Cabo Amaral

Destruição Mútua Assegurada


No fim da noite o Lula-Vermelha foi fechando suas portas.

Uma a uma as pessoas iam indo embora conforme a música baixava até eventualmente não tocar mais aquele pagode-fim-de-festa. Sentado lá na praça, na armação de tijolos onde se faziam fogueiras, Marcelo olhava o cerco ser desmontado enquanto pensava onde passaria a noite, não tinha muito o que fazer agora, seu trabalho só começava no outro dia, ou melhor; no amanhecer daquele dia mesmo. Mas sentia que se não dormisse não estaria apto a trabalhar, não com o empenho que queria.

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Aos poucos os garçons foram sendo dispensados por Gabriel, o homem que lhe dera o emprego. Gabriel se vestia não diferente dos outros funcionários do Lula-Vermelha, por isso ele havia confundido com mais um funcionário. Era novo também, não parecia ter mais que vinte e cinco anos, rosto sem barba e cabelos castanhos, magro, mas não magricelo.

Marcelo viu que Gabriel não ia embora, mantendo o Lula-Vermelha aberto, mesmo já sem quase ninguém para de fato atender.

Então pegou sua mochila, suas únicas posses estavam ali. Olhou o maço de cigarros, velhos. Foi até a calçada e quando ia sacar um cigarro foi interrompido.

— Você não é daqui, é?

— Não, cheguei hoje. — Marcelo respondeu olhando o homem.

— Prazer, Henrico. — Estendeu-lhe a mão.

Henrico era alto, um pouco mais alto que ele, tinha a pele negra e um nariz grande que combinava com os lábios carnudos e o sorriso branco de canto, a linha de seu queixo era contornada pela barba por fazer e ele usava uma camiseta básica cinza de manga longa que estava arregaçada aos cotovelos, com jeans surrados azul-marinho e um tênis preto comum.

— Marcelo. — Henrico tinha um aperto de mão forte, e olhou para Marcelo como quem olha para a presa.

Era um jogo e Marcelo não era inocente, percebeu logo no começo.

— Cabo Amaral é uma cidade incrível, os turistas adoram, somos um povo muito receptivo, você está em algum hotel na orla?

— Na verdade cheguei agora. Não tenho bem onde ficar. — Marcelo foi verdadeiro e percebeu que eles estavam isolados do resto das poucas pessoas na praça. — Acho que viajar de noite não é bem uma boa ideia.

— Viajar é sempre uma boa ideia. — Henrico disse olhando para a praça, então se aproximando de Marcelo, olhou para os olhos dele e então para o pescoço. — Eu mesmo adoro, mas não tenho saído muito daqui, estou um pouco entediado.

— Cidades pequenas podem ser entediantes de vez em quando.

— Que tal me contar suas aventuras então? — Henrico sorriu mordendo seu lábio inferior e recuou dando espaço para Marcelo novamente.

— Eu realmente preciso encontrar um lugar para dormir…

Henrico ergueu o indicador como quem pede silêncio e então apontou para a calçada, mais a frente em uma Hilux azul.

— Meu flat fica a algumas quadras e meu carro tá bem ali. Você ganha uma cama para passar a noite e eu uma companhia para desentediar um pouco, o que acha?

Marcelo percebeu que o homem o queria, não pelas histórias, mas sim pelo tédio. E ele precisava de um lugar para dormir. Era o útil ao agradável, exceto que ele não queria Henrico.

— Se não tem reservas, não vai encontrar um quarto na orla, talvez uma pousada para o interior da cidade, mas como vai chegar lá? — Henrico então avançou em Marcelo e pendurou seu braço no ombro dele, abraçando-o e forçando-o a andar junto dele.

Marcelo olhou para Henrico e sem jeito andou. Eles foram em direção ao carro e depressa estavam lá, cada um em um banco em direção ao Flat de Henrico. Marcelo não gostava daquilo, mas precisava de um lugar para passar a noite, podia não ser de seu agrado, mas nem de longe seria a primeira vez forçado a fazer algo contra sua vontade para sobreviver a mais um dia. Amanhã é um novo dia, amanhã tudo vai começar a se ajeitar.

Henrico não mentira, ele dirigiu por poucos quarteirões até uma área bem mais calma da cidadezinha, próximos da orla, o portão de um condomínio fechado se abriu conforme eles se aproximavam e o carro desceu para a garagem subterrânea do prédio.

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Eles foram conversando o caminho sobre a cidade, todas as respostas de Henrico eram sempre sugestivas, eram sempre trocadilhos com duplo-sentido intercalados com sorrisos de canto e mãos bobas nas coxas e braços de Marcelo, que sentado no banco do passageiro ria sem jeito, tomado pela necessidade de um lugar para passar a noite.

Eles desceram do carro na garagem do prédio.

Havia dezenas de carros ali, e as luzes se acendiam por sensor de movimento nos nichos para carros, mas os corredores eram iluminados e havia bastantes placas de orientação entre as colunas. Seguiram uma dessas até o elevador.

— Qual andar? — Marcelo perguntou, ele havia entrado do lado dos botões. Henrico então precipitou-se para cima de Marcelo, apoiou uma mão no ombro dele e inclinado apertou o botão que não possuía número.

— Você é tímido né?

— Eu… na verdade…

— Tem um bar no flat, a gente consegue resolver isso rapidinho. — Marcelo então recuou pressionado contra a parede do elevador e Henrico olhou para ele como se olhasse para o amor de sua vida, desejo esbanjava de seus olhos, escorrendo como cachoeiras, os dedos deslizando no peitoral de Marcelo.

Então recuou e olhou para a câmera do elevador, suspirou e olhou para Marcelo novamente.

— Chegamos.

Eram doze andares, mas o elevador passou do décimo segundo quando finalmente abriu as portas. Eles estavam na cobertura. Desceram do elevador em um foyer de mármore e madeira branca, iluminado com LED em lugares estratégicos, quadros na parede refletiam grandes momentos da história, como a revolução farroupilha e as diretas já em páginas de jornais.

Na porta do foyer, Henrico encostou o dedo em um leitor biométrico e ela destrancou.

— Você vem?

Marcelo não sabia se deveria ir, entendia que aquele passo era como aceitar de forma implícita o que deveria fazer para garantir sua noite de sono. E por isso foi, pois precisava de algum lugar para dormir que não fosse como sua última cama nos últimos anos. A que custo? Ponderou enquanto passava na soleira para a cobertura de Henrico, observando o pé-direito da sala, com janelas que iam do chão ao teto em quase seis metros de altura, a cidade inteira parecia visível dali, mas a vista era escura, ele podia ver o atlântico e um ou outro pontinho do que deveria ser navios.

Henrico apontou para o bar, feito em madeira quase vermelha, um balcão de dez centímetros de grossura mostrava na base um tronco rústico, como se a árvore tivesse sido levada para lá ainda inteira e moldada a se encaixar na estrutura do apartamento.

— O bar. — Marcelo então olhou para Henrico e o anfitrião apontou para cima na parede oposta à janela, onde uma sacada se precipitava a três metros do chão. — O quarto é lá em cima.

O apartamento era claro, as luzes conforme iam sendo acesas iluminavam moveis tão simples que tiravam o fôlego de Marcelo, sofá cinza de cantos quadrados, almofadas coloridas em tons pasteis e uma televisão pendurada da sacada em um vidro leitoso, mesa que parecia um escorregador, jardins verticais nas escadas, iluminada em cada degrau, tapetes brancos felpudos em um chão negro que refletia uma imagem perfeito como um espelho. A casa era estranhamente confortável de forma futurística.

É um custo pequeno a se pagar? Perguntou-se enquanto Henrico ia para o bar e voltava com dois drinks.

— O Lula-Vermelha vive de cerveja barata e vodca com água, mas um uísque de verdade… — Entregou um copo para Marcelo. — E para onde o viajante vai depois de Cabo Amaral?

Marcelo tomou um gole do uísque com pedras de gelo tilintando no copo. O gosto era tão forte, marcante, único. Não era essas marcas famosas e caras, mas devia ser caro, o álcool era presente, mas o gosto não era de álcool, era de uísque de verdade. Fora a primeira vez que ele sentiu tal sabor.

— Na verdade eu pretendo ficar por aqui mesmo.

Henrico riu e tomou um gole.

— Engraçado, mas ninguém se muda para Cabo Amaral. Por que raios o faria?

— Por que não? — Marcelo deu de ombros e apontou para a janela. — É uma cidade linda.

— Não quero ofender, mas você não parece… Cabo Amaralesco.

— Talvez eu possa me tornar?

— HAAA! — Henrico soltou um berro e apontou para Marcelo com o copo na mão, sorrindo. — É isso que eu gosto em você.

Se aproximando foi abraçar Marcelo e com o braço ao redor do seu pescoço olhou-o nos olhos se aproximando, seus lábios cada vez mais perto um do outro e então o beijo, Marcelo deixou-se beijar, mas não reagiu. Henrico colocou seu corpo ao dele, o beijo tornou-se um abraço, Marcelo acabou correspondendo a abraçando Henrico pela cintura enquanto este beijava seu pescoço e voltava aos lábios. O beijo agora foi mais frio que o primeiro e a mão livre de Henrico procurou por rigidez entre as pernas de seu convidado, apenas para decepcionar-se.

— Você…

— Eu, não é isso. — Marcelo olhou para cima e suspirou, sentindo o calor e uma certa vergonha. — Amanhã eu começo a trabalhar no Lula-Vermelha, eu realmente vim para ficar, não sei o que é Cabo Amaral, na verdade parei aqui por acaso procurando um lugar pra recomeçar, eu quero recomeçar.

— Tudo bem, tudo isso faz muito sentido… mentira, eu não entendi nada, mas as desculpas não explicam a broxada. — Henrico apontou para o meio das pernas de Marcelo.

— Além disso tudo… Eu não sou gay.

— Então…

— Você disse dos hotéis, e eu cheguei agora. Meio que precisava de um lugar para dormir. Desculpa.

— E pensou em aproveitar do viado com tesão. — Henrico rolou os olhos e se virou andando até as janelas do teto ao chão. — Meu deus, que idiota.

— Não… Um pouco na verdade. — Marcelo foi até o bar e deixou o copo ali.

— Pensei que você queria também, ou que fosse esse tipo de homem, da noite, quero dizer.

— Sentado sozinho a noite toda em um bar, posso entender a impressão.

— Roupas de segunda mão, gostoso, sozinho. — Henrico se virou e olhou para ele com um pouco de decepção nos olhos. Encostou no vitral sem se preocupar, Marcelo não pode evitar pensar que se o vidro se soltasse Henrico caia para a morte. — Acho que minha confusão é até justificável né?

— Não posso julgar. — Marcelo queria rebater, mas também tentou aproveitar-se da situação, porém não era ele, achou que conseguisse, mas não era o que gostava. — Mas eu realmente precisava de um lugar pra dormir.

— Então você vai ficar?

— É o plano.

— Aposto que tem uma história interessante, Marcelo.

— Vergonhosa, na verdade.

— Eu estou interessado em ouvir do mesmo jeito.

Marcelo fez que não com a cabeça e deu de ombros. Não era algo que gostava de falar, queria recomeçar justamente para escapar dos demônios do passado, não os reviver.

— Pode ou contar ou arrumar outro lugar para dormir. — Henrico disse perdendo sua pose sensual, subitamente tornou-se intimidador, indo até Marcelo não para conquistá-lo, mas para encarar o homem frente a frente. — Ou quer que eu te convide para passar a noite sem sequer saber de onde você é?

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— Tarde demais para tirar a camisa e te beijar? — Marcelo riu olhando para os lados e batendo a ponta do pé pensando se deveria falar, mas não tinha muitas opções àquela altura.

— Engraçado, mas é sim tarde demais. — Henrico então pegou o próprio celular do bolso e abriu a galeria, apontou para Marcelo a foto de um homem mais velho. — Eu vou começar. Esse é Euclides, meu noivo. Então você ficar aqui na cidade é algo que realmente não me agrada, pensei que ia embora pelo amanhecer ou algo assim, mas se eu souber seu segredo você não vai poder falar o meu e nós dois ficamos seguros. Destruição mútua assegurada, conhece o conceito?

— Tudo bem. Entendi. — Marcelo suspirou e viu que não tinha como fugir daquilo. Até olhou para a porta de onde viera, mas não queria dormir na rua, precisava de uma cama, simples assim. Poderia ter tido o que queria em troca de sexo, não significaria nada e Henrico nunca teria descoberto, mas ele preferiu manter seu posicionamento até o final e agora precisava escolher entre o sereno da madrugada ou a verdade e um travesseiro chique. — Eu, a verdade é que eu não escolhi o que aconteceu comigo tudo bem? Você precisa entender isso. Não foi culpa minha, então só… não me julgue até eu terminar.

E com os olhos enchendo de lágrimas Marcelo começou a contar a verdade; seu passado, seu terrível passado.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.