Blue Falls

Angústia


Cheguei em casa tão depressa que ao alcançar a varanda da frente, respirei fundo algumas vezes encostada na porta antes de entrar. Quando o fiz, deixei os sapatos sujos de barro e neve do lado de fora e uma vez dentro, tirei meu casaco e o pendurei.

–Há, eu disse que em menos de uma hora – a voz de Johnny vinda da sala tinha um ar de vitória, em contraste ao meu pai, que soltou um suspiro.

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Papai lhe entregou uma nota de dez com má vontade. Ele ainda estava cercado de seus projetos e Johnny sentado no tapete usando seu notebook. Aparentemente tinha sido algum tipo de aposta, mas eu não estava com cabeça para aquilo. Subi as escadas rapidamente e ao alcançar meu quarto, pela primeira vez me senti segura.

Fitei o amuleto pendurado próximo a janela enquanto abria a gaveta de minha escrivaninha, retirando dela o autorretrato de Zac e o desenho da silhueta que eu vira há certo tempo. Os dois estavam ali guardados juntos desde o dia que caíram misteriosamente sozinhos durante a madrugada. Tirei meu colar de ônix do pescoço e o coloquei sobre os papéis, aquilo tudo parecia querer se encaixar por algum motivo. Sonhos estranhos antecederam todos aqueles objetos. Me lembrei do que vira na casa do sr. Parks, mesmo em um frame, tudo era muito nítido. Aquilo tudo tinha que ter algum significado. E se Oliver e Leonard haviam ficado alarmados, certamente minha visão não fora mera paranoia. Zac estava voltando, de alguma forma.

Deitei-me a fim de ordenar os pensamentos. Oliver então tinha relações com Leonard, logo, mentira para mim aquele dia na sua casa em que disse não saber de nada. Mas que tipo de relação? Eu não fazia a menor ideia de suas intenções, não podia simplesmente condená-lo. Sem esquecer de que Leonard era uma criatura traiçoeira, seus atos eram imprevisíveis e complicados de se interpretar. O modo com que eles se trataram na floresta era de como se estivessem juntos em alguma coisa, mas o que mantivesse essa união fosse apenas o interesse -ou necessidade - por algo que só o outro pudesse dar. Milhões de possibilidades me afloraram, todas com o mesmo ponto comum: nenhum dos dois queria Zac de volta. Oliver sempre demonstrou certo ciúme por ele, mas Leonard, por quê? Provavelmente havia relação com a tal profecia mencionada, certamente relacionado aos Tenebris, que era o ponto em comum entre os dois. Talvez fosse um bem Tenebris maior os unisse, querendo eles ou não.

Mergulhei nesses questionamentos até que minha cabeça começou a doer. Lá fora o vento soprava na janela, e eu pensava no que faria a seguir. Pensei se Zachary corria perigo onde quer que estivesse, mas se sua volta ameaçava Oli e Leonard, certamente eu o estava subestimando. E se ele quisesse me ver, o amuleto impediria? Afastei a ideia, mantê-lo ali mantinha Leonard longe, isso era o mais importante por agora.

O enterro de Sr. Parks seria naquela tarde, eu aproveitaria e faria uma visita a lápide de Zac. Poderia chamar Laurie e contar tudo a ela, mas naquela altura eu preferia contar apenas comigo mesma. Recoloquei meu colar de ônix, e voltei a guardar os papeis sobre a escrivaninha. Já era hora de almoço, então desci para ajudar no que fosse necessário a fim de distrair um pouco minha mente inquieta.

A tarde passou rapidamente, e no fim dela todos nós vestimos algo preto – o que no meu caso não era muito diferente do habitual – e seguimos até o cemitério da cidade no carro de papai. Um silêncio acompanhou nosso percurso, ao chegar havia uma série de carros estacionados e se via ao longe um aglomerado negro de pessoas contrastando no branco da neve. Eu e Johnny descemos primeiro e fomos na frente. Ao passarmos pelo enorme portão do cemitério, contemplamos a paisagem das lápides salpicadas de branco, tornando tudo um pouco mais melancólico. Havia alguns vizinhos e uma série de rostos desconhecidos, provavelmente parentes do falecido. Se reuniram todos em frente do pequeno mausoléu de pedra da família, onde já estava a esposa e o filho de Parks. Diante dele, havia um caixão escuro posicionado. Acenos tristes e comprimentos nos foram lançados quando nos aproximamos.

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Um padre chegou um pouco depois e proclamou palavras de consolo antes de celebrar alguns ritos. Enquanto ele o fazia, senti alguém chegar de trás e parar ao meu lado, silenciosamente. Quando o olhei, encontrei o rosto de Oliver, que me deu um cumprimento discreto e voltou sua atenção ao padre em seguida. Algumas mechas de seu cabelo estavam estrategicamente sobre um ponto de sua testa, coisa que ele absolutamente nunca deixava. Lembrei-me do corte de hoje cedo que ali se escondia. Mesmo surpresa com sua presença o cumprimentei silenciosamente da mesma maneira, e meu irmão do meu outro lado pareceu não reparar nada.

Conforme o padre concluía os ritos, dois homens ergueram o caixão e cuidadosamente o colocaram dentro do mausoléu, que estava destrancado. Uma mulher de cabelos castanhos se aproximou do mármore escuro e colou nele uma nova plaquinha prateada, abaixo das duas anteriores, essa com o nome de Antonie Parks e suas datas de nascimento e morte. Ela secou uma lágrima que corria de seus olhos, e retornou se misturando aos outros que assistiam. A família estava, enfim, novamente reunida. Flores foram depositadas aos pés do mausoléu, retratos e cartas deixadas. Eu estava comovida, mas não suficientemente triste. Isso fez com que eu me sentisse uma intrusa, e tive uma vontade urgente de me afastar daquela cena toda.

Algumas pessoas começaram a se dispersar, e Oli já não estava mais ao meu lado. Olhei ao redor e não o encontrei em meu campo de visão, então dei os ombros e fui até única lápide que parecia importar naquele momento. O vaso de papoulas já não estava mais lá, mas tudo parecia do mesmo jeito que deixei, exceto pela camada branca e fina de neve. Segurava uma rosa vermelha que havia sido deixada no enterro do sr. Parks, e a coloquei diante da lápide de Zac.

–Roubadas de novo? – A voz de Oli surgiu atrás de mim, mas não me assustei.

–Já falamos sobre essa preferência – eu disse, procurando em sua expressão indícios de que ele sabia da minha presença na clareira hoje.
Não encontrei.

– Johanna – ele disse de um jeito suave, que contrastou com a maneira seca com que eu havia o respondido. – Desculpe pela maneira que te tratei ontem à noite.

Eu estava tão preocupada com o ocorrido dessa manhã que quase havia me esquecido da maneira estranha com que ele agira ontem. Dei os ombros como se aquilo não importasse, o que pareceu aumentar sua sensação de culpa.

–Por favor, me desculpe J, eu estava meio mal por conta de mil coisas que nem lhe envolvem, foi um erro descontar em você.

–Ta tudo bem, Oli... – eu disse de maneira neutra, surpresa com sua preocupação em transmitir suas desculpas.

Ele pareceu não se convencer. Eu queria perguntar sobre tudo o que tinha ouvido, porém não sabia como. Continuamos em silêncio lado a lado, quando então desisti de eufemismos e resolvi externizar o que me corroía internamente:

–Oliver - pronunciei cuidadosamente.

Seus olhos, da cor do céu cinzento, levantaram-se para mim.
Prossegui:

–Qual sua real relação com Leonard?

Percebi seus olhos estreitarem-se. Ao longe, as pessoas do velório já tinham quase todas ido para a catedral do outro lado da praça, onde seria celebrada uma missa. Ele respirou fundo e dissipou a tensão dos ombros.

–O que você quer dizer com isso? - ele perguntou, mas com uma expressão calma.

–Vi vocês hoje na floresta, durante uma caminhada - achei o suficiente a se dizer.

Ele então sorriu sem mostrar os dentes, olhando para baixo. Então levantou o olhar para o meu, e ainda com resquícios de um sorriso, disse calmamente:

–J, eu sou um Tenebris, querendo eu ou não. Há coisas que fogem do seu controle. Eu bem quis fugir de Leonard, mas infelizmente é como se estivessemos unidos nesse momento por algo de ordem maior, e pela Tradição, afinal.

Fiz uma longa pausa antes de responder:

–Por que não me disse isso desde o início, desde quando ele apareceu no seu apartamento?

–Tive medo que você pensasse algo ruim de mim, ou que me associasse à ele e deduzisse que temos a mesma índole ou intenções.

–E vocês não têm? - provoquei.

–Em parte. Como eu disse, interesses de ordem maior, que fogem do controle. Pelo bem da Tradição, por exemplo, precisamos nos unir, ainda que eu não queira. É como ficar do lado de alguém da família, mesmo que você não goste, pelo bem do todo. Ainda é sua família, consegue me entender?

Fiz que sim com a cabeça, mas estava mais é raciocinando do que concordando de fato.

–E pelo visto, você não pode me contar o que é - afirmei, com um tom entediado.

–Não é tão simples assim, J. Sigilo é muitas vezes necessário. Só peço que não perca a confiança em mim por conta dessa criatura desprezível.

–Confiança ultimamente está sendo um sentimento bem complicado de se depositar por aqui - eu falei, com um tom desiludido.

Ainda que olhando para baixo, pude sentir a expressão triste de Oliver. Ele então chegou mais perto e me deu um abraço apertado. Mesmo com a camada de casacos que tanto eu quanto ele usávamos, pude sentir o conforto que seu corpo transmitia. Não correspondi o abraço de imediato, cedendo um pouco depois e encostando a cabeça em seu ombro.

–Prometa-me que não vai me igualar à Leonard? - ele dizia com um sussuro triste em meus ouvidos. - Promete que não vai pensar coisas ruins e que não vai deixar de confiar em mim? Eu bem que queria poder lhe falar tudo sempre J, mas eu sinceramente nao posso! São coisas que estão além dos meus limites!

–Tudo bem Oli - eu disse em um tom reconfortante e terno, visto seu desespero. - Eu jamais iria lhe igualar àquela criatura, sei que você é melhor do que isso. Foi só que eu realmente não esperava...

Ele então me soltou, e com as mãos frias descendo suavemente por meu maxilar, percorreu o olhar por todo o meu rosto. Ele então aproximou seu rosto do meu e, com certa angústia e desespero, me deu um beijo como se aquilo lhe doesse não fisicamente, mas na alma.

Quando finalmente nossos lábios se separaram, vi seus olhos brilharem por conta das lágrimas que se acumularam. Ele se virou para o bosque, de costas para mim, e percebi que ele secava os olhos com as mãos bruscamente. Flocos de neve suavemente começaram a cair do céu. Ao longe podia-se ouvir os sinos da catedral.

–Oli... - comecei a dizer, mas minha voz falhou.

Ele então se virou para mim. Suas maçãs do rosto estavam levemente coradas, assim como seus olhos. Como se lesse os pensamentos que não consegui verbalizar, ele disse:

–Sabe por que isso, Johanna? É porque eu sei que ele irá voltar. E assim que isso acontecer, estará completamente acabada qualquer chance que poderíamos ter, qualquer coisa que poderíamos ser.

Seguiu-se uma pausa curta. Então ele pronunciou cuidadosamente, com um sorriso amargo:

–E sabe o pior? Não há absolutamente nada que eu possa fazer.

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x x x x

Abrindo o ruidoso portão da frente de minha casa, as palavras de Oli ecoavam em minha mente junto com a imagem de seus olhos aflitos. Não havia nada que eu pudesse dizer. Eu simplesmente não podia dar o que ele queria.

Depois do velório meu pai tinha ido visitar uma construção, e Johnny fora dar suas voltas, então eu me encontrava sozinha apenas com meus demônios sussurando coisas em meus ouvidos. Ao fechar o portão, a neve que havia se acumulado em cima caiu silenciosamente. Olhei para o horizonte, as montanhas ao longe e o bosque nos arredores, ambos polvilhados de branco. Nenhum som vinha de nenhuma parte. Apenas a paisagem nebulosa e o silêncio preenchia o agora.

A casa estava naquela penumbra clássica de dias sem sol. Havia a iluminação pálida vinda das janelas para se ver o ambiente, mas não o suficiente para se ler um livro, por exemplo. Pendurei o casaco ao lado da porta, e subi o primeiro lance de escadas vagarosamente. No primeiro andar, deixei minha bolsa aos pés da escada que ia para meu quarto e ainda em passos pesados e preguiçosos subi em direção à porta branca entreaberta.

Quando abri a porta, antes mesmo que eu acendesse a luz, uma figura estática sentada na cadeira do outro lado do cômodo me fez congelar onde eu estava. As sombras encobriam parte de seu rosto, podendo-se ver apenas os finos lábios que pronunciaram:

"Oi Johanna" disse Zachary Walker.