Blue Falls

Místico


Em meio ao nevoeiro habitual, eu estava saindo de casa para ir à escola quando ouvi o som do motor do carro de Johnny. Ao passar por mim, ele fez sinal para que eu entrasse.

– O que deu em você acordar essa hora? – Questionei.

– Tenho uma palestra da faculdade hoje de manhã hoje e achei que seria coisa de bom irmão acompanhar a irmãzinha pra aula. – Disse enquanto acelerava na descida da ladeira de nossa ruazinha.

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– Bom irmão? Não estou vendo nenhum – ri ainda sonolenta.

–J, como você acha que papai está? – Percebi que ter essa conversa era o objetivo implícito da carona.

– Além de ficar trancado quase o dia todo escrevendo? Não sei. Acho que para um escritor ele está bem não é?

– Não sei, ele está muito quieto, achei que com a mudança de cidade e minha volta ele voltaria a se animar.

–Johnny, só a volta de mamãe o traria ânimo e você sabe disso.

–Você acha que algum dia ela vai voltar? – seu olhar era triste.

– Sinceramente? Acho que não. Ela nem tem nosso novo endereço. Na verdade eu espero que não volte. Abandonar a gente daquele jeito, se ao menos ela nos desse motivos ou explicações além daquela carta estúpida!

Mamãe fugiu fazia pouco mais de um ano, deixando-nos apenas uma carta e muitas dúvidas. Já fazia algum tempo desde que ela estava fria e distante de todos, meu irmão e eu costumávamos achar que nossos pais estavam se separando, mas sua fuga foi bem pior que isso. A única coisa que guardo de bom dela são as antigas lembranças felizes de infância, em um tempo distante onde nós quatro vivíamos unidos e felizes.

O silêncio no carro se seguiu até que paramos em frente ao Masefield.

–Boa sorte nesse mausoléu. Olhe pelo lado bom, já é sexta feira. – Johnny deu um sorriso desanimado.

Ele costumava gostar muito de mamãe, falar sobre isso sempre o deixava pensativo.

Dirigindo-me à 212 dei um encontrão em Laurie no corredor, que sorriu ao se desculpar. Ela usava diversas pulseiras de couro e de miçangas em seus pulsos, seus longos cabelos platinados estavam divididos ao meio. Eu havia começado a prestar mais atenção nela durante essa semana desde que Stan me disse sobre ela ainda ter bastante contato com Abby e Zac. Eu havia conversado com ela em alguns intervalos no terraço e embora fosse reservada, consegui fazer algumas descobertas. Laurie era mística: Quando comentei algo sobre signos ela não parou mais de falar. Era também uma amante da natureza e de suas energias, se declarou vegana e só fumava cigarros orgânicos tipo American Spirit, como se isso deixasse o fato de respirar nicotina mais saudável e natural.

Ao chegar a minha sala, comentei sobre ela com Stan e Izzy.

–Ah, Laurie é uma bruxinha entre nós – riu Izzy. – Ela leva muito a sério toda essa coisa de misticismo. Ela é meio sensitiva e parece que vem de família, a mãe dela também é assim.

– Duas doidas na verdade – Zombou Stanley. – Lembro até hoje de quando estávamos na oitava série e eu ri do pentagrama que ela usava, falando que era coisa do demônio e toda essa coisa de oitava série. Ela ficou tão brava que começou a blasfemar algo baixinho. Sei que o resto do meu dia foi horrível, tudo o que tinha para dar errado me aconteceu. Inclusive adquiri essa cicatriz – Disse ao puxar a manga do casaco, revelando o que um dia fora um profundo corte. Involuntariamente toquei meu braço, que teve um arrepio. - No dia seguinte ela veio me pedir milhões de desculpas e falou que nunca mais iria me enviar energias negativas. Claro que eu ri mais ainda, mas foi aí que viramos amigos. – A forma despreocupada que ele falava me fez rir.

– Nossa, estamos lidando com uma verdadeira feiticeira então - zombei.

No fim da aula quando me despedi de Stan e estava seguindo até a saída, uma mão magra cheia de anéis segurou meu braço.

– Ei, precisamos conversar – A expressão no rosto de Laurie era imparcial.

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Percorremos todo o colégio, subimos as longas escadas e finalmente saímos no terraço. Lá, ela começou a falar enquanto trançava uma mexa de cabelo.

–Eu sei que anda interessada em mim nesses últimos dias, Johanna.

–Como assim? – dei uma de desentendida.

–Eu sinto quando alguém me envia constantemente energia, seja falando de mim ou pensando muito em mim. Pode não levar a sério tudo isso, mas de qualquer maneira, queria que você me contasse o que anda te perturbando em relação a mim. – Indagou-me.

Fiquei pensativa. Ali sentada, enquanto trançava os longos cabelos, Laurie me fitava com quem desejasse ler pensamentos. Perguntei-me até onde ia seu suposto dom, ou se seria somente Izzy fofocando meu interesse repentino nela. Resolvi falar a verdade, não teria nada a perder.

–Não é nada, é só que me falaram que você também é amiga de Zac e Abby, fiquei curiosa apenas. – O olhar dela mudou quando pronunciei os dois nomes.

–Ah, então é isso... – Ela encarou o vazio como quem juntava pontos que eu não seria capaz de entender. Após pensar um pouco e escolher as palavras, continuou. – Tudo bem, mas se aceita um conselho, eu diria para manter uma distância gentil de Zachary. Ele não tem uma energia muito boa sabe, talvez não venha a te fazer bem.

Naquele instante eu perdi a calma.

–O que quer dizer com isso? – Indaguei. - Está querendo dizer com quem eu posso ou não ser amiga? - Assustei-me com meu repentino nervosismo.

– Calma, não é uma repressão, apenas um conselho amigo. – Laurie era muito pacífica, embora seu semblante sempre sério. - Cuide de quem você se aproxima Johanna. Você parece ser uma pessoa boa, pessoas boas são vulneráveis.

Uma pequena onda de indignação me subiu pela garganta, mas não formei palavras para expressá-la. Desde quando Laurie me conhecia direito para querer dizer o que devo fazer? Fitei os grandes olhos castanhos de Laurie enquanto me questionava suas verdadeiras intenções.

–Nesse seu colar, é uma ônix preta certo? – Ela me perguntou depois de um tempo em silêncio, enquanto se levantava. Assenti com a cabeça. – Ah, isso é bom. Continue usando-a, é uma boa proteção.

Fiquei um pouco atordoada com os pressentimentos de Laurie e fui até a biblioteca central para me distrair. Dei uma boa olhada no setor de historia local novamente, que vinha se tornando minha parte favorita do local. Era uma sessão repleta de livros amarelados com antigas capas duras. Ao devolver Lolita, levei para casa um exemplar de Blue Falls e as pedras: Caminhos Paralelos. Ao assinar a fixa de empréstimos do livro, me surpreendi em especial com uma caligrafia rabiscada entre os vários nomes: Zachary Walker. Estava começando a ficar paranoica com as coincidências.

Fui até a praça central, que ficava em frente a biblioteca, e em um banco comecei a ler. Novamente, começava com uma narrativa sobre o nome da cidade, dessa vez trazendo uma nova versão. Um trecho nela me chamou a atenção:

A famosa pedra preciosa azul protagonista da lenda da cidade, tem na verdade sua origem vinda do antigo povo pagão celta, que devido a sua perseguição sofrida durante a idade média fugiu para as florestas que hoje pertencem ao território de Blue Falls. Conta-se que as ninfas que habitavam os bosques e florestas guardavam as pedras preciosas através dos séculos, entregando-as para humanos desavisados ocasionalmente com objetivo de conquistá-los. Foi o caso dos pintores renascentistas, que, em meados do século XVI, vinham para a cidade em busca de inspiração. Sempre que tinham contato com ninfas, acabavam sendo conquistados e ficando viciados nelas. Até que em algum dos encontros, nunca mais voltava ou era visto. Embora as sociedades secretas dos celtas tivessem acabados sem um relato concreto, suas tradições perduram pelos séculos. Dizem que nas florestas de Blue Falls ainda habitam ninfas e descendentes de druidas, responsáveis pelos acontecimentos estranhos e a aura mágica presente em nossas fronteiras.”

– Versão bem mais interessante não é?

Assustei-me e levantei os olhos do livro. Estava tão imersa na narrativa que não havia percebido sua presença. Em pé, na minha frente, Oliver estava parado sorrindo.

–Oliver! – exclamei, parecendo um pouco mais animada do que pretendia. – Já leu esse livro?

–Olhe a fixa de empréstimos atrás - disse.

Abri a ultima pagina e comecei a reler a lista de assinaturas. Entre os últimos nomes que ficavam pouco acima do meu, Oliver Wingfield estava assinado com uma elegante caligrafia.

–Venha, vamos dar um passeio entre as ninfas. – Disse enquanto me puxava pelo braço em direção ao bosque que havia ao lado da antiga praça central.

Deixei que me levasse.