Castelobruxo

Capítulo dezoito - Copos-de-leite


As caiporas tinham uma propriedade mágica bastante interessante: elas eram quentes espiritualmente. Esse era o motivo, por exemplo, dos alunos terem suportado todas as adversidades que elas causaram no período que habitaram o castelo. Elas traziam tranquilidade, fazendo com que quem quer que estivesse perto se sentisse protegido e calmo. São seres tão antigos quanto a própria floresta, guardiões por natureza, e fizeram muita falta quando deixaram Castelobruxo. Sem eles, os alunos começaram a sentir o verdadeiro medo dos ataques.

Outro incidente como o Mervir não voltou a acontecer, tanto porque nenhum outro professor se permitiria ser imobilizado tão facilmente, quanto porque qualquer aluno fazendo magia fora das aulas perigava ser expulso. Agora os boatos não circulavam tão energicamente, mesmo quando descobriram um pedaço da roupa de Amélia agarrado numa árvore próxima ao castelo. Estavam todos mergulhados na incerteza, alguns falando inclusive em deixar o castelo, não fazer aquele segundo período do ano, e só retornar quando el Tunchi fosse capturado. Amadeus estava entre eles, o que significava que Mateus também iria.

— Eu não quero ir — Mateus se explicou. — Mas se ele for, meus pais vão querer que eu vá também. Nem imagino o que minha mãe diria se ele chegasse lá desacompanhado.

Nicolás tinha dito que ficaria em Castelobruxo até quando fosse possível, e Alex sabia que se precisasse de ir embora, provavelmente não poderia mais voltar. Para Alex, na verdade, a partida das caiporas culminou no aumento de pesadelos, e também na variação deles.

Agora ele não sonhava apenas com estar perdido na floresta, ou sobre usar um copo-de-leite para se defender. Eles se tornaram extremamente reais, como ele estivesse de fato vivendo aquilo nos breves momentos do pesadelo. Numa noite anormalmente fria, Alex adormeceu ao barulho de Nicolás matando mosquitos no quarto, e o pesadelo que teve fora o mais perturbador entre eles.

Começou com ele andando na floresta, já sabendo que estava perdido. O que o assustou, no entanto, não foi o cenário macabro ou a sensação de que estava sendo observado. O mais aterrorizante era o fato dele saber de coisas que normalmente não sabia. Alex se lembrava de um passado que não era dele, de aulas que nunca tivera, e de um conhecimento que ele com certeza não tinha. Em especial, lembrava-se dos professores de Castelobruxo e nenhum deles eram familiares aos que o garoto tinha aula, a não ser um Vicente muito, mas muito mais jovem.

Quando acordou, um nome estava preso na sua memória, tão vivo quanto se fosse o seu próprio: António Regas. Alex foi tomar café e se preparar para as aulas daquele dia, mas por algum motivo esse nome não saiu de sua cabeça. Era como se alguém tivesse gravado em sua mente com um feitiço de cola bastante eficaz. Quando o fim de semana chegou, ele ainda pensava no nome. Decidiu que devia procurar quem era esse tal de António Regas antes que ficasse doido. Ele pediu ajuda aos amigos.

Mateus não podia ajudá-lo porque tinha finalmente conseguido um teste para entrar para um dos times de Dorteaqua. Agosto estava próximo, e caso coisas mais graves não acontecessem, eles teriam a temporada dos jogos e ele precisava treinar. Nicolás, por outro lado, estava com seu tempo livre, agora que tinha dado um tempo na fabricação dos chicletes. Aceitou de bom grado acompanhar Alex na visita à biblioteca no sábado à tarde.

Eles foram direto para as mesinhas na área silenciosa e Alex fez a pesquisa em voz alta. Minutos depois um pesado livro vermelho veio flutuando a poucos centímetros do chão, pesado demais para voar livremente. Pousou com um baque na mesa, levantando um pouco de poeira.

— É o livro dos feitos célebres dos alunos — disse Alex, dando uma olhada rápida no título. — Então António Regas fez alguma coisa de importante enquanto esteve aqui.

— Tem certeza de que era este o nombre? — Nicolás perguntou. — É bem comum.

— Absoluta.

Alex abriu o livro e leu o índice. Como a maioria das coisas em Castelobruxo, aquele livro não estava organizado por ordem alfabética. Na verdade, os nomes apareciam de acordo com a importância do feito mágico para a escola ou a comunidade. Os primeiros, de séculos atrás, sempre envolviam a descoberta de uma cura para venenos raros ou ações heroicas. O primeiro António Regas que Alex achou tinha sido o primeiro a descobrir uma sala secreta no quarto andar, completamente coberta por pinturas raras de culturas há muito esquecidas. O segundo era inventor de um feitiço complicado que fazia cair todos os cabelos da cabeça. Era ótimo para a fabricação de perucas, segundo a nota de rodapé. O terceiro era o António que ele estava procurando.

Nascido no Chile, esse António estava nas páginas finas no livro e não tinha mais do que uma linha sobre a descrição do seu feito: invenção do perfume de copos-de-leite (1859). Alex não precisou de ler duas vezes para ter certeza de que aquele era o António de seus sonhos. Então ele não estava compartilhando sonhos com alguém atualmente no colégio; de alguma forma ele sabia que quando sonhava, era a visão daquele ex-aluno que ele via.

— Impossível — disse Mateus, já uma hora mais tarde e reunidos no quarto. — Como você sonharia com algo que aconteceu no século passado?

— Eu não sei — Alex foi sincero. — Mas eu não tenho dúvidas. António Regas foi aluno, esteve envolvido com el Tunchi e com copos-de-leite. Até inventou um perfume com as flores.

— Estranho — Mateus não estava nada convencido.

— Muy extraño — Nicolás concordou.

Alex ficou chateado com os amigos. Ele sabia que era difícil de acreditar que ele estivesse dizendo a verdade, mas afinal de contas há meses atrás nenhum deles imaginava que algo como um Tunchi existia e, no entanto, lá estavam eles lidando com um. Toda essa história começara inclusive por causa do dia em que ele resolveu contar para Sofia sobre seus sonhos. Fora ela quem alertara sobre as semelhanças com a lenda, e tudo mais o que aconteceu. Foi por essa razão que, no dia seguinte à tarde, ele foi à procura de Sofia, o que não foi tão fácil quanto ele imaginava.

Estava andando com Nicolás no refeitório, procurando uma mesa, quando avistou a pajuante sentada sozinha em uma delas. Os dois se aproximaram, mas assim que ela os viu, levantou apressadamente e deixou o local. Eles se entreolharam, sem entender. Pelo o que parecia, agora era ela quem os estava evitando. A semana seguinte foi igualmente tensa. Mesmo sem a aula de tradições mágicas, não houve um momento sequer que Alex pudesse chegar perto de Sofia. A garota simplesmente se tornara inacessível.

— Entrei! — Mateus veio gritando dormitório adentro na segunda-feira à noite. — Eu entrei! Estou num time de Dorteaqua!

Alex apertou a mão do amigo, assim como Nicolás, e Amadeus se levantou da poltrona lá do fundo para vir parabenizar o irmão.

— Fico feliz, de verdade! — disse Amadeus, um tanto irônico. — É uma pena que nós vamos ter que ir embora.

— O quê? Você não está falando sério!

— Estou — Amadeus ia se virar para voltar para seu canto, mas Mateus xingou um palavrão. — Do que você me chamou?

— Você ouviu — Mateus estava quase gritando. — Por que você tem o prazer de estragar as coisas para mim?

— Você... — Amadeus abaixou a voz. — Você estava lá. Você ouviu aquela voz. Acha que alguém aqui tem condições de enfrentar aquilo? Se sim, você tá é louco. Eu não vou ficar aqui para ser morto por um demônio da floresta.

Alex teve de concordar que a experiência que tiveram com certeza foi assustadora demais. No dia seguinte as notícias de que alguns alunos já estavam indo embora correram pelo castelo, e Mateus dizia que não demoraria muito para ele e Amadeus também partirem. Era triste demais pensar que tudo o que Alex tinha sonhado em fazer no castelo não acontecera como planejado e que talvez ele não pudesse sequer estudar na escola mais. Ele estava revirando esses pensamentos deitado na cama quando, sem perceber, começou a adentrar seus pesadelos. Dessa vez, porém, o cenário era inteiramente novo.

As árvores altas da floresta começaram a se afastar lentamente enquanto ele andava na escuridão, dando lugar a paredes de pedra clara e bem iluminadas. Percebeu que estava no interior e Castelobruxo e seu nome era António. Andava apressado, sabia que estava tarde, mas precisava terminar aquilo antes que alguém pudesse impedi-lo. Só ele sabia as consequências daquela proibição.

— Ele é louco.

— Lá vai o maluco.

— João-copo-de-leite!

Diziam os colegas e classe sempre que o viam. Nos últimos meses ele se tornara tão isolado que nem para isso ligava. Seu único objetivo era fazer mais um frasco, só mais um frasco. Tinha passado no jardim superior ao principal, o único do castelo que tinha copos-de-leite, e roubou três. Segurava as flores debaixo do braço, ainda presas nos caules grossos e longos. Virou o corredor do primeiro andar que dava nos laboratórios de poção mais avançados de Castelobruxo. Como esperado, todas as portas estavam trancadas.

Tentou o Alohomora em algumas, mas somente os professores podiam abrir aquelas salas para os alunos. Os estoques de ingredientes ficavam ali, não era de se espantar que houvesse segurança. Não tinha tempo para descobrir uma outra forma para abrir aquelas portas sem deixar rastros. Foi por isso que, na porta mais fina, usou um feitiço de corte e abriu um retângulo na madeira. Ele abaixou e passou pela passagem, entrando na sala de poções onde ele tinha tido muitas de suas aulas.

Postou-se em frente ao caldeirão mais perto, mas não acendeu o fogo. Com a varinha, ele fez as pétalas das três flores se desprenderem e voarem até o interior do caldeirão. Correu até as estantes na parede, algumas delas fechadas magicamente com portinhas de vidro. Ele quebrou a primeira, mas não encontrou o que precisava. Quebrou mais duas e enfim reuniu os quatro ingredientes necessários. Voltou para o caldeirão e na ordem que ele sabia que era a correta, fez a mistura.

Um fogo rosa queimou dentro do recipiente e uma fumaça preta e densa subiu para o teto da sala. Dois minutos depois e um líquido brotou lá dentro, efervescente, tornando-se aos poucos tão transparente e incolor quanto água. Quando já não se via mais bolhas no líquido, ele tirou do bolso o frasco de perfume e tirou a tampa. Mergulhou no caldeirão e encheu-o por completo, enroscando de volta a tampa. Tirou o lacre e borrifou três vezes de cada lado do pescoço. O cheiro entrou em suas narinas quase que reconfortantemente, ele tinha conseguido mais uma vez. Sua felicidade, entretanto, não durou muito tempo. Tinha alguém na porta.

O que restou da porta abriu revelando um bruxo calvo e baixo acompanhado de um aluno mais alto que ele. Pedro tinha contado, isso já era de se esperar. O homem primeiro olhou para Alex parado ali com o frasco na mão, depois para os armários quebrados e o vidro espalhado no chão.

— O que você fez? — ele quis saber, chocado. Alex sabia que esse era o professor Enrique, mestre em poções e herbologia.

O professor tomou o perfume das mãos do garoto e tapou o nariz.

— Dessa vez seus perfumes vão ser confiscados de uma vez por todas — Enrique disse.

— Não! — Alex gritou, mas aquela não era sua voz, saindo grave demais. — Vocês não entendem!

— Ninguém mais aguenta esse cheiro — o professor tinha um olhar de pena. — Limpe essa bagunça. Você vai ter de se encontrar com a diretora Dourado.

Alex sabia que não podia ficar sem aquilo, mas não conseguia lembrar-se do porquê. As paredes escureceram de repente, troncos saltaram das pedras e ele estava mais uma vez na floresta. Desta vez sem qualquer esperança de encontrar o caminho de volta.

— Alex! — Mateus gritou. Era a terceira vez que ele sacudia o amigo, sem sucesso em acordá-lo.

Ele abriu os olhos e viu os rostos de Mateus e Nicolás por cima dele na cama.

— Cara, você estava sonhando com o quê? Seus olhos estavam revirados...

Nicolás imitou como eles estavam, exibindo a parte branca dos olhos. Alex pensou em contar para eles o que tinha acabado de presenciar, mas se lembrou da cara de descrença que eles fizeram da última vez. Disse um “nada” carrancudo e virou para o outro lado, voltando a dormir.

Não sonhou mais com aquilo, mesmo que tivesse tentado. A sensação terrível de desespero que sentira ficou por toda a noite e também na manhã seguinte. Tinha que pedir ajuda para Sofia, mesmo que ela dissesse não. Esperou a aula de poções da tarde terminar e saiu junto dela da sala, antes da maioria dos alunos. Ela não disse nada enquanto ele andou ao lado dela no corredor.

— Eu estou tendo outros tipos de sonho agora — Alex disse.

— Têm a ver com el Tunchi? — ela perguntou, seu tom entregando o seu interesse, mesmo estando olhando fixamente para frente.

— Eu acho que sim.

Ele contou para ela sobre António, sobre ele ter inventado um perfume. Sofia parou para escutá-lo, botando a mão no queixo, pensativa. Alex contou inclusive que Nicolás e Mateus não acreditavam nele completamente, mas a garota ignorou essa parte.

— Esse António... ele com certeza foi perseguido por un Tunchi — ela disse.

— Sim.

— Lembra do que a diretora disse? Um garoto foi morto por um Tunchi aqui na escola quando ela era aluna.

— Disso eu lembro, mas António estudou aqui muito antes da diretora.

— Mas e se ele não morreu? — Sofia olhou para ele. — E se ele conseguiu fugir?

— Bom, do que adiantaria saber disso?

— Ele sabia do Tunchi. Se ele não morreu é porque ele deu um jeito de escapar, ele sabia um jeito de vencê-lo. E se há um jeito de vencer el Tunchi...

— A gente precisa avisar a diretora.

— Sí — Sofia pegou o pulso de Alex. — Mas primeiro, precisamos descobrir se ele morreu ou não.

O único lugar para fazer esse tipo de pesquisa, como Alex já estava habituado, era a biblioteca. Ele nunca descobriria aquilo sozinho, mas Sofia sempre dava um jeito de saber das informações que ela precisava. Ela soube por uma pajuante mais velha que havia um registro mensal de acidentes envolvendo os membros de Castelobruxo, para futuras consultas e pesquisas. Já na parte inferior, ela levou Alex diretamente para a estante onde o registro ficava.

Alex se deparou com o registro de acidentes mágicos da escola: trinta e dois volumes de livros mais grossos que sua cintura, enfileirados cronologicamente, desde a fundação da escola. Sofia pegou com dificuldade o trigésimo segundo e abriu nas últimas páginas, onde escrito a mão estavam as descrições dos últimos acontecimentos trágicos no local. No topo da página estava o ano, o mês nas margens e todo verbete era iniciado com o teor do acidente (morte, desaparecimento, incapacitação, ferimento). O último registro era ferimento, onde um tal de Leo tinha sido chamuscado por um dos boitatás da escola.

Alguns verbetes acima da página eles encontraram o nome de Amélia, dada como desaparecida. Alex sabia que aquele título podia mudar para “morte” a qualquer momento. Engoliu em seco.

— Sí — sussurrou Sofia. — Como pensei, todo tipo de acidente é documentado. Qual é o ano da invenção do perfume mesmo?

— 1859 — respondeu Alex.

A garota voltou muitas páginas no livro e acabou tendo de pegar o volume trigésimo primeiro. Depois pegou o trigésimo e achou o ano da invenção do perfume. Se António tinha morrido enquanto estudava em Castelobruxo, o registro disso ia estar dali para frente. Acontece que aquele trabalho demorou um pouco. Até mesmo o menor dos incidentes que aconteciam em salas de aula era anotado ali, e era muito chato ter de percorrer todos os nomes escritos com uma letra miúda.

Quinze minutos mais tarde, Sofia disse “mierda” e mostrou o que tinha encontrado para Alex:

Morte – António Davila Martinez Regas (1840-1859) – Se jogou da escadaria norte do castelo na madrugada de 21 de outubro, sendo encontrado apenas na manhã seguinte já sem vida.

— Ele não sobreviveu... — Alex disse. Ele sentiu pena do garoto. Os sonhos eram tão reais, ele sentia como se aquele fosse um amigo dele. — Então por que eu estou tendo esses sonhos?

— No sei — Sofia fechou o livro. — Por que você sonharia com a fabricação de um perfume é a pergunta.

— Tá aí! — disse Alex, percebendo uma coisa. — Não era perfume. Era uma poção!

Sofia não entendeu o que ele queria dizer. A maioria dos perfumes dos bruxos era considerada poções, se for levar em conta a forma de preparo e as propriedades mágica que eles apresentavam. Ela mesmo tinha vontade de comprar um perfume caro e importado que deixava o corpo mais leve, quase capaz de flutuar.

— Ele não usava a poção por causa do cheiro. Não é óbvio? Como eu pude deixar isso passar? Ele usava os copos-de-leite para espantar el Tunchi na floresta, então ele deu um jeito de fazer uma poção para se proteger! Ele deve ter ouvido o assobio, respondido, e então estava sob a magia da criatura. Agora tudo faz sentido! E quando tiraram a poção ele por causa do cheiro forte, ele acabou sendo morto.

— Quais eram os ingredientes, você lembra? — Sofia já tinha tirado o caderno de anotações da bolsa.

— Alguma coisa com limão e... — Alex fechou os olhos. Ele viu claramente a mão de António pegar citrus, mirra, bluteria e fisco das prateleiras quebradas. — Citrus, mirra, bluteria e fisco.

— São essências mágicas — disse Sofia, anotando. — Provavelmente atuavam como um intensificador de...

Eles escutaram um barulho como de uma lamparina caindo ali perto. Ficaram em silêncio, depois devolveram o livro para a estante e saíram da biblioteca o mais rápido possível. Já parados na saída da área subterrânea, Sofia se virou para Alex.

— Eu vou tentar fazer essa poção. Se ela funciona contra el Tunchi, nós vamos precisar dela.

— Isso — Alex estava se sentindo animado. Parte disso porque ele e Sofia estavam conversando normalmente. Antes que pudesse se controlar, ele perguntou: — Por que você ficou com raiva de mim? Eu te fiz alguma coisa?

Sofia foi pega de surpresa. Ela pensou um pouco antes de responder.

— Não foi você.

— Então o que...

— Eu não quero falar sobre isso.

Ela disse tchau e subiu as escadas lá para cima. Alex ficou olhando ela até ela desaparecer por completo. Odiava aquela sensação na base do estômago.