinha construído entre nós dois: Não tenho tempo.

Abri meus olhos para o céu alaranjado do crepúsculo, subitamente alerta.

'' Por que você não teria tempo para confiar em mim? Ian?''

'' Hei, calma, não foi o que eu quis dizer'' Apressou-se a dizer Ian ''O que eu quis dizer foi que... Que não temos muito tempo antes de Peg ter o bebê. Era por isso que eu estava com tanta pressa'' A última parte saiu rápida e baixa, como se meu hospedeiro tivesse dito aquilo antes que pudesse se arrependesse.

Meus músculos suspenderam meu tronco do chão automaticamente.

'' Há quanto tempo ela completou nove meses?'' A imagem de Peg, inchada e sorridente, preencheu minha memória e foi rapidamente seguida por outra, onde uma mulher humana desconhecido gritava em agonia enquanto tentava expelir um bebê humano de dentro de seu ventre.

Ian deu uma risadinha irônica e, inexplicavelmente, uma pequena onda de alívio invadiu minhas veias.

'' Ontem'' Me lembrou sarcasticamente e eu senti o sangue encher minhas maçãs do rosto. Óbvio, por isso eu estava aqui.

'' Você tem certeza que a sua colonia vai nos emprestar um carro?'' Perguntei, em parte por que aquilo me preocupava e em parte para desviar o assunto.

'' Vão, quando souberem que eu ainda estou aqui''

'' O que garante a eles que eu não estou mentindo?''

'' Eles sabem que almas não sabem mentir'' Riu Ian e eu quase conseguia sentir o gosto da piadinha interna dele.

'' Ah, é. Peg'' Me lembrei.

'' Eu ainda não entendo porque ela quer viver com a sua colônia. '' Disse, sentindo minhas sobrancelhas se moverem até o meio da minha testa.

'' Não é pior do que viver com a sua colônia'' Disse Ian na defensiva.

'' Ah, é claro. Viver numa caverna cheia de humanos selvagens a dois dias de caminhada de qualquer civilização é realmente compatível a viver em uma serena cidade de almas.'' Ironizei.

Ian bufou baixinho e se recusou a responder, porque sabia que eu estava certo.

Gastei um minuto ou dois pensando na história que Ian tinha me contado sobre a primeira vida humana de Peregrina. Era loucura, com toda a certeza, que uma alma seguisse uma consciência que nem deveria existir até o fim do mundo, diretamente para uma colônia dos seres que sua própria espécie considerava perigosos e mais loucura ainda que decidisse deixar o próprio corpo por pena da hospedeira.

Ah, sim, e depois voltasse a viver na mesma comunidade de humanos e até engravidasse de um deles.

Subitamente, a história me pareceu vazia, como se um pedaço não estivesse conectado no outro. Ian estava distraído pensando no bebê que Peg teria daqui a pouco tempo por isso, percebi, por isso não me respondeu.

Pensei naquilo por algum tempo até que percebi qual era a informação que faltava.

'' Ian?''

''Hum?''

'' Como Peg saiu de um corpo e foi posta em outro sem um curandeiro?''

'' Quê? Ah, ela... Ela fugiu e foi até um curandeiro de Phoenix .'' Algo não estava certo.As palavras de Ian trasbordavam pânico e era óbvio para mim que ele estava mentindo. A desconfiança invadiu meu sistema e eu entrei no jogo dele, instintivamente, para saber o que escondia de mim.

'' É mesmo? E como ela conseguiu fugir do hospital com uma humana selvagem?'' Eu me surpreendi com o tom calmo que minha voz tinha assumido.

'' Hm, eu não sei d-direito. Parece que Peg comprou um óculos escuro para Melanie e... E depois elas voltaram juntas'' Continuou Ian.

'' Hm, que interessante. Você sabia que todos os hospedeiros que são descartados por almas são ocupadas por outras ou, se o hospedeiro estiver danificado de algum modo, ele é descartado?'' Pressionei.

'' Ah! Talvez Peg tivesse mentido sobre Melanie e fugido com ela antes da outra alma ser inserida?'' Arriscou Ian e eu quase conseguia sentir sua consciência tremer por causa do pavor.

'' Ora, mas isso seria impossível! A nova alma é introduzida imediatamente após a saída da antiga'' Deixei minha voz se equilibrar entre o tom incrédulo e o interessado.

Senti Ian tentar remover a barreira entre nós, provavelmente para ver aonde eu queria chegar com aquele assunto, mas eu a segurei no lugar. Isso me deu uma idéia.

'' Eu...Ham, eu nunca conversei direito sobre isso com P-Peg. Acho que ela causou algum problema técnico, eu realmente não sei''

'' Um problema técnico? Para cada máquina e cada Curandeiro temos dois reservas. Ela deve ter gastado um tempo razoável para danificar o original mais todos os reservas.''

'' É, eu acho que sim'' Uma onda de alívio veio até mim quando Ian pensou que eu tinha me convencido de sua história torta.

Assim que o senti relaxar, eu baixei a barreira. A memória que eu pesquei provavelmente vai me assombrar pelo resto dos meus dias.

'' Me vi parado em uma câmara de paredes rochosas, com uma longa fenda no teto que deixava entrar a luz do sol. Haviam pequenas prateleira cheias de todo o tipo de coisa nas paredes do canto esquerdo e macas vazias, suspensas, do lado direito.

Percebi, então, que não estava sozinho. Haviam alguns humanos, a maioria homens, circulando uma das macas (meu hospedeiro entre eles), porém antes que eu pudesse olhar para baixo uma voz feminina atraiu minha atenção.

- Doc, cadê o sem dor?- Eu me virei em direção ao som e me surpreendi ao ver Melanie ao meu lado. Não, Peg, a julgar pelo brilho prateado em volta das pupilas.

- Vou pegar para você – Respondeu um homem alto e de meia idade se virando para uma das prateleirinhas e pegando um pequeno frasco de vidro que continha inúmeros quadradinhos finos e esbranquiçados.

Me perguntei como aqueles humanos tinham acesso a equipamentos médicos fabricados pelo meu povo até que me lembrei que a alma, Peg, fazia parte da colônia humana. Aquilo me incomodou um pouco e imaginei o que a vendedora que trabalhava na farmácia pensaria se soubesse o destino dos remédios que estava vendendo.

Voltei a realidade a tempo de ver Melanie-Peg escorregar um dos quadradinho pela lingua da humana inconsciente deitada na maca. Me perguntei se estaria doente.

Peg fechou a boca da humana gentilmente e depois a olhou hesitante, como se não tivesse certeza sobre o que fazer a seguir. Virou um pouco o rosto na direção do humano que eu reconheci como Jared, mas seus olhos nunca deixaram a humana.

- Jared, poderia virá-la de barriga para baixo?

Ele se curvou para frente imediatamente e, gentilmente, mover a humana para a posição pedida por Peg.

Outro humano, que eu reconheci como Jeb, pegou uma lanterna e a acendeu, apontando seu facho de luz para o pescoço da mulher da maca. Peg olhou em volta um pouco confusa antes de voltar sua atenção para a mulher de novo.

Sua respiração acelerou e ela hesitou novamente. Ela engoliu em seco e se virou para o homem que havia chamado de Doc antes.

- Doc, eu preciso do Curar, Limpar,Fechar e Suave. – Disse com a voz trêmula.

Se eu tivesse controle sobre o corpo do meu hospedeiro, teria erguido as sobrancelhas para aquela nova informação. O que mais aqueles humanos tinham do nosso povo?

- Bem aqui – Disse Doc empilhando os frasquinhos ao lado de Peg.

Ela os analisou por meio segundo e depois moveu suas mãos trêmulas para os cachos escuros da humana, removendo-os da base da nuca. Pude ver uma fina cicatriz rósea separar a base do crânio da humana de sua nuca e, se fosse possível, meu queixo teria caído.

Por Deus, era outra alma! Quantas mais viveriam ali, naquela colônia humana e clandestina no meio do nada?

- Doc, você pode... Eu não quero fazer. – A voz baixa e trêmula da Peg voltou aos meus ouvidos, os ouvidos de meu hospedeiro e, com alguma dificuldade, eu tirei os olhos da linha que definia o meu povo do deles.

- Sem problemas, Peg – Respondeu Doc, pegando uma faca fina e movendo até o pescoço da humana-alma. Eu quis gritar, perguntar o que ele ia fazer com aquela faca tão próxima ao pescoço de uma alma. Peg não permitiria que eles a matassem, permitiria?

Para meu alivio, Doc congelou por um momento e murmurou algo que não consegui entender, ainda segurando a faca a centímetros da nuca da mulher.

- Não é necessário, nós temos Limpar – Respondeu Peg gentilmente. Meus olhos se moveram até suas mãos morenas e vi que seguravam o cabelo da mulher devidamente afastados da nuca para que Doc pudesse fazer seu trabalho sujo. Seja lá qual fosse ele, eu não duvidava que fosse ruim.

- Eu sei – suspirou ele – de quanto espaço você precisa?

Senti meu hospedeiro dar um passo para mais perto da mulher, curioso.

- Só o comprimento da cicatriz. É o suficiente. – Respondeu depois de calcular por meio segundo.

Ele levantou uma das sobrancelhas, pouco convencido.

- Tem certeza?

- Sim. Oh, espera – atrapalhou- se ela.

Eu estava totalmente confuso. O que eles estavam fazendo? Por que iriam reabrir o caminho pela qual a alma tinha se acomodado naquela hospedeira?

- Jared, você poderia pegar um daqueles tanques para mim? – Pediu sem tirar os olhos escuros do pescoço da mulher.

Por sorte, meu hospedeiro virou o pescoço para olhar a que ela se referia e eu pude ver os brilhantes criotanques encostados na parede rochosa. Eu quis soltar uma exclamação, um grito de surpresa, de indignação, porque agora eu entedia o que aquela alma louca e sádica faria.

Assisti escandalizado enquanto Jared abria o criotanque, deixando-o pronto para a alma que em breve teria seu hospedeiro roubado, provavelmente contra sua vontade, por uma de sua própria espécie. Pura fúria se derramou sobre minhas veias como veneno e eu senti uma estranha vontade de gritar com Peg, de feri-la com palavras duras. Ela nos traíra! A todos nós, a sua própria espécie!

Eu mal reparei quando Peg tateou pela nuca da mulher, abaixo da pele. Minha raiva estava deixando minha visão embaralhada. Uma luz prateada escapou por entre os dedos morenos de Peg e meu hospedeiro esticou o pescoço para poder olhar mais de perto.

Uma pequena criatura, prateada e aveludada, se torcia nas mãos de Peg como se soubesse que estava sendo removida de seu hospedeiro sem sua autorização. Peg se curvou e deixou que a alma escorregasse até a base do criotanque.

- Durma bem, pequenina – Disse docemente''

Ian me remover de suas memórias, mas mesmo ele sabia que era tarde demais. Meu coração pulsava com força e minha respiração tinha se acelerado a ponto de doer. O sangue rugia em meus ouvidos como o mais feroz dragão e meus dentes se encostavam com tanta força que eu quase conseguia sentir que meu crânio rachando.

Mas isso não importava. Não depois do que eu tinha ficado sabendo.

'' Olha, isso não é o que você...'' Começou Ian, tentando inventar uma desculpa para aquele absurdo, aquela atrocidade.

'' Ela nos traiu'' Foi só o que eu consegui reproduzir em palavras.