Blue Falls

Passeios Noturnos


“Você não tem medo nada, você não tem medo nada, você não tem medo nada”

Repetia esse mantra em minha cabeça a fim de convencer à mim mesma enquanto subia as escadas de casa. O sopro do vento nas janelas criava uma atmosfera ameaçadora e qualquer ruído que fosse me causava calafrios, enquanto eu tentava me convencer de que o perigo não era real. Eu não percebi quando, mas, de repente tudo virou um súbito silêncio. O vento cessou e o mundo parecia ter parado. Eu estava ao pé da escadinha que ia para meu quarto, restavam apenas alguns passos, respirei fundo e fui adiante. Quando meus dedos trêmulos tocaram a pequena maçaneta dourada, ouvi passos atrás de mim apressados que me causaram pânico, seguido por um alívio ao ver meu pai quando me virei.

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–Johanna! Que susto você me deu, encontrei o portão aberto e ao entrar você não me respondeu, nem quero pensar no que podia ter acontecido - ele começou a falar.

–Ah pai! – suspirei enquanto recebia o choque de adrenalina que estava contido em meu corpo até então. Meu coração e respiração, ambos acelerados, tentavam voltar ao compasso original sem sucesso. – Você quem me assustou, vou tomar uma água para me acalmar – Falei ao sair dali o mais rápido possível.

No início da noite, com Johnny e meu pai em casa, eu já estava mais tranquila. Subi para meu quarto dessa vez sem medo e lá comecei a desenhar tudo o que tinha visto em Blue Falls até então: desde florestas à retrato de pessoas, cachoeiras, flores silvestres, silhuetas em janelas. Desenhar era como exorcizar tudo o que estava aprisionado em minhas memórias. Sempre achei que tudo o que há dentro de nós precisa sair de alguma maneira, e que a arte era a melhor forma.

Ao finalizar, colei todos em minha parede, exceto a silhueta. Aquele preferi guardar. Quando estava terminando de fixar o último, bem no alto, me desequilibrei e acabei o puxando sem querer, trazendo um pedaço do meu papel de parede floral junto à fita. O que eu não esperava era que haveria algo sob aquilo: parecia ser parte do que um dia foi colado ali e foi esquecido, talvez um pôster. Observando aquilo, comecei a imaginar o que teria ali antes de virmos para cá, o que esse quarto já foi ou que tipo de memórias já foram vividas aqui. Embora curiosa, afastei esses pensamentos recolocando o papel de parede no lugar e colando o desenho em cima novamente. Seja lá o que fosse não seria interessante eu arrancar a decoração das paredes agora para ver.

Estava ficando tarde e eu cada vez mais cansada, então amarrei meus cabelos no alto da cabeça em um coque e fui deitar. Já na cama, comecei a observar minhas pernas onde havia alguns roxos e arranhões causados pelas trilhas que eu constantemente fazia. Meu antigo bronzeado - aquele que todos adquirem involuntariamente em Portland - já estava praticamente extinto, e meu corpo já não se lembrava mais o que era ficar exposto em poucas roupas. Senti falta de não estar sempre escondida.

Eu já havia desistido de me analisar e começando a pegar no sono quando ouvi algo batendo em minha janela. Tentei ignorar mas o barulho persistia, até que finalmente decidi me levantar e checar o que era.

Quando fui até ela, não poderia ter ficado mais surpresa com a vista: Abby e Zac, parados em meu portão, arremessando pedrinhas com olhares divertidos. Abri a janela e gesticulei como quem os questionava e ambos fizeram-me sinal para eu me aproximar. A casa era muito alta para uma fuga pela janela digna de filmes, então coloquei minhas calças e desci as escadas silenciosamente. Enquanto o fiz, soltei os cabelos e os escovei com os dedos em uma tentativa frustrada de não parecer tão bagunçada.

Chegando a porta principal, peguei meu casaco que estava pendurado e de lá vi meu pai adormecido no sofá da sala: seria minha chance. Uma vez do lado de fora, corri até o portão. A grama úmida de sereno fez com que gotículas de água respingassem em minhas pernas e minha respiração fazia fumaça no ar.

–Johanna! Pensamos que você não iria acordar nunca. – Disse Abby franzindo os lábios em uma careta no final.

Zac me cumprimentou com um aceno de cabeça, um pouco distraído como se estivesse com os pensamentos em outro lugar. Nele havia profundas olheiras sob os olhos.

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–Eu estava bem cansada e tenho aulas amanha cedo, não esperava que vocês fossem aparecer essa hora - falei, como se não fosse óbvio.

–É que nós realmente preferimos sair de noite – Zac disse sério olhando em meus olhos.

Por algum motivo isso me fez ter um arrepio, mas estava fazendo muito frio ali. Ele usava uma touca vermelha, deixando apenas as pontas irregulares de seu cabelo a mostra descendo até os ombros. Antes que eu respondesse, Abby propôs que déssemos uma volta.

–Vai ser bem legal, você irá adorar. A campina atrás de sua casa tem mais segredos do que você imagina – ela disse em um tom sombrio proposital.

–Tudo bem, vamos lá. –respondi, me questionando que horas voltaríamos.

–Temos que ser rápidos, vamos usar a rota alternativa - Zac decretou.

Abby ia começar a protestar e ele sem lhe dar ouvidos disparou em direção à parte de trás de minha casa. Abby, relutante, fez o mesmo resmungando algo. Apressei o passo e os segui.

A grade dos fundos ficava no começo da campina, dividindo o terreno em um ponto que fazia com que o lado externo fosse mais elevado que meu jardim. Correndo, Zac foi a um ponto específico da grade e colocou o pé entre as folhas numa pequena depressão do gramado que eu nunca havia reparado, usando-a como impulso. Em um salto, escalou a grade preta com naturalidade e perfeição, desviando facilmente dos pontos afiados. Perguntei-me quantas vezes ele já havia feito aquilo e me assustei com a ideia. Abby o seguiu porém sem a mesma agilidade, chegando em um ponto em que ele a puxou lá de cima facilitando as coisas para ela. Os dois pularam juntos para o outro lado.

– Acha que consegue vir? – Perguntaram-me através da grade.

Se completos desconhecidos eram capazes de escalar minha própria grade, eu também seria. Como uma boa observadora, imitei os passos de Zac, utilizando a mesma depressão como impulso e, embora sem aquela agilidade toda, consegui chegar ao outro lado.

–Acho que não darei mais a volta pela estrada quando quiser chegar até a campina – ri orgulhosa, tirando as folhas de minha roupa.

–Vamos, ainda temos certo caminho pela frente – disse Abby seguindo floresta adentro.

As folhas úmidas que cobriam o chão não faziam barulho ao serem pisadas, o que tornava nossa caminhada sinistramente silenciosa somada às luzes da lanterna que Abby usava. Ouvi sons de coruja ao longe, e senti no rosto a suave brisa que balançava os arbustos a pequena vegetação silvestre sob meus pés. Zac, que ia à nossa frente, parecia conhecer a floresta como se fosse sua casa: sem usar lanterna, ele passava com facilidade pelos obstáculos e por cima dos troncos atravessados no caminho, com um ar despreocupado. Andava como se fosse livre.

Em certo ponto, ele saiu da trilha e com um salto subiu em uma árvore à esquerda, descendo ao outro lado desaparecendo de vista. Abby virou-se para mim com um ar animado:

–Chegamos!

E ao dizer isso, subiu em um galho da mesma árvore e pulou para o outro lado. Essa árvore fazia tinha uma copa espessa que a ligava às demais, todas cobertas e unidas por erva-passarinho formando uma espécie de parede divisória com o que quer que estivesse além dali. E, para minha surpresa, descobri ao pular pelo mesmo galho que do outro lado havia uma clareira onde uma fogueira estava acesa e troncos ao chão serviam como bancos.

O luar parecia iluminar tudo de prata, dando um ar ainda mais encantador ao lugar. Em um dos troncos, estava sentado um garoto que Zac e Abby abraçaram animadamente. Ele era alto e tinha os cabelos muito pretos.

–Venha Johanna, queremos te apresentar ao nosso amigo – disse Abby me puxando pelo braço. – Este é Oliver. Oli, esta é nossa mais nova amiga Johanna. – Corei ao ouvir que ela me considerava uma amiga. Senti-me idiota por isso logo em seguida.

–Ah, a famosa Dubrowsky – riu o tal Oliver e também me abraçou, o que me pegou de surpresa.

Ele era bem alto, o que fez com que eu me sentisse totalmente envolvida em seu abraço. De perto era ainda mais bonito: tinha a linha do maxilar perfeitamente definida e os olhos muito claros, acinzentados. Seus cabelos, de tamanho médio, tinham um ar meio bagunçado embora lisos. As mechas da frente teimavam em escorregar para seus olhos querendo formar uma franja, o que não acontecia pois ele as colocava constantemente para trás.

Sentamos todos em volta da fogueira, todos conversavam animadamente. Abby tirou uma pequena garrafinha achatada do bolso e deu um gole, passando para Oliver que estava ao meu lado, que também deu um gole e levantou o pequeno frasco para o alto, dizendo:

– A todos os nós, os perdedores da sociedade! – E deu outro gole, fazendo todos rirem.

Quando ele levantou o braço, as mangas de seu suéter desceram e revelaram, em meio às veias azuladas de seu pulso, parte de uma tatuagem. Fitei-a tentando individuar sua forma, mas então ele passou o frasco a mim, arrumando suas mangas novamente. Dei um gole no conteúdo e franzi o nariz. Parecia ser whisky. Dei outro gole.

–Então você está estudando no Masefield? – perguntou Abby.

Demorei um pouco para perceber que ela estava se direcionando a mim.

–Estou sim, as aulas começaram ontem inclusive.

–Já estudei um tempo lá, até que era legal – Abby ficou séria e pensativa subitamente. - Toda aquela decoração do século passado me animava... Ficava imaginando se algum conde do mal um dia morou naquele castelo – disse mudando para um tom animado, como sempre fazia.

–Abby, alguém já te disse que seus gostos são extremamente duvidosos? – Perguntou Oliver ao meu lado, fazendo nós três rirmos mais do que o necessário, talvez por efeito da bebida.

Ainda rindo olhei para Zac, que estava sentado próximo a Abby do outro lado da fogueira. Através das chamas, vi que ele me fitava seriamente, sabe se lá há quanto tempo. Ao perceber que olhei, ele imediatamente desviou o rosto. Naquela fração de segundo em que nossos olhares se encontraram, meu sonho da noite passada reprisou em flashes na minha mente. Senti minhas mãos tremerem e um arrepio percorreu minha espinha, enquanto o calor da fogueira fazia minha pele antes fria transpirar.