Os céus pareciam enfurecidos naquela madrugada escura.

Todas as gotas que formavam a pesada chuva desciam com tanta violência que pareciam descontar sua raiva em tudo o que batessem.

Havia um lago artificial por ali, relativamente grande.

E uma casa não muito distante dele, sobre uma elevação de alguns metros, fazendo a represa parecer-se com o mar, embora sem ondas, e o penhasco, com uma parte do litoral.

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As luzes estavam quase todas apagadas, exceto uma do segundo andar.

A biblioteca.

Ali, três homens jogavam cartas, com as cabeças ainda doendo da ressaca anterior. Era um salão de paredes brancas e chão de madeira, com estantes dispostas ao redor de uma mesa em forma de semicírculo. Cada uma delas seguia o contorno da mesa, formando uma figura parecida com um sol de um desenho infantil se visto de cima.

O longo pôquer estava chegando a seu fim.

Uma alfinetada surgiu.

Era uma voz bêbada, mas consciente do que dizia.

-Meu Deus, Jukka, vamos te falir desse jeito.

Era Emppu, o loiro e baixo integrante do grupo. Olhou com ar de desprezo sarcástico para aquele com quem falara, e levou um tapa no ombro como resposta.

Nenhuma ofensa pessoal.

O terceiro ali era Marco, apoiando o queixo e as tranças da barba com a mão livre. A outra segurava as cartas, que cobriam o sorriso de vitória de seu rosto para quem o visse.

O baixista soltou, deixando na mesa uma mão poderosa:

-Engole essa.

Jukka empurrou algumas moedas e notas a contragosto para a outra quina da mesa, onde Marco se sentava. Resmungou:

-Ah, que droga.

Emppu ficou de pé, dizendo:

-Pois é, já chega. – Empilhava as cartas em um baralho só. – Tô morrendo de sono.

O baterista também saiu da cadeira, espreguiçando-se. Entre o bocejo, falou:

-Eu ainda tenho que ligar lá pra casa...

Jukka esfregou o olho, sentindo os sinais do vinho.

Marco reclamou:

-Você ainda vai conseguir dormir. – Pegou a caixa metálica que acomodava o baralho e abriu-a. – Não prego os olhos hoje.

Emppu riu. Não era só ele que sofria daquele mal, apesar de naquela noite estar quase desmaiando de cansaço. Perguntou:

-Insônia?

O baixista fez cara de desgosto e coçou a nuca por baixo do cabelo preso.

-Você passou essa praga pra mim, diz aí.

-Ah, pode acreditar. – Erno respondeu, em ironia.

Os três estavam de pé, mas só Jukka se despediu.

-Tô indo.

Os outros dois o responderam quase em sincronia:

-Boa noite.

Aquele que ia embora fechou a porta, para não perder o efeito do aquecedor ligado. A sala ficou por alguns segundos em silêncio, até que Marco questionasse:

-Onde estava isso? – Falava da caixa em mãos, olhando ao redor para tentar se lembrar.

O guitarrista estendeu a mão, pegou o objeto e colocou-o num espaço vago de uma estante encostada à parede, onde havia uma janela ao lado. Esta era surrada pela chuva com toda a força.

-Aqui.

Olhou para Marco.

-Não vai nem tentar dormir?

Conformando-se, ele disse:

-Não adianta.

Sentou-se em sua cadeira outra vez, com a mão fechada servindo de suporte para sua testa.

Emppu deu de ombros, mostrando que nada podia fazer. Virou-se para ir embora, e, no meio do caminho, disse:

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-Boa sorte aí.

Nem um pouco feliz, Marco respondeu:

-Até mais.

Erno estava quase se arrastando no curto trecho da mesa até a porta. O outro apenas o observava, até escutar a maçaneta sendo girada e ficar sozinho ali.

“Tem algo de estranho nessa noite.” Pensou sozinho, em um devaneio.

Resolveu não dar moral para um pressentimento repentino.

“Deve ser só impressão minha.”

Apoiou outra vez o queixo com a mão.

Começou a se lembrar da esposa, de quem tinha saudades, e levou a mão ao bolso para pegar o celular e ligar para ela.

Nesse ponto, virou o rosto para a janela inocentemente.

Havia alguém na sacada.

Na janela do segundo andar.

-... Tuomas?

Incrédulo, o baixista foi correndo abrir a tranca. Seu amigo entrou, trazendo a água de seu corpo e a da chuva, que forçava a entrada com toda a violência possível. Com alguma dificuldade, Marco empurrou as duas metades da janela de volta para o lugar e fechou-as.

Tuomas passou a mão pelo rosto. Sua roupa preta e grossa pingava como uma esponja sobre o tapete. A respiração estava extremamente ofegante, e ele tossiu.

O outro na sala quase não conseguia falar por causa do susto.

-... Cara...

Precisou pensar para formular uma pergunta com a cabeça tão confusa.

– Como você foi parar aí?

Uma dor na testa parecia atacar o tecladista, que ainda não tinha recuperado o fôlego. Arrancou o suéter e deixou-o cair no chão como um pano sujo.

-Eu subi.

-...

As palavras de Marco não saíam.

Tuomas tossiu, sem muito ar nos pulmões fumantes.

-Absurdo, não?

Não sabia o que sentir ou achar sobre aquele problema, mas continuou.

–Pois é. As portas e janelas lá de baixo estão soldadas. Eu tentei abrir.

Marco deixou-se cair sobre a cadeira. Precisava se sentar.

-Não acredito...

-Era a única janela acesa, então... Eu...

Uma pontada dolorida no peito fez sua fala parar no meio. Colocou a mão sobre o local, tentando inutilmente conter o problema. Marco saiu do lugar na mesma hora e apoiou a mão em seu ombro

-É melhor você se sentar.

Assim foi feito.

Depois de algum tempo descansando, Tuomas recomeçou a falar.

-Chequei todas as entradas. A porta dos fundos estava com a fechadura tampada, ao que parece. Nenhuma janela abre por fora. E esta é-

-Isso é loucura. Podia ter ligado pra cá.

Marco não parecia só confuso. Estava indignado.

Tuomas respondeu em um fio de voz:

-Meu celular descarregou.

-Um telefone público.

O dono da casa olhava para baixo, com expressão de arrependimento. Estava arrependido, de fato.

-Dirigir mais nessa chuva? Era o único jeito.

Marco estava tão assustado quanto preocupado.

-Você podia ter morrido.

O tecladista sabia.

Sim, era a única saída, mas seu amigo estava certo.

Sem justificativa, conseguiu dizer apenas:

-Desculpe.

O outro o olhou com cara de que o desaprovava, e ainda tomado pela preocupação.

-Nunca mais apronte uma dessas. – Falou, duramente. – Pelo amor de Deus.

Tuomas virou a cabeça para o lado, encarando a janela à sua esquerda. A mesma por onde tinha entrado ali.

-Tá.

Marco ficou de pé e estendeu a mão para que Tuomas se levantasse.

-Vai lá trocar essa roupa.

Recebeu um olhar de tristeza de volta, mas não deixou de dizer:

-E não deixe ninguém saber que você fez isso.

O que estava sentado usou da ajuda e se levantou, confortável por causa do aquecedor.

-Obrigado, Marco.

-Não me mate de susto de novo. – Ainda estava sob efeito da surpresa. - E chame a polícia.

Tuomas assentiu com a cabeça.

-Eu sei.

Ainda chovia. O barulho das gotas tampou o silêncio dos dois.

Marco sorriu de leve, sem vontade.

-Durma direito.

Educadamente, o Holopainen lhe disse:

-Boa noite.

O baixista negou com a cabeça.

-Não sei se tão boa assim.

Os dois caminharam até a porta fechada e Marco a abriu, deixando seu amigo passar primeiro e saindo um pouco depois

Tuomas ia para seu quarto à direita, quando deu uma ligeira olhada por cima do ombro por desencargo de consciência.

O baixista tinha entrado outra vez na biblioteca.

Ele continuou seguindo seu caminho, remoendo o que ouvira e o que tinha acontecido.

Por que as entradas de sua casa estavam todas trancadas?

Dentro do cômodo, Marco voltou até a mesa. Notara que seu celular não estava mais no bolso de trás, então deduziu que tinha caído no carpete quando se sentou. Viu o aparelho no chão de longe, entre as pernas da cadeira onde ficou durante as cartas e foi até lá buscá-lo.

Mesmo depois de passada a desagradável surpresa, sua cabeça ainda não aceitava os fatos.

“Caralho...” Agachou-se e pegou o celular, voltando-o para o bolso. “O Tuomas só pode ter pirado. Ou será que foi alguém-”

Nessa parte de seu pensamento, parou abruptamente.

“Não, não é possível. Olhe só no que eu cheguei a pensar...”

Levantou-se, com dor nas costas e cara de interrogação. Ainda que a preocupação com o amigo fosse grande, estava intrigado com o que acontecera.

“Mas que é muito suspeito, é, sim.”

Ficou de pé e foi lentamente até a porta, para ir para seu quarto.

Atravessou o corredor, pesquisando na lista de contato de seu celular um número específico. Apertou o botão de ‘chamar’, colocou o aparelho no ouvido e aguardou, enquanto abria a porta de seu dormitório.

Fechou-a.

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Um quarto quase em frente ao seu era o de Tuomas.

Já mais calmo, o recém-chegado acabava de se secar com uma toalha. Vestiu uma jaqueta verde-escuro bem grossa para aplacar seu frio. Restaurava o fôlego aos poucos, prejudicado pelo cigarro habitual, mas principalmente pela loucura que acabara de fazer.

Olhou para seu relógio de mesa para ver que horas eram, mas, ao encará-lo, viu uma pilha de objetos que despejou uma cachoeira de culpa sobre sua cabeça.

“Droga!”

Bateu na testa com a mão, pegou os objetos, um conjunto de chaves, uma capa de chuva e saiu dali correndo.

“Como eu me esqueci?”

Apagou totalmente os momentos anteriores da memória.

Marco tinha acabado de desligar o celular. Despediu-se da esposa com um sorriso de ternura no rosto, mas ouviu baques apressados no piso de fora.

Virou o rosto para o lado de onde eles vinham e para onde se distanciavam, tudo muito devagar.

Estava tomado outra vez pelo medo e pela desagradável sensação de surpresa.

“O que foi isso?” Pensou, levantando-se da cama.

Abriu a porta de seu aposento e olhou para a direita, o sentido para onde o som se dissipava.

Não havia ninguém ali.

Bateu duas vezes na entrada mais próxima e chamou.

-Tuomas?

Não houve resposta.

-Tuomas, abra!

Novamente, o silêncio.

Girou a maçaneta, mas estava trancado.

Pela fresta entre a porta e o chão, a luz estava acesa.

-Aconteceu alguma coisa... – Disse, agoniado.

Correu para a biblioteca com toda a velocidade que suas pernas trêmulas o permitiam.

Ao entrar lá, a janela estava quase toda fechada.

Uma fresta denunciava que fora aberta há pouco.

-Não pode ser.

Confuso, disparou de novo para o corredor dos quartos.

Ao ver a porta que o interessava, parou diante dela e também bateu, mas com mais violência.

-Emppu!

Não esperou que o ocupante atendesse.

Abriu com força, causou um estrondo alto e gritou

-EMPPU, ACORDE!

O guitarrista pulou da cama, assustado.

-Porra!

Praguejou. Fora arrancado de seu sono.

-Não dava pra ser mais discreto, não?

-Não discuta. Venha comigo.

-Como é que é?

-RÁPIDO!

Os dois correram enquanto Marco tentava explicar.

-O Tuomas... – Respirava tão rápido que mal conseguia falar. – Ele entrou pela janela agora há pouco...

-QUÊ?

Emppu estava de queixo caído.

Marco tinha raiva na voz:

-Ele quase morreu, mas...

Engoliu em seco, com o coração quase explodindo.

-Por algum motivo...

Erno não tinha palavras:

-Cara...

Chegaram à janela.

O baixista disse, abrindo-a e indo até a sacada.

-Eu vou descer atrás dele.

A fortíssima chuva o deixou encharcado em segundos.

-Você tá doido?

-A polícia vai aparecer aqui.

Empoleirou-se com o cuidado que tinha sobre o parapeito e tentou descê-lo. Seu sapato escorregava o tempo todo.

-Desça daí!

-Não posso.

Conseguiu se pendurar e apoiar-se em um pequeno adorno da parede externa.

-Vou chamar uma ambulância.

-Não vai chegar a tempo, Emppu.

Sabia dos riscos. De todos eles. Mas ia atrás de Tuomas.

Ainda confuso, Erno tentava fazer algo.

-Vou descer pelas escadas.

-Boa sorte.

Marco deixou o peso do corpo cair e firmou como pôde o pé em outro apoio. A chuva não dava a ele um segundo de trégua.

“Como o Tuomas conseguiu subir essa merda?”

Esticou o pé para alcançar o beiral de outra janela, mas escorregou.

Ia cair quando agarrou a grade com a mão esquerda.

Ensopado pela tempestade, levara um susto imenso.

“Eu vou morrer...”

O coração batia a toda.

“...Mas vou fazer minha parte!”

Empurrou a parede com o pé e caiu dentro do lago surrado pela chuva.

O estrondo fez suas costas arderem de dor. Virou-se, tentando suportar o problema e nadar ao mesmo tempo. A escuridão e a falta de fôlego não colaboravam, junto ao desespero de encontrar logo quem estava procurando.

Subiu para respirar. O peso da roupa o puxava para o fundo.

Para a morte e o esquecimento do fundo daquele lago.

“Não posso desistir.”

Mergulhou e acidentalmente esbarrou a mão em outra perna.

Na mesma hora avançou para agarrar aquele corpo.

Na porta principal da casa, Emppu tentava por tudo sair. Nenhuma chave parecia funcionar.

-Marco...

Tomado por agonia, forçava a saída. A tranca não queria ceder.

–Droga de porta!

Olhou para os lados e não viu objetos que pudessem ajudar. Chutou a maçaneta com a força que tinha.

A porta se abriu, deixando a tempestade entrar.

Saiu correndo por entre a noite e largou a entrada como estava.

Marco se arrastava pela grama e pela terra, exausto. Tossia algumas vezes, por ter se engasgado com a água, os membros mal o mantinham engatinhando, mas em suas costas, trazia o que estava procurando.

Tuomas.

A chuva levava embora as lágrimas de dor que caíam dos olhos cansados.

Emppu apareceu correndo, também ofegante.

Ao avistar os dois, espantou-se.

Marco não estava mentindo.

Ele deixou o corpo do tecladista no chão com cuidado. Ele não conseguia mover um músculo, a água infiltrara-se em seus pulmões e era difícil respirar.

O homem agachado no chão aproximou-se um pouco mais e apoiou as duas mãos no peito de Tuomas. Pressionou para baixo várias vezes, mas o líquido não sairia tão facilmente dali.

-Merda... Merda... Merda... – Marco parou de fazer a manobra. Tentou a respiração boca-a-boca, mas nada parecia funcionar. – Merda!

Tormento.

Confusão.

Desespero.

Agonia.

O baixista virou-se para Emppu, que tremia de medo e também estava em prantos.

Sussurrou, por entre os trovões e gotas de água:

-A ambulância...

-Não vai vir.

Apesar dos poucos sentidos, o corpo estendido no chão ainda estava vivo.

Tentou falar, usando o fôlego que tinha.

-Marco...

Os dois olharam para o rosto pálido e molhado de Tuomas na mesma hora.

-Emppu...

Ele tinha a aparência de um morto, mas um mínimo de vida restava.

-Obrigado... Por...

Tossiu e contraiu o rosto.

–Por estarem aqui.

Emppu tampou os olhos com a mão para esconder que estava chorando.

Marco socou o chão, atingindo em cheio uma poça.

-Não...

A chuva surrava suas costas doloridas.

-Por que você fez isso, Tuomas?

Um silêncio fúnebre tomou aquele lugar escuro.

Até essa escuridão ser cortada por um par de faróis automotivos, que se aproximavam com dificuldade, ainda distantes.

Nenhum dos três os viu.

Marco não agüentava mais aquilo tudo girando em sua cabeça.

Gritou.

Jogou o rosto lacrimejante de uma vez para o céu e viu-o completamente escuro. Fechou os olhos e deixou a água castigá-lo.

Era o fim.

Tuomas se foi.

Não sabemos o motivo, não conhecemos as circunstâncias nem pudemos salvá-lo.

Perdemos um parceiro de trabalho, e muito antes disso, um amigo.

O mistério de sua morte afundará naquela noite de tempestade e nas curvas de nossa mente.

Ou não.