Boku no Hero Academia Oneshots

Anjo da Guarda - parte 2 [Shindou You x Reader]


Capítulo 2 - Versos

Versos - Rosa de Saron

"O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã."

Salmos 30, 5b

Havia mensagens dela. Ele tinha certeza.

E ele precisava respondê-la. Precisava muito.

Era insuportável pensar em seu rosto grave, que lhe parecia tão lindo, distorcido por preocupação. Sim, ele sabia que [Nome] estava preocupada. Afinal, ela era um anjo. E anjos protegem, guardam... Exatamente o que ela fizera nos últimos três meses de todas as formas possíveis que conseguia estando a algumas centenas de quilômetros de distância.

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Shindou sorriu com o antebraço cobrindo-lhe os olhos, mas meio segundo depois fez outra careta de dor. Céus, será possível que jamais se livraria daquelas malditas crises de enxaqueca? Fazia tratamento há anos, desde que iniciara o treinamento de sua Peculiaridade, mas as dores apenas ficavam cada vez piores. Tentara de tudo: acupuntura, remédios, massagens, reiki, eletroterapia... E nada. Nada fazia a dor ceder quando ela vinha. Bom, nada exceto algo muito peculiar que descobrira há algumas semanas.

Tateando no escuro, Shindou buscou seu celular. Nas crises, precisava fechar-se em um cômodo e apagar todas as luzes e abafar sons mais altos ou repetitivos. Encontrou o aparelho ao lado de seu quadril, sob o lençol. Mantendo-o o mais longe possível do rosto, Shindou entreabriu os olhos o máximo que conseguiu sem que sua cabeça disparasse a latejar e desbloqueou o aparelho. Mesmo antes de desbloqueá-lo, vira as notificações de sua conversa com [Nome], que ele programara para aparecerem como prioridade. Seu coração disparou um pouco ao pensar em como ela estaria e se ele a havia deixado chateada ou irritada pela ausência. Sua cabeça latejou novamente, mais leve do que alguns minutos atrás. Sabia que era uma alerta para se afastar da fonte de luz, mas ele precisava de mais alguns segundos. Ao invés de abrir o Whatsapp, abriu seus contatos e foi logo em “Favoritos”, onde “Anjo da guarda [Nome]-chan” aparecia em primeiro lugar, acima do contato “Mãe”. Enquanto a dor aumentava, bateu o dedo forte demais sobre o símbolo do telefone, e foi com muito alívio que viu a tela metade verde, metade branca. Colocou o telefone na orelha e apertou bem os olhos, o vestígio do contorno luminoso da tela do celular ainda piscando contra a penumbra de suas pálpebras.

— Por favor, [Nome]-chan... – murmurou ele, baixinho. – Atende.

O coração de Shindou pareceu se comprimir quando os bips prosseguiram sem resposta. Quando jurou que a chamada ia cair, um leve chiado indicou que [Nome] atendera.

— Shindou? – A voz dela tinha um tom de urgência reprimida. – Você tá bem?

Por um mísero segundo a dor pareceu desaparecer. Seu corpo todo relaxou e ele tornou a sorrir.

“Shindou You”, pensou ele, rindo de si mesmo. “Você é um idiota. Por que você está tão feliz de vê-la preocupada com você”?

A resposta apareceu imediatamente em sua cabeça, muda, mas forte o suficiente para que seu coração tornasse a disparar.

— Hey, [Nome]-chan – respondeu ele tentando se distrair de sua linha de pensamentos. – Sentiu minha falta?

— Você é o quê? Um imbecil? – irritou-se [Nome] com o tom despreocupado de Shindou. Ele sempre era péssimo no timing de usar sua lábia de “cool guy” com ela... Bom talvez não tão péssimo. Mas aquela definitivamente era uma péssima hora. – Eu fiquei preocupada. Você não me respondeu o dia todo.

— Oh, eu me sinto lisonjeado por sua preocupação, senh-

— Cala a boca, Shindou. Eu não estou brincando.

O garoto apertou os lábios. Ok, talvez a abordagem “estou fazendo gracinhas, então está tudo bem” não fosse conveniente para o momento. E ele já devia saber, pois três meses foram mais do que suficientes para testemunhar a intensidade dos sentimentos de [Nome] relativo a “cuidado com os outros”. Parecia até ter nascido no mundo errado, pois com certeza teria sido um dos anjos da guarda mais competentes do universo.

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— É... – suspirou ele. – Você venceu. Nunca consigo enganar seu sensor angélico de “ser humano em perigo”.

— Shindou! Pelo amor de Deus, desembucha de uma vez!

— Tá bom! Calma, eu... Eu tive uma crise de enxaqueca. Começou de manhã. Passei um tempo no hospital, mas você já sabe. Nunca resolve, então vim pra casa. E fica tranquila. Estou no escuro desde que cheguei em casa, nada de TV, nada de som alto. Tomei todos os cuidados possíveis.

Houve apenas silêncio do outro lado da linha por alguns segundos. Por fim, a voz de [Nome] soou baixa e um tanto tristonha:

— Ainda dói?

— Uhum.

— Ah, Shindou... Queria muito poder estar aí. Eu sei como enxaquecas são horríveis. Tive algumas vezes, mas claro... Não na frequência que você tem.

O coração do garoto disparou mais rápido do que antes e um leve tremor subiu por seus braços. Ele apertou mais os olhos, tentando lutar contra aquela sensação. Parecia tão errado estar se deixando abalar tão facilmente por aquela garota. Shindou You não se deixava abalar por garotas. Fora sempre o contrário. Ele estivera sempre do domínio total da situação e dos seus sentimentos.

Mas por que com [Nome] era diferente? Por que era tudo tão incontrolável e súbito? Por que com uma simples demonstração de preocupação ela conseguia botar a abaixo todas as suas defesas?

Shindou trocou o celular de orelha, virando de lado em seu futon.

“A parte assustadora”, pensou ele lambendo os lábios. “É que eu já sei a resposta dessas perguntas estúpidas que insisto em repetir na minha cabeça”.

— Shindou? – chamou [Nome] arrancando-o de seus pensamentos. – Ainda tá aí?

— Oh, sim, tô. Desculpa. Eu fico bem lento por causa da dor.

[Nome] suspirou do outro lado da linha.

— Você deveria dormir... Mas duvido que vai conseguir com essa dor. Ai, queria poder fazer algo.

O coração de Shindou disparou mais uma vez, e ele se amaldiçoou por dentro. Queria tanto poder fazer aquele pedido em seu tom despreocupado, mas não sabia se conseguiria. Ele só não... podia soar óbvio demais.

— Ahm... Na verdade – começou ele no seu típico tom relaxado e brincalhão. – Tem uma coisa que você pode fazer?

— O-o quê? – perguntou [Nome], claramente surpresa.

— Ahm... – Nessa parte, começava a ficar complicado usar seu ar “cool”. – Lembra daquele dia que você queria ensaiar uma música para uma apresentação num... retiro, eu acho, e você quis minha opinião?

— Sim. – Seu tom direto e firme fez a confiança de Shindou em sair por cima vacilar. Esperava deixa-la um pouco encabulada com a lembrança.

— Então... Naquele dia, eu estava com dor de cabeça. Era uma enxaqueca mais leve, mas esse “leve” ainda estava um saco. E quando... quando você... C-cantou, eu... Bem, quando você terminou e me dei conta, a dor tinha passado.

Houve um longo silêncio do outro lado da linha, tanto que Shindou podia jurar que [Nome] tinha desligado. A única coisa que mostrava o contrário era a leve respiração que fazia a chamada chiar. Quando o desconforto pareceu se tornar palpável no ar, Shindou pensou que talvez não tivesse sido uma boa ideia.

— Ei, [Nome]-chan, não precisa se você não quiser. Não se sinta forçada a nada, por fav-

— Não! – exclamou ela numa urgência que assustou Shindou. – Eu posso fazer sim. Só... Só preciso m-me concentrar. Ahm, tem... Tem alguma música em específico que você queira?

O garoto sentiu o rosto ferver diante da pergunta. Não conhecia muito de músicas do estilo que ela cantara naquele dia. Além disso, tinha que saber qual ela já sabia cantar, e não podia, de forma alguma, cair no erro de pegar uma aleatória e a letra acabar sendo sugestiva. Respirou fundo, agradecendo por sua demora em responder ser o normal para alguém tentando escolher uma música.

— Olha... acho que vou deixar você escolher. Não entendo muito de música, principalmente do estilo que você cantou naquele dia. Se for calma, pra mim está bom.

Houve mais um silêncio, entretanto mais curto.

— Pode esperar um segundo? – pediu [Nome].

— Claro.

Ele ouviu o som do telefone sendo largado sobre algo e depois passos, rangidos de portas, coisas sólidas batendo umas contra as outras, mais rangidos, mais passos e depois o som de [Nome] pegando o celular novamente.

— Eu vou colocar no viva-voz para ficar mais fácil, ok?

Curioso, Shindou concordou. Segundos depois, ele ouviu uma nota aguda e limpa. O som que a tecla de um piano faz. Ela também ia tocar. Tocar. Sentindo o nervosismo subir pela garganta, a resposta de Shindou foi automática e inconsciente: soltar uma piadinha.

— Um piano? Não devia ser uma harpa? Combina mais com você.

Ouviu-se claramente um suspiro, o tipo de suspiro que [Nome] dava quando Shindou demonstrava sua total ignorância acerca do mundo espiritual e dos anjos.

— Primeiro: não é um piano. É um teclado. E nem os arcanjos, nem os anjos da guarda (como você me insiste em chamar), tocam harpas. As harpas cabem, normalmente, aos dois coros mais próximos de Deus: serafins e querubins. Arcanjos e anjos da guarda ou carregam espadas ou objetos de vocação.

— Objetos de vocação? Isso você nunca me explicou.

— Você quer a música ou uma aula sobre anjos da guarda?

— Posso ter a aula quando minha dor de cabeça passar? Preciso estudar o... seu coro pra conhecer mais sobre você, não é mesmo? Afinal voc-

— Sinceramente, nem essa enxaqueca pra destruir sua criatividade pra irritar outras pessoas – cortou [Nome] tentando soar séria. – Mas, Céus! Presenciamos um milagre. Shindou You usou corretamente uma palavra que eu ensinei. Só mais um e posso ser canonizada.

Shindou riu o quanto sua enxaqueca o permitia, e ele pôde ouvir claramente reprimindo uma risada. De súbito, pegou-se se perguntando duas coisas: como soaria se [Nome] o chamasse pelo primeiro nome como ele fazia com ela? E como será que um anjo como ela gargalhava?

— Ok – disse ele tentando se acalmar do ataque de risos. – Desculpe. Pode continuar. Comece quando estiver pronta. Ah, não. Espera. Me permite mais uma pergunta?

— Sim? – O tom de [Nome] foi tão cético que Shindou quase explodiu em gargalhadas outra vez.

— O que é ‘canonizada’?

— Oh, pelo amor do Santo Cristo! Sério isso? Eu já expliquei.

— Sério? Eu não lembro.

— Shindou, cala a boca.

E dessa vez, ele realmente se calou. Sabia que se soltasse mais um pio, podia tirá-la do sério a ponto de perder sua música. E ele detestava admitir, mas seu coração esmurrava suas costelas por aquilo. Ele ouviu [Nome] testando alguns arranjos no teclado e, de repente, a imagem da garota alada sentada na beirada de sua cama com o teclado no colo brotou em sua mente. A imagem era anormalmente clara, mas imaginá-la com o semblante calmo fitando as teclas enquanto os dedos iam e viam lhe trazia uma estranha paz. Quase podia esquecer da enxaqueca. Ela pigarreou, sinalizando que ia começar, e Shindou se empertigou na cama, acabando deitado de barriga pra cima.

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A música começou apenas com o som do teclado, devagar, delicado e profundo. O arranjo era muito agradável e intensificou a sensação de paz que sentia. Mas Shindou não estava preparado para a voz de [Nome]. Não naquele tom, naquela combinação, naquele contexto.

“Sei que é tarde

Mas através desta, eu venho pedir uma breve oração

Já não conheço mais minha alma”

Seus olhos se arregalaram quando a voz da garota deu forma, cor, cheiro e gosto às palavras dos três primeiros versos. Era tão surreal que a música pareceu se materializar dentro dele e, não só lhe acariciar os ouvidos, mas todos os outros sentidos.

“Tenho saudade daqueles dias

Que o tempo passava

E ainda era abril

E eu somente sonhava

Mas é novembro e eu não percebi as flores morrendo

Agora, qual rosa eu darei à Deus?

Simples de coração, nada mais

Que ele se torne uma linda e simples decoração

Porque hoje, essa velha morada é uma triste lenda

E agora canta seus versos de arrependimento

Ouço sinos querendo soar dentro de mim

Ouço sinos soando em mim”

Shindou sentia como se a música o tivesse despregado da realidade, e agora ele flutuava num profundo estado de calma. Será que a Peculiaridade de [Nome] incluía algo envolvendo hipnose ou algo do tipo? Não conseguia imaginar que ouvi-la cantando daquela forma seria tão imersivo e que tomaria conta de sua mente. Ele já ouvira-a cantar uma vez então... O que havia de diferente?

Os pensamentos de Shindou começaram a desacelerar e se distorcer, como se sua cabeça estivesse sendo preenchida com uma névoa com propriedades relaxantes. De bom grado, deixou suas pálpebras pesarem, seu fluxo de pensamento sendo carregado pela melodia e pela letra da música.

“Hoje peço que junte os dedos e faça por mim uma prece sem fim

E acordada, vele meu sono

O meu silêncio é uma nota preta num imenso papel vazio

Mas ainda é uma nota que toca, e a lágrima toca o céu

Dura uma noite

Mas no amanhecer vem a alegria

Simples de coração, nada mais

Que ele se torne uma linda e simples decoração

Porque hoje, essa velha morada é uma triste lenda

E agora canta seus versos de arrependimento

Ouço sinos querendo soar dentro de mim

Ouço sinos soando em mim”.

Quando a melodia foi morrendo, um canto da mente de Shindou pareceu se remexer, desconfortável. Não queria que a música acabasse. Se pudesse, ficaria a noite toda escutando [Nome] cantar. Meio grogue, sobre o som dos últimos acordes que a garota dedilhava, o garoto pediu sem esconder a ansiedade:

— Pode cantar mais uma vez, por favor?

Ele ouviu uma risada do outro lado da linha... ou eram sinos?

— Pode deixar...

***

Estava tudo branco. Não, talvez não fosse branco puro. Shindou tinha a leve impressão de que havia um leve tom de azul naquele vazio. Bom, pelo menos ele pensou que era um vazio até visualizar uma silhueta interrompendo a imensidão clara. A primeira coisa que ele discerniu foram as imensas asas brancas em posição de repouso. Depois, direcionou sua atenção para quem as sustentava. Seus olhos se arregalaram.

“[Nome]!”, ele chamou mentalmente.

A garota estava de pé, trajando um vestido muito delicado tingido de um tom rosa perolado muito sutil. O tecido era de alças simples e grossas, formando um decote em “v” e escorria até na metade de suas canelas. A parte da frente era mais curta, e se interrompia na metade de suas coxas. Seu rosto estava enterrado em suas mãos e seus ombros tremiam de leve. Demorou alguns segundos para que o som abafado alcançasse os ouvidos de Shindou: [Nome] chorava. O garoto tentou se mexer, mas percebeu que estava preso no lugar. Sequer conseguia abrir os lábios para chamá-la. Sentindo-se sufocar, Shindou assistiu por alguns minutos [Nome] chorar sozinha. Depois, lentamente, ela ergueu a cabeça e virou-se em sua direção. Ela piscou algumas vezes tentando espantar as lágrimas e, por fim, perguntou:

— Como eu não percebi que era novembro? Por que você não me avisou?

Em desespero, Shindou percebeu que ainda não conseguia se mexer. Fitou-a longamente, com o coração cada vez mais apertado. Ela voltou a chorar mais um pouco com o rosto oculto, até que ergueu-o para cima e, novamente, perguntou:

— Agora – ela soluçou um pouco. – Qual rosa eu darei a Deus?

De súbito, Shindou percebeu que algo aparecera aos pés de [Nome]. Era uma planta baixa, e estava completamente seca. A garota se abaixou e tocou com delicadeza um ponto específico, que ele percebeu ser uma rosa murcha, já enegrecida e com poucas pétalas. Shindou piscou uma vez e viu que uma das pétalas se soltara e caía tristemente na direção do pé de [Nome]. Entretanto, antes que ela a tocasse, a cena mudou.

A garota agora estava de frente para ele, ambos ajoelhados. Ela tinha as mãos ao redor das dele, segurando-as com um aperto trêmulo e urgente.

— You – disse [Nome] numa voz trêmula, mas seus olhos já não mais traziam lágrimas. – Por favor, vele meu sono.

Shindou a olhou, assustado. Ainda não conseguia se mexer! A única coisa que conseguia mexer eram os olhos! Os segundos se arrastaram, com [Nome] aguardando ansiosamente a resposta dele, os olhos cada vez mais brilhantes. De repente, Shindou sentiu algo escorrendo pelo canto de sua boca. Por sua visão periférica, conseguiu ver uma mancha preta estranha, como se escorresse tinta de seus lábios. Ele sentiu o líquido alcançando seu queixo e, no segundo em que piscou, uma gota caiu e, estranhamente, pingou em seu polegar direito. Uma leve fungada redirecionou sua atenção para o rosto de [Nome] novamente e, para seu desespero, ela voltara a chorar. O impulso de confortá-la tomou conta de todo o seu corpo de forma violenta e, dessa vez, seus membros, enfim, responderam. Ele ergueu a mão direita, e no instante em que o fez, percebeu que a mancha em seu polegar havia tomado a forma de uma semifusa. Com delicadeza, limpou a lágrima que estava prestes a escorrer. Subitamente, a pele de [Nome] começa a mudar de tom, escurecendo e ganhando vários pontos luminosos como se ela tivesse se pintado com o céu noturno.

Quando deu por si, Shindou já não estava mais diante de [Nome]: estava suspenso de cabeça para baixo com um céu salpicado de estrelas, nebulosas e planetas alguns centímetros abaixo dele. Ao fitar suas mãos vacilantes balançando contra aquela imensidão escura, percebeu que a semifusa em seu polegar agora se movia para o indicador. Era como se houvesse se lembrado que, antes de ser semifusa, fora uma gota de tinta e precisava continuar escorrendo. Durante a movimentação da nota musical, as quatro hastes laterais da semifusa se fundiram, formando o contorno perfeito de uma asa. Antes que Shindou pudesse admirar com mais atenção a nota alada, ela escorreu por sua unha e pingou sobre o manto do céu noturno, formando pequeninas ondulações circulares que se expandiram indefinidamente. Sob o a agitação do firmamento líquido, [Nome] surgiu em um fade sutil, e junto consigo, trouxe o degradê do amanhecer que começou a tingir lentamente o céu. Ela fitou Shindou profundamente nos olhos, e ele pode perceber que eles não estavam vermelhos, nem inchados, nem tampouco lacrimosos. Um sorriso tenro, mas brilhante curvou os lábios de [Nome], e a visão tirou o fôlego de Shindou. No instante em que sentiu que puxava o ar para se recompor, a cena tornou a mudar.

Novamente de joelhos, o garoto se encontrava ao lado de um divã grande demais, coberto com almofadas delicadas e claras, e uma espécie de véu se espalhava de forma irregular sobre o estofado de um laranja muito claro. Aninhada ali, [Nome] ressonava tranquilamente, as asas encolhidas ao lado do corpo, sendo que a esquerda a cobria parcialmente. Correndo os olhos pela silhueta quase celestial da garota, ele percebeu que, aninhada entre seu tronco e seu braço direito, havia uma pequena almofada na forma de um coração. De repente, alguma coisa começou a brilhar na região do peito de [Nome], e ao olhar para a luz, duas frases brotaram na mente de Shindou:

“Em uma casa, há luzes. E as dela, ela mantém acesa para Ele”.

Mal terminara de processá-las, percebeu que agora estava aninhado junto a [Nome] no divã, uma de suas asas parcialmente inclinada sobre ele, como um casulo de penas prestes a se fechar. A garota já não dormia, e cantarolava baixinho com os olhos fechados com um ar tristonho, como se estivesse arrependida de algo. Deitado ali ao lado dela, ouvindo-a cantarolar, Shindou demora a perceber que sua cabeça repousava sobre o peito de [Nome]. Ao invés de acanhamento, Shindou sentiu de novo a estranha paz que a voz da garota lhe trazia. Aconchegando-se mais, o garoto buscou pelo som do coração dela. Mas ao invés de batidas regulares, o som que ouviu ao pressionar mais sua orelha contra o peito da garota foram o de sinos. Sinos suaves, ritmados, que rapidamente fizeram suas pálpebras se fecharem. Algum tempo depois, que Shindou não consegue dizer se foram minutos ou dias, sentiu dedos leves e carinhosos brincando com seu cabelo. O garoto teve o impulso de abrir os olhos, e assim que o fez, estava fitando a meia penumbra de seu quarto.

Demorou quase três minutos para que Shindou se situasse. Lembrou-se de estar no telefone com [Nome], e de ter pedido para que ela cantasse. Lembrava-se do quão maravilhoso fora a ouvir a combinação da voz da amiga com os acordes de piano, mas em determinado ponto da memória, tudo ficava muito nebuloso até que...

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Shindou soltou uma dúzia de palavrões e insultos para si mesmo. Como ele podia ter dormido? Dormido! O quão imprestável ele era? O garoto dedicou-se a estapear sua cabeça por alguns segundos antes de começar a procurar o celular furiosamente. Encontrou-o sob os lençóis, um pouco mais abaixo da altura em que o travesseiro ficava. Seu coração deu um pulo quando ele ativou a tela e viu a notificação de mensagens de [Nome]. Ele abriu o celular com as mãos tremendo e abriu a conversa. Havia cerca de .... mensagens:

Anjo da guarda: Acho que você acabou dormindo

Anjo da guarda: Fico muito feliz que a música tenha te distraído o suficiente da dor para que você dormisse. No final das contas consegui fazer alguma coisa hahahaha Você estava certo!”

Anjo da guarda diz: Durma bem. Fique com Deus e sonhe com os anjos. Espero que esteja melhor amanhã

O coração de Shindou esmurrou suas costelas com mais força. Sonhe com anjos? Sonhe-com-os-anjos? Esse fora o melhor trocadilho unilateral e não proposital que [Nome] fizera até então. O irônico que é que o único lado que entenderia era ele, e não ela. Shindou soltou um longo suspiro e enterrou o rosto entre as mãos.

— Já deu né, You? – murmurou para si mesmo. A quem ele queria enganar? Quanto tempo mais evitaria pensar na verdade que parecia vir como post scriptum de todos os seus pensamentos acerca de [Nome]?

Estava apaixonado por ela.

Shindou You, apaixonado.

Com aquilo, a garota arcanja já poderia ser canonizada, pois ele jurara que jamais seria capaz de sentir algo como aquilo. Não com toda a insegurança que o dominava, e com a precaução que tomava em todas as suas relações sociais. Não com todo o calculismo que impregnava sua personalidade. Shindou tornou a suspirar e jogou-se de costas na cama, abrindo os braços e as pernas. A imagem do teto escuro aos poucos foi substituída pela lembrança de [Nome] em sua roupa de heroína, inspirada nas vestimentas do arcanjo que dava nome à sua Peculiaridade. A visão era tão linda e solene que fazia Shindou se sentir despido, um livro aberto para que a garota pudesse ler seus pensamentos mesmo sendo apenas uma lembrança. E todo aquele ar puro e majestoso só fazia-o pensar o quanto [Nome] era perfeita demais pra ele. Não parecia certo que um calculista que usufruía de métodos de manipulação em boa parte de suas relações sociais pudesse ficar com ela. Não, como [Nome] mesmo dissera, o amor que os anjos sentem foi-lhes ensinado e inspirado diretamente pelo próprio Deus. E Shindou You não merecia ser amado por um anjo.

Mas não era lá tão fácil se livrar daquilo, não quando ele já estava até sonhando com ela. Ele, sonhando daquele jeito com uma garota. Mais um milagre para a lista dos que [Nome] já realizara na vida dele. E, depois daquele sonho, guardar seus sentimentos parecia uma tortura. Nunca fora do tipo de guarda as coisas para si, afinal não sentia coisas intensas daquela natureza com frequência e, se o sentia, logo dava um jeito de colocar pra fora. De súbito, uma vontade louca de falar tudo apossou-se dele, e ele tornou a puxar o celular para a frente do rosto. Encarou as mensagens de [Nome], lendo-as novamente mais de cinco vezes, e a necessidade de dizer algo pareceu inchar. Ele respirou fundo e, pela primeira vez em muito tempo, deixou-se levar por um impulso irracional.

Shindou: Ei, [Nome]-chan. Me desculpe. Eu acabei dormindo mesmo. Bom, isso só mostra o quão eficiente você foi.

“Não”, pensou ele. “Está frio demais.”

Ele apagou a mensagem e reformulou-a. Colocou vários emojis chorosos antes da mensagem:

Shindou: Eu sou mesmo um imbecil. Acabei deixando você no vácuo total. Me desculpe, de verdade. Não sei nem com que cara vou conseguir conversar com você de novo. Perdi completamente minha moral pra pedir mais músicas.

O garoto sorriu, satisfeito, mas seu coração cavalgava em seu peito, ansioso, contrastando com o ar despreocupado de seu sorriso. Ele respirou fundo e voltou a digitar:

Shindou: A música era muito linda. Combinou perfeitamente com você. Mas eu sinceramente gostaria de te agradecer e dar minha opinião pelo telefone.

Shindou: Ah, mas tem uma outra coisa que eu queria te falar. Não é nada importante, mas

Shindou: Sei lá

Shindou: Fiquei com vontade de falar

Agora, ele ouvia o fluxo sanguíneo em seus ouvidos. Mais um pouco e não se surpreenderia se acordasse o resto da casa com o som das batidas de seu coração. Ele começou a digitar, mas logo apagou a mensagem. Fez isso, uma, duas, oito vezes, até que soltou um outro palavrão e puxou seu travesseiro para enterrar o rosto nele. Não, aquilo não deveria ser por mensagem. Podia ser calculista ou até manipulador, mas covarde, não. Pensou em ligar, mas além de não querer incomodá-la, só de pensar em fazê-lo, mil borboletas brotaram em seu estômago. Por fim, decidiu-se pelo áudio. Pigarreou várias vezes e se remexeu na cama como se houvesse uma posição que facilitaria a gravação. Por fim, pressionou o dedo sobre o ícone de microfone e começou:

— [Nome]-chan, eu... É uma coisa idiota. Muito idiota. Não que você esperasse algo diferente de idiota vindo de mim – ele deu uma risada. – Mas, quando tem algo que eu queira falar, por mais ridículo que seja, eu prefiro falar... Principalmente se for pra você, já que mesmo que eu seja um completo imbecil, você sempre me escuta. Mas, por favor, não quero mudar nada. Nem precisa comentar sobre se quiser. Eu realmente... não quero parar de fazer perguntas idiotas sobre anjos, arcanjos e todo o resto só pra te ver irritada. E eu realmente gostaria de ter outra chance de ouvir você cantar de novo. Por isso, só me ignore. Ouça e ignore como você faz brilhantemente... às vezes.

Ele fez uma pausa um pouco mais longa que o adequado para um áudio, puxou novamente o ar e disse:

— O lance é que eu... gosto de você. Claro que gosto imensamente como uma amiga, mas... Acabou virando uma coisinha a mais. Mas não preocupa, ok? Não se sinta pressionada a nada. Já lidei com um bocado de coisa complicada. Não é como se eu não conseguisse lidar com isso. Bom, era só isso. Nos falamos mais tarde.

Shindou soltou o botão e apertou os olhos e os lábios. Não ousaria deletar aquele áudio. Estava feito e pronto. Não iria voltar atrás. Ele tornou a se sentar, o peito ainda vibrando de ansiedade. Levou os dedos até as têmporas de forma inconsciente e massageou-as. Foi aí que ele percebeu.

A dor.

A enxaqueca havia desaparecido.

Shindou riu e se jogou novamente na cama. Ah, como ele estava enganado que conseguiria lidar com aquele sentimento tão facilmente quanto dissera no áudio. Por mais que parecesse errado, ele a queria mais do que tudo. Por mais que parte do seu cérebro gritasse que aquilo não era seguro, não havia volta.

Já era tarde demais para ele.