*Narrado por Gabriela Hopper

Era como se eu tivesse voltado para aquele supermercado. Todo aquele sangue parecia ser o mesmo de tempos atrás, e as lembranças retornavam. Finalmente consegui coragem e forças para me levantar e seguir o rastro de sangue. Não havia dúvidas de que ele pertencia a Sarah, e preferi não criar hipóteses. Ela estava encostada na parede de frente para a porta, com a cabeça encostada para trás e possuía uma expressão de profunda dor enquanto tentava respirar. A respiração dela, por mais que fosse alta, não era o som predominante no local. Aquele choro fraco e agudo me fez sorrir.

Fui até Sarah e me ajoelhei lentamente ao seu lado. Meus olhos foram diretamente para os braços dela, onde havia um pequeno e indefeso bebê, que chorava com seus grandes olhos azuis abertos, ainda assustado. Ele ainda estava coberto de sangue, mas era possível ver os cabelos finos e escuros na cabeça. Era a combinação perfeita entre Rick e Sarah, onde era possível ver traços de ambos.

– É uma menina – Sarah disse com um sorriso cansado e orgulhoso.

– É linda – falei contemplando a pequena garotinha.

Nesse momento Rick entrou no quarto com uma faca ensanguentada na mão direita, mas a soltou no momento em que nos viu. O bebê continuava chorando, e Rick não poderia estar mais surpreso em escutar a filha. Ele também caminhou lentamente e se sentou do outro lado de Sarah e logo em seguida depositou um beijo na testa dela. Ele ficou sorrindo, paralisado com a visão. A garotinha ficou observando o pai como se o conhecesse, e o choro cessou.

– Ela está assustada – Sarah falou olhando para a filha. – Vai ficar tudo bem, meu amor.

– O que acha de Grace? – Rick falou. – Era o nome que você queria, o nome da sua avó.

– Grace West Grimes – ela falou enquanto olhava para a filha. O nome era perfeito para ela.

Escutamos uma movimentação vinda do corredor, mas todos nós estávamos hipnotizados com os olhos azuis de Grace. Carl chegou ao quarto correndo, mas freou no momento em que viu seu pai, Sarah e sua irmã. Ele se aproximou com cuidado, muito curioso.

– É o meu irmão? – ele perguntou.

– Irmã – Rick respondeu sorrindo para o filho.

– Já tem nome?

– Grace – ele falou voltando a olhar para a filha.

– Mãe – ouvi a voz de Ave me chamar e levantei imediatamente.

Sorri ao ver a minha filha novamente. Ela parecia um pouco cansada, e até maior. Sempre que eu a reencontrava Avery parecia maior, não de tamanho, e sim de maturidade. Ela crescia muito rápido. Corri até Avery e nos abraçamos, um abraço até desesperado demais. Ficamos assim por um bom tempo. Eu queria poder não soltá-la nunca mais, para evitar que nos separássemos de novo. Era tão bom saber que ela estava bem, e comigo.

– Você está bem? – falei colocando as mãos em seu rosto.

– A minha cabeça já parou de doer. Mas e você? Parece que foi atropelada por um caminhão!

– Não foi nada – respondi ignorando os pequenos detalhes que não mencionei. – Por que não vai ver a Grace?

– Grace? – Avery olhou para o lado e entendeu o que eu estava dizendo. Ela sorriu e se aproximou deles, ficando ao lado de Carl.

Depois de algum tempo Grace recebeu seu primeiro banho. O pior já havia passado, e não era necessário se preocupar mais com o Governador. Todos nós estávamos cansados, mas, ao mesmo tempo, aliviados pelo desfecho feliz que isso teve. A morte do Governador, Martinez e James foi necessária, e, felizmente, mais ninguém se feriu.

Mais uma luta havia chegado ao fim, mas eu sabia que não era a última. O mundo era muito grande, e com certeza deveriam existir outras pessoas dispostas a tudo pela sobrevivência. Nesse mundo havia perdas e ganhos, e as razões de viver iam se renovando. As minhas razões vinham nos sorrisos alegres de Avery, o olhar enigmático de Daryl, na inocência das outras quatro crianças e na lealdade de todos os outros, que eram a minha família.

*Narrado por Avery Hopper

Os dias correram no hotel. Grace era e continuou sendo a grande atração, todos queriam segurá-la e cuidar dela. Ela mudou a rotina e a vida de todos, mas essa mudança foi muito bem recebida. Nos primeiros dias Grace só chorava, mamava e dormia, mas com o passar do tempo ela começou a ficar mais tempo acordada, dando mais tempo para nos divertimos e cuidar dela.

No hotel tudo corria bem, e já haviam começado a plantação de alguns grãos, tudo coordenado por Maggie, a pessoa que tinha mais experiências com agricultura. Os dias estavam muito quentes, e esse não era a exceção. O Sol brilhava com força e parecia nos castigar, porém a animação dos adultos não diminuiu. Além da plantação, eles construíam um muro para nos proteger de futuras ameaças.

Estávamos todos reunidos na brinquedoteca, as crianças e eu. Jogávamos um jogo de tabuleiro de compra e venda de propriedades. Eu era um desastre em administração, comprava tudo o que via pela frente, e quase nunca obtinha lucro. Se minha mãe estivesse vendo, ficaria decepcionada comigo. Ela não levaria muito tempo para estabelecer uma fortuna, enquanto eu já estava à beira da falência. Patrick dominava o jogo, seguido por Mika, que tinha um grande espírito competitivo, enquanto Scott e Carl disputavam o antepenúltimo lugar. Grace estava deitada no cercadinho, rodeada por brinquedos de plástico, mas de vez em quando se chateava e os empurrava para longe, ameaçando começar a chorar.

– Sorte, vamos lá, seja sorte boa! – pedi enquanto retirava uma carta de sorte cuidadosamente do monte. Decepcionei-me ao perceber que teria que distribuir parte do meu dinheiro para todos os jogadores. – Qual é a lógica de chamar sorte se eu só tenho azar?

– O que foi? – Patrick falou num tom provocativo.

– “Distribua toda a miséria que te resta para seus inimigos!” – disse irritada, com muito exagero. – “Você venceu as eleições, pague 150 a cada companheiro de chapa” – repeti o que realmente estava escrito na carta e, logo em seguida, arremessei as notas com a quantia que deveria pagar a cada um. – Eu estou falida.

Levantei-me irritada. Era só um jogo, mas perder significava ser zoada pelo resto do dia, e isso não era nada legal. Eu não estava a fim de escutar as idiotices de Patrick e Carl. Fui até a varanda do restaurante, um espaço vazio com musgo crescendo nos cantos. De onde eu estava, era possível ver a entrada do hotel, onde o muro era iniciado. Cruzei meus braços sobre o parapeito e fiquei observando a paisagem. Fiquei com os olhos fechados e a cabeça tombada para trás, apenas sentindo a leve brisa úmida que era o único refresco nesse dia quente.

De repente senti a presença de alguém. Abri os olhos e vi Carl ao meu lado, fitando o horizonte. Fiz o mesmo que ele e ficamos em silêncio por algum tempo, o que era bom, mas ao mesmo tempo me deixava um pouco desconfortável. Carl estava bem diferente agora, principalmente depois do nascimento da irmã. Ele estava de bem com todos, parecia mais feliz e, uma coisa que fazia toda diferença, ele começou a usar o chapéu mais para cima, o que tirava aquele ar sombrio de antes.

– Sabe, eu ia te falar uma coisa antes, mas esqueci – ele começou. – Quando meu pai começou a namorar com a Sarah, eu achava que ela queria substituir a minha mãe. Quando ela ficou grávida eu estava convencido de que ela queria substituir a minha família. Quando a Grace nasceu, se eu ainda pensasse desse jeito, teria certeza disso, porque pareceria que ela estava substituindo a Judith.

– Mas o que o Carl de agora pensa? – disse ao notar que ele se entristeceu um pouco ao mencionar Jude.

– Da primeira vez que tive uma irmã eu não mudei muito, eu deveria ter feito isso por ela. Judy merecia um irmão forte, não uma criança tola. Agora eu estou mudando, sinto que estou melhor. Grace vai ter o melhor irmão que ela pode ter, que sempre vai cuidar dela. Vou fazer de tudo para protegê-la e ser um irmão mais velho legal.

– Preciso dizer que gosto mais do Carl de agora? – brinquei.

– Eu também.

– Ele é menos implicante e não fica agindo como uma criança que quer ser adulto – continuei.

– Você também não facilita... Eu já entendi.

– Como ficou o jogo? – mudei de assunto.

– Eu fui à falência e saí do jogo. Eles ainda estão lá. Scott está se esforçando, mas com certeza não vai nem chegar perto da Mika – nós rimos. – E Grace está lá. Ainda não se decidiu se gosta ou não dos brinquedos de plástico – rimos novamente.

– Ela é ótima! – exclamei colocando as mãos nos bolsos da calça jeans.

– Eu sei – ele disse com um sorrio orgulhoso. – Mudando de assunto... Acho que você me deve algo.

– Sem chances! Já passou muito tempo! – falei tentando cortar o barato dele.

– Vamos lá! Um dia você vai ter que fazer isso! A sua dívida será eterna até que você pague!

– Aposto que você nunca beijou uma garota na sua vida! – provoquei e ele ficou um pouco nervoso.

– Aposto que você nunca beijou um garoto na sua vida!

– Já tive um namorado! – falei com um sorriso superior. – Ele chamava Dylan, jogava basquete e era muito mais maneiro que você.

– Você disse maneiro, não bonito – ele provocou, não se dando por vencido.

– Ele era mais alto e, com toda a certeza, muito mais bonito – retruquei.

Antes que eu pudesse dizer qualquer outra coisa, ele me puxou para mais perto dele. Foi tão rápido que eu não consegui reagir, e,quando percebi, já estamos nos beijando. Isso não durou nem alguns segundos. Nós nos empurramos e fizemos caretas.

– Isso foi... – ele falou meio desconcertado.

– Estranho – completei. Passamos a mão com força sobre os lábios e fizemos outra careta.

– Ninguém vai ficar sabendo disso – Carl disse.

– Nunca.

*Narrado por Sarah West

Depois do nascimento de Grace, eu me sentia realizada e mais feliz do que nunca. Eu tinha muita sorte de ser mãe dela. Minha filha era uma garota linda. Todos diziam que ela era igual aos pais, mas eu só conseguia ver Rick no rosto dela, o que não a deixava menos bonita. Grace tinha os olhos azuis mais intensos que eu já havia visto, e os traços eram delicados como os de uma boneca.

A responsabilidade era grande, principalmente no mundo atual. Grace nasceu um pouco pequena, mas isso já era de se esperar, já que a minha alimentação durante a gravidez não fora o ideal, nem o recomendado, mas não havia muito problema nisso. Não era possível fazer os exames comuns que os bebês fazem ao nascer, mas com o passar das semanas, pude constatar que minha filha era saudável. A gestação e o nascimento dela não foram os ideais, mas Grace havia lutado muito para chegar ao mundo e eu faria de tudo para que ela tivesse uma vida saudável, longa e feliz. Assim como todos nós, ela não precisava mais lutar sozinha.

Eu havia deixado Grace com Carl, que estava sendo um excelente irmão mais velho. Eles deveriam estar na brinquedoteca, se divertindo com um jogo de tabuleiro enquanto minha menina brincava no cercadinho, que havia sido encontrado juntamente com alguns brinquedos de plástico em um hipermercado que não era muito distante do hotel. Quando entrei na sala, Grace largou todos os brinquedos e ergueu os braços para que eu a pegasse.

Peguei-a no colo e fiquei observando as crianças jogando com muita animação o jogo de compra e venda de propriedades, até notar a ausência de Carl e Avery.

– Onde estão eles? – perguntei.

– Não sei – Patrick falou. – Eles saíram depois que perderam o jogo.

– Podem continuar jogando. Vou levar a Grace para tomar Sol – disse antes de sair.

Fui até o lado de fora, só para constatar que o Sol estava escaldante e acabei desistindo de ficar lá com Grace. Fui para a sombra e fiquei observando a preparação do terreno para a plantação enquanto minha filha brincava com os meus cabelos. Rick se aproximou de nós bastante suado. Seu olho ainda estava um pouco roxo por conta daquele dia, mas ele já estava bem melhor.

– Como vai o trabalho? – perguntei quando ele se sentou ao nosso lado.

– Começamos a preparar tudo, mas acho que com esse Sol não vai dar certo – ele respondeu sem tirar os olhos de Grace.

– Realmente, o Sol está muito quente. Talvez fosse melhor vocês pararem um pouco.

– Sarah, eu queria falar com você há um tempo, mas a correria dessas últimas semanas não me permitiu fazer isso. Depois que você foi sequestrada, Martinez falou sobre James. No começo eu não estava entendendo a situação, mas Gabriela me explicou o que aconteceu no supermercado. Agora eu entendo porque você não gostava de tocar no assunto, mas não precisava esconder isso de mim.

– Não estava escondendo de você, eu queria esconder de mim mesma. Tentei agir como se isso nunca tivesse acontecido, mas às vezes isso voltava na minha mente, era inevitável. Pensar naquilo já era terrível, e eu preferi não falar porque era muito doloroso para mim. Pensei que ignorar o fato diminuiria a dor, e funcionou um pouco. O problema é que, sempre que eu olhava para trás, ele estava lá. Me desculpe por não ter falado isso.

– Não tem problema. Você não precisa mais ter medo disso, James está morto e eu vou te proteger de qualquer coisa, assim como a Grace. Vocês são a minha família, junto com Carl, e eu sempre estarei aqui quando precisarem – ele ajeitou uma mecha de cabelo que estava no meu rosto delicadamente atrás da orelha e me beijou. Em seguida fez o mesmo na testa de Grace e se levantou. – Tenho que voltar.

– Rick acho que vocês deveriam fazer uma pausa, estão trabalhando desde cedo e o Sol está insuportável, alguém pode passar mal...

Antes que pudesse terminar a frase, houve uma agitação na plantação e todos que estavam lá correram para o saguão muito apressados enquanto Daryl ia à frente carregando Gabriela nos braços. Com todo esse movimento, Grace começou a chorar.

– O que aconteceu? – perguntei enquanto entregava Grace para Rick.

– Não sabemos – Sasha respondeu por todos. – A Gabriela desmaiou.

– Vamos esperar que ela acorde para que eu possa examiná-la – todos assentiram. – Daryl, leve ela para um quarto.

Gabriela foi levada para o primeiro andar, onde havia alguns equipamentos médicos que foram encontrados na redondeza. Era muito pouco, em sua maioria remédios, porém melhor do que nada. Fiquei sentada no canto da cama, ainda muito intrigada com o que havia acontecido, mas eu só poderia descobrir o que aconteceu quando ela acordasse. Gabriela parecia dormir tranquilamente, sua respiração estava normal. Em sua testa quase não havia mais a marca do tiro de raspão que ela tinha levado no dia do nascimento de Grace. Ela abriu os olhos lentamente, olhou para o quarto e depois para mim. Ela parecia, além de confusa, muito cansada. Gabriela tentava entender a situação, assim como eu.

– O que aconteceu? – ela perguntou.

– É o que eu estou tentando descobrir. Do que você se lembra?

– Eu estava do lado de fora. O calor era insuportável, e eu estava muito cansada, e um pouco tonta. Tentei me apoiar em alguma coisa, e depois disso não me lembro de nada. Deve ter sido uma queda de pressão.

– Mas você disse que já estava cansada antes?

– Você acha que é grave? Não deve ser sério – ela perguntou sem dar muita importância, até com certo desprezo.

– Acho que sim. Pode ser uma desidratação, ou não.

– Não é nada – Gabriela se levantou, mas parou no meio do caminho e colocou a mão na cabeça. – Talvez seja mesmo alguma coisa.