Abro a porta de casa com os pensamentos ainda nas nuvens e a vontade de apenas saborear o momento num silêncio contemplativo. No entanto, vejo Prim e Rue fechando a janela de par em par e suas carinhas ansiosas me mostram que estão morrendo de curiosidade.

— Então, o que foi esse grande anúncio aí fora? – A voz de Prim me traz de volta para a realidade. — Como assim você sai de casa como uma solteira convicta e volta com alguém fazendo uma declaração dessas?

Ah, Primrose, sempre impaciente. Eu mal chego e ela já está fazendo mil perguntas. Rue sai em minha defesa:

— Deixa a sua irmã respirar primeiro, Prim!

Suspiro profundamente, mas minha irmã não se contém depois de alguns instantes de agonia.

— Ele é quem eu estou pensando? Fiquei na dúvida, pois Annie disse que o nome do rapaz era Peter, mas…

— Você deduziu certo. Meu encontro às cegas foi com o Peeta.

— É mesmo o filho mais novo do padeiro? – Rue questiona animada.

— O próprio.

— Eu sabia! Liguei os pontos assim que eu vi a foto que Annie me mandou – gaba-se Prim. — Quando você vai nos apresentar a ele?

— Não sei, patinho. Espero que logo.

— Não vou aguentar esperar! – Ela corre até a mesa, pega seu telefone e começa a digitar desenfreadamente. — Pronto! Enviei uma solicitação de amizade para o meu cunhadinho. Vem ver, Rue!

Enquanto se acomoda ao lado de Prim no sofá, Rue pede:

— Agora conta tudo, Katniss. Com detalhes.

— Vou contar sim, mas vamos nos adiantando para irmos dormir.

Assim, enquanto preparamos o quarto para acomodar a nós três para passarmos a noite, narro os acontecimentos do Bar Mockinjay e do Pacific Park, sendo interrompida algumas vezes por perguntas das duas e por exclamações animadas de Prim, quando as notificações do seu celular indicam que Peeta aceitou sua solicitação e enviou uma mensagem.

— E isso tudo aconteceu no primeiro encontro! – Rue se admira, quando eu e ela já estamos deitadas lado a lado, encarando o teto do quarto e esperando Primrose apagar a luz.

Ela é a única que ainda está distraída com o celular, enviando textos e mais textos, um atrás do outro. Seus movimentos ágeis com as mãos são entrecortados por algumas risadinhas.

— Vem dormir, Prim. Deixa pra trocar mensagens com o Rory amanhã.

— Minhas mensagens não são para o Rory. São para o Peeta.

— O que você está escrevendo pra ele? – questiono.

Prim ergue os ombros, como se minha pergunta não tivesse importância, mas um sorriso travesso esquiva-se nos cantos dos seus lábios e ela pisca para Rue. Então, ela não se segura mais e deixa de lado a fachada para rir abertamente.

— Peeta não é só um rostinho bonito. Ele é simpático, interessante e divertido. – Prim acende o abajur e apaga a luz do quarto.

— Ah, é?! E onde vocês arrumaram tanto assunto? – Eu abandono qualquer tentativa de parecer indiferente.

— Nós temos um interesse em comum, que é… – Ela se ajoelha sobre o colchão e se senta sobre os calcanhares, apontando pra mim. — Você!

— Que segredos da sua irmã você está entregando para o Peeta, Prim? – Rue indaga, divertida.

— Acabei de escrever pra ele que, pra quem levava uma vida amorosa tão sem graça quanto a sua, Katniss, você recebeu doses cavalares de romance numa só noite.

Ela se aconchega entre mim e Rue, no meio das camas unidas para acomodar a nós três.

— Eu deveria ficar chateada por fazer esse tipo de comentário, mas você tem razão. Para alguém com o meu histórico, foi mesmo uma overdose.

Fecho os olhos e relaxo, entorpecida por esse doce veneno. É tão boa a sensação que ele provoca, que não preciso e nem quero nenhum antídoto.

— Katniss, você ainda está acordada? – A voz tímida de Rue é quase inaudível.

— Sim.

— Eu sinto tanta falta de ouvir você cantar. O Peeta deve mesmo ser alguém especial, para trazer sua vontade de cantar de volta.

— É verdade. Canta pra gente? Por favor? – Prim implora, quando levo minhas mãos ao rosto. — Por favorzinho?

E, depois de tantos anos, faço-as adormecerem, enquanto cantarolo algumas canções de ninar, como costumava fazer com ambas quando mais novas.

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Na manhã seguinte, ainda bem cedo, o barulho provocado pela vibração do meu telefone sobre a mesa de cabeceira me desperta. Estico o braço para pegá-lo e saio do quarto, para não perturbar o sono de Prim e Rue.

— Alô? – atendo com a voz ainda rouca.

— Bom dia, amiga. Não queria acordar você.

— Que pena, porque, aparentemente, foi o que você fez, Annie. – Bocejo ao terminar de falar. — E, antes que eu me esqueça… Bom dia! A noite de ontem foi realmente muito divertida. Tenho que admitir que você estava certa.

— Ah! Eu sabia! Perdi a aposta! Ou será que eu ganhei? Nem sei mais os termos da aposta…

— Não se preocupe com isso. Pode manter o seu precioso pôster do Josh Hutcherson. Feliz?

— Sim. Feliz por alguém finalmente ganhar seu coração… E já que é alguém como o Peeta, fico mais feliz ainda!

Fico atônita com sua afirmação e não sei nem o que dizer a respeito. Então, volto rapidamente ao assunto anterior.

— Por que você me acordou a essa hora da madrugada mesmo?

— Estou ligando para pedir sua ajuda. – Annie respira fundo antes de prosseguir. — Marquei com alguns alunos para estarmos na escola às 8 h. Eu planejei adiantar com eles os projetos para a feira de ciências, mas não tenho como ir tão cedo.

— O que aconteceu? Onde você está?

— Finnick me trouxe para a casa dele e…

— Poupe-me dos detalhes sórdidos!

— São sórdidos mesmo! Vomitei a noite inteira.

— Oh, sinto muito.

— Você já tinha outros planos, por acaso? Com o seu namorado?

— Não combinei nada com o meu… – Pausa para um sorriso. — Namorado. Aliás, como você já está sabendo dessa notícia?

— Eu tenho bons informantes.

— Eu mereço! – reclamo. — Mas está tudo bem, Annie. Vou me aprontar para estar na escola a tempo. Melhoras pra você.

— Pode deixar que eu já estou melhor. Finnick é que está insistindo para me levar ao médico. Encontro você depois na escola.

Após desligar, caminho preguiçosamente de volta ao quarto para me preparar para sair. Pego tudo o que preciso no armário, com cuidado para não despertar as meninas. Depois de me aprontar, vou tomar café da manhã. Prim e Rue já conversam animadamente no andar de cima e fazem uma algazarra tão grande que o barulho se espalha pela casa.

Quando já estou quase terminando de comer, minha mãe abre a porta de casa com cuidado e acena com a cabeça ao me ver.

— Bom dia, filha. Você ficou muito bem no meu vestido ontem. Sua irmã me mandou uma foto.

— Obrigada, mãe.

— Como foi o encontro? – pergunta ela e mal tenho tempo de abrir a boca, pois Primrose adentra a cozinha e responde por mim.

— Mãe, o encontro foi com o filho do padeiro! E ele é meu mais novo amigo… Peeta Mellark. – Ela cruza a cozinha com o celular aceso para mostrar à nossa mãe, que pressiona os lábios para disfarçar a surpresa.

Na tela, brilha uma foto de Peeta em alguma rede social.

A expressão da minha mãe demonstra que ela o reconhece. Então, ela sorri de modo compreensivo para mim depois de desviar os olhos da imagem.

— O que faz acordada tão cedo, Prim? – pergunto, antes que ela teça qualquer outro comentário.

— Annie combinou comigo, Rue e com alguns outros alunos para irmos à escola hoje. Somos o grupo responsável pela decoração da feira de ciências e vamos pintar algumas faixas e placas, tirar medidas, preparar a lista de materiais necessários… Essas coisas.

— Eu levo vocês, então. Annie me ligou há pouco, dizendo que não conseguirá estar na escola a tempo, e me pediu para acompanhar os alunos enquanto ela não chega.

— Oba! Carona! Vou avisar à Rue! E ao Rory… – Primrose abaixa o olhar, sorrindo de lado, mas depois me encara novamente, analisando-me brevemente. — É melhor vestir aquele seu macacão velho, pois tenho certeza que você não vai querer ficar só tomando conta dos alunos e vai se sujar toda de tinta com a gente.

— Obrigada por avisar. – Deixo a mesa e vou até o quarto mudar de roupa.

Aproveito para prender meu cabelo numa trança lateral. Quando desço os degraus até a sala, Prim, Rue e Rory já estão quase prontos para sairmos.

Na escola, como Prim previu, eu imediatamente me envolvo nas tarefas, auxiliando no que posso. Atravesso o pátio da escola ao lado de Boggs, o responsável pelo almoxarifado, ambos carregando caixas com tinta, verniz, pincéis e outras ferramentas, em direção à sala de artes.

Annie fez um excelente planejamento para a exposição dos experimentos científicos dos estudantes, e os projetos em si estão muito interessantes. Alguns deles exigem investimento por parte da escola. Por isso, Prim e seus colegas organizaram um relatório com tudo o que precisa ser adquirido, para apresentarem à nova diretora, Alma Coin.

Por sorte – ou não –, ela e o odioso Coordenador Geral, Coriolanus Snow, estão nas dependências do colégio esta manhã e acompanham as atividades preparatórias para a feira de ciências.

Quando eu e Boggs retornamos ao local onde estão os alunos, Coin e Snow analisam o relatório e seus pedidos com um ar nada receptivo.

— Temos que cortar alguns desses gastos – Coin decreta friamente, riscando alguns itens com uma caneta. — Existem restrições orçamentárias esse ano.

— Mas a Johanna já havia garantido… – intervenho rapidamente, mas sou interrompida por ela.

— Srta. Everdeen, caso não tenha sido informada a respeito, a Srta. Mason está afastada da direção da escola e não é mais a responsável por isso.

— Temporariamente – enfatizo.

Temporariamente ou não, essa é apenas a primeira mudança que veremos por aqui – Snow destila seu veneno, saboreando cada palavra.

Eles devolvem o relatório às mãos de Prim, agora abatida com a notícia, assim como estão os seus colegas de classe.

Boggs sacode a cabeça quando ambos se afastam.

— Eu não sei qual foi o critério para a escolha dessa nova diretora, mas certamente não foi sua empatia com alunos e professores – desabafo.

— Eles estão promovendo grandes mudanças mesmo – Boggs confirma as palavras de Snow, enquanto descarrega os materiais que trouxemos sobre uma mesa. — Lá no almoxarifado, por exemplo, a catalogação dos materiais e equipamentos não está mais sob minha responsabilidade.

— Estranho…

— Tome aqui as chaves da minha sala. Eu confio em você, Katniss, mas, por favor, não confie neles – alerta Boggs, antes de me entregar o chaveiro do almoxarifado e sair.

Balanço a cabeça em concordância e procuro os alunos, que formaram um círculo no canto da sala, para debaterem sobre o veto feito por Coin.

— Não fiquem assim. Vocês são criativos e sei que vão inventar novos projetos maravilhosos, mesmo com o corte nos gastos… Vamos adiantar o que for possível e esperar a Srta. Cresta chegar para orientá-los melhor? O que acham?

— Ótima ideia! – Prim beija minha bochecha e reassume seu posto nas tarefas.

Aos poucos, o desânimo vai desaparecendo e todos estão novamente engajados nos preparativos.

Mais tarde, Annie aparece na escola – não com os trajes de uma operária como os meus, mas vestida como uma modelo, num tubinho azul-marinho e sandálias de salto fino –, atraindo olhares admirados dos alunos quando passa por eles. Ela fica em pé ao meu lado. Estou sentada no chão, desenhando letreiros, completamente desgrenhada e salpicada de tinta. Eu me levanto, abandonando o pincel e o pote de guache, e ela me analisa com cara de surpresa.

— Amiga, você não existe! Veio com essas roupas para a escola? Você veste a camisa mesmo pelos alunos…

— Enquanto você veste o figurino digno de uma passarela de moda.

— Eu não tinha muitas opções viáveis na casa do Finnick para essa ocasião – resmunga ela em tom baixo. — E foi tudo bem lá na consulta com o médico. Obrigada por perguntar.

— Ah, perdão, Annie. Como foi?

— Ele apenas fez algumas perguntas e pediu alguns exames.

— O médico por acaso sugeriu que você pode estar… grávida? – apenas balbucio a última palavra, de modo que ninguém mais a escuta, apenas ela.

Annie franze o cenho, porém logo sorri amplamente e me dá um abraço apertado, mesmo correndo o risco de se sujar.

— Se for verdade, são todos os meus sonhos se realizando! – exclama ela, com um tom um tanto agudo, que aponta um ligeiro nervosismo.

Ela me solta de seu abraço e posso ver seus olhos brilhando de emoção.

— Não deve ser bom pra você ficar exposta a esse cheiro de tinta e verniz. – Eu a afasto do local, levando-a para o corredor. — Vem pra cá.

— Ainda não sei se é verdade! Especialmente depois dos meus exageros de ontem… Mas você já está superprotetora?

— Pode contar comigo para barrar suas travessuras.

— Falando em travessuras… – Ela aponta para a entrada atrás de mim e acena.

Não tenho tempo de girar o corpo para ver quem está chegando, pois Prim se esgueira até mim com uma caixa de lenços umedecidos e passa um deles em minha bochecha, onde certamente há resquícios da pintura desajeitada que eu estava fazendo. Depois, minha irmã olha por sobre meus ombros e uma risada lhe escapa.

— Acho que não fui rápida o suficiente.

Ela dá um passo para o lado e estende a mão para quem acabou de chegar.

— Muito prazer em conhecê-lo pessoalmente – Prim se apresenta com simpatia.

Uma voz masculina aclara a garganta e cumprimenta minha irmã de volta:

— O prazer é todo meu. – O timbre aveludado e já conhecido monopoliza minha atenção imediatamente.

— Finn convocou o Peeta para trazer um lanche para nós e os alunos – Annie sussurra em meu ouvido.

Eu finalmente me viro e lá está Peeta, sorrindo amplamente, seus olhos azuis brilhando ao me ver.

— Você pediu uma fornada de pães de queijo. Então, eu trouxe pra você. – Ele segura uma sacola de papel.

A bolsa branca está ligeiramente amarrotada na lateral, onde os dedos de Peeta estão apertados. A parte superior está lacrada por um adesivo circular com o logotipo da Padaria Mellark, idêntico ao que ainda tenho guardado entre as folhas de um de meus antigos cadernos.

A visão me remete a dez anos atrás, mais precisamente ao dia em que ele me deu os pães que eu não tinha condições de comprar.

Meu garoto com o pão… E ele está aqui, na escola, diante dos meus olhos, esperando alguma reação minha.

Minha boca fica seca e meu coração dispara, como costumava acontecer nas raras vezes em que tive coragem de retribuir seu olhar nesse mesmo corredor. Peeta limpa a garganta novamente.

— Não foi você quem disse que gosta de pães de queijo? Vá em frente. Experimente os que eu fiz.

Fico ali em silêncio, atordoada demais para saber o que fazer.

— Katniss, não faça desfeita com o Sr. Mellark aqui, pois o cheiro desses pães já abriu meu apetite – graceja Finnick ao se acercar a nós, carregando duas outras sacolas, com caixas de suco e mais pães.

— Abriu o apetite de todos! – anuncia Bristel, um dos alunos, puxando o coro para a concordância de todos ao redor.

— Não se preocupe, Finnick. Ela já está escalada como a provadora oficial das receitas da padaria. – Peeta estende o pesado pacote pra mim.

O calor que emana da sacola me indica que seu conteúdo está fresco do forno e o aroma maravilhoso dos pães me ajuda a sair do meu transe momentâneo.

— Oi, Peeta… Provadora oficial? Eu?

— Você mesma! – reafirma ele. — Estou esperando o seu aval para a produção de hoje.

Abaixo os olhos timidamente, com o objetivo de abrir o pacote, porém interrompo o gesto ao reparar em minhas mãos ainda borradas por causa da pintura de alguns minutos antes.

Logo eu me sinto autoconsciente, em razão do meu estado lastimável para me encontrar de novo com Peeta.

— Podemos mesmo fazer um intervalo para o lanche agora, não é, pessoal? – Annie sugere, percebendo meu desconcerto. — Você pode levar sua produção ao refeitório, por favor, Peeta?

A ruiva devolve a sacola a Peeta, que segue para o local indicado, após um aceno de cabeça para nós duas, sendo acompanhado pelos demais.

Depois, Annie me leva até o banheiro anexo à sala dos professores e vai tagarelando por todo o caminho.

— Pode me explicar o motivo do seu estado catatônico? Já sei! Você ficou com medo de Peeta beijar você no meio da escola? Na frente dos alunos? Ele não faria isso! Peeta com certeza não quer que a nova diretora chame a sua atenção… Já não bastou a ausência de mensagens suas pra ele depois de uma noite como a de ontem? É difícil entender como você não mandou nem um emoji! – ralha ela, com uma ruga de indignação entre as sobrancelhas bem delineadas.

— Espere aí. Como você sabe disso?

— Eu já disse que tenho uma fonte confiável.

— Quem, Annie?

— Prim é minha informante. Mas não se atreva a brigar com sua irmã! – adverte ela. — É para o seu bem.

— Deixe-me adivinhar… Você arquitetou esse segundo encontro às cegas aqui na escola?

— Mais ou menos. Você não me deu opção.

— Então, foi tudo uma invenção? Até a ida ao médico?

— Nem tudo. Só a parte da gravidez. – Annie me lança um olhar arrependido. — Achei tão bonitinho o seu cuidado comigo, amiga… Estou apenas cuidando de você também.

— Eu queria conseguir brigar com você.

— Ah, você consegue! Mas não é o momento. Agora é hora do lanche, preparado por aquele belo padeiro, que só faltou se jogar aos seus pés, enquanto a senhorita ficou paralisada, ignorando as tentativas dele de impressionar você. – Ela me empurra banheiro adentro e me deixa sozinha em frente ao lavatório.

— Não foi isso, Ann…

Encolho os ombros quando ela bate a porta sem qualquer delicadeza. Antes de lavar minhas mãos e braços, refaço minha trança e ajeito como posso minha roupa.

Quando ingresso no refeitório, o grupo está dividido em algumas mesas e o lugar a mim reservado é, logicamente, ao lado de Peeta. Uma bandeja com os pães já está arrumada e Finnick enche um copo com suco para mim.

Todos interrompem a conversa para observarem o momento em que vou provar os pães que Peeta preparou. Os meninos imitam o rufar de tambores, batendo as mãos no tampo da mesa.

Dou a primeira mordida e fecho os olhos com a sensação maravilhosa de degustar algo absolutamente delicioso, o queijo derretendo-se na minha boca. Limpo os lábios com um guardanapo, fazendo suspense, embora a minha primeira reação já tenha dispensado qualquer palavra minha.

— Sem correr o risco de exagerar… – Depois de uma pausa estratégica, continuo: — Esse foi simplesmente o melhor pão de queijo que comi na minha vida!

Peeta dá um sorriso tão lindo e genuíno, que tenho que me conter para não abraçá-lo e beijá-lo. No entanto, como estou na escola, em meu ambiente profissional, não posso seguir o meu impulso. Peeta parece vivenciar o mesmo dilema que eu, aparentando também estar ansioso para ficarmos a sós.

Passo a meia hora seguinte prestando pouca atenção nas demais pessoas e tentando absorver cada trejeito, cada palavra, cada silêncio de Peeta. Eu fico com aquele sorriso bobo no rosto, de tanto orgulho pelo modo como ele se mostra atencioso, receptivo, engraçado e perspicaz, conquistando a admiração de todos. Primrose não se acanha em fazer caras e bocas para mim, sinalizando sua aprovação.

Apesar de eu e Peeta não termos assumido nada na frente dos demais alunos, depois de tantas indiretas dos que sabem do que se passou entre nós na última noite, o restante do grupo já está ciente de que ele não é apenas um amigo. Então, Peeta se anima a perguntar:

— Eu tenho motivos para ter medo da sua mãe, Prim?

— Ah, sim. Minha mãe tem um temperamento terrível. Ela consegue ser pior que a Katniss… Se eu fosse você, tomaria cuidado – ironiza Prim, piscando para Peeta.

— Primrose Everdeen! – eu a repreendo, para o total divertimento dos seus cúmplices ao meu redor.

— Acho que não é má ideia levar alguns cupcakes especialmente pra sua mãe, para amansar a fera. Amanhã é um bom dia? – Peeta indaga.

Suas palavras ficam penduradas no ar. Eu vejo a expressão feliz de Primrose se transformar de repente. Ela arregala os olhos, fixando-os em mim, e balança a cabeça de modo quase imperceptível. Eu sei que ela teme a minha reação ao mencionar o dia mais triste do ano para mim e minha família.

— Infelizmente, não é um bom dia – revelo, sem ocultar o pesar em minha voz.

Alguns dos alunos que estavam conversando entre si param de falar e olham em minha direção. Eu posso sentir minhas bochechas corando.

— Amanhã se completam dez anos da morte de nossos pais – explica Rory, envolvendo os ombros de Prim.

A seriedade na face do garoto me traz a recordação de seu irmão mais velho, Gale, e de como ajudávamos um ao outro a suportar essa dor, esse eterno vazio.

— Não existe nem mesmo um lugar aonde ir para depositar flores, mas é melhor mesmo deixar para outra ocasião – Prim declara.

A expressão confusa de Peeta após a afirmação dela não me escapa.

— Não havia nada nem para enterrar, depois da explosão que os tirou de nós. – Desço os olhos para não enfrentar a análise de ninguém.

Sem racionalizar minhas ações, sob a mesa, tomo uma das mãos de Peeta. Ele entrelaça seus dedos nos meus, desenhando círculos nas costas da minha mão com o polegar.

— Entendo. – Peeta fica um pouco envergonhado, mas mantém um sorriso amável em seu rosto.

Eu murmuro um agradecimento quase silencioso para ele, enquanto aperto meus dedos em volta de sua mão.

— Muito bem. Nada de cupcakes! – brada Finnick.

Admiro a maneira como ele tenta retomar o clima leve do bate-papo.

— Foi apenas um adiamento, pois eu gostaria, sim, que Peeta levasse os cupcakes para minha mãe. – Forço-me a expressar um tom mais entusiasmado.

— Talvez… No próximo sábado? – prevê Prim.

— Acho que sim – assinto.

— E o que devo fazer a semana inteira sem você? – queixa–se Peeta.

— Assar pães de queijo para nós! – Rue se manifesta do outro lado da mesa e todos riem.

— E cupcakes também! – Annie completa.

— Acho que você ficará bastante ocupado, Peeta – brinco.

— Sugestão aceita! – Peeta acaricia levemente minha mão presa na dele e sussurra: — Pelo menos, vou poder encontrar você na escola, quando vier trazer minhas encomendas.

— OK, pessoal, a conversa está ótima e a padaria já é um sucesso antes mesmo da reinauguração, mas temos muito trabalho pela frente – convoca Annie.

Todos acatamos seu pedido e, depois de limparmos o refeitório, damos continuidade aos nossos afazeres.

Finn se dispõe a ajudar os meninos na sala de marcenaria, enquanto Annie, Prim e Rue se reúnem numa mesa da sala de artes para rediscutir os projetos que precisam ser alterados.

Eu e Peeta formamos uma dupla para terminarmos a confecção dos cartazes e faixas. Uma dupla é modo de dizer, pois fico apenas auxiliando e admirando seu talento como pintor. Além de retocar minhas pinturas mal feitas, Peeta transforma o que eram painéis simplórios em verdadeiras obras de arte.

Gosto de observar suas mãos enquanto ele trabalha, fazendo uma tela em branco florescer com seus precisos riscos de tinta, acrescentando toques de cor e belos detalhes. Seu rosto assume uma expressão especial quando ele se concentra. Suas feições usualmente tranquilas são substituídas por algo mais intenso, que sugere que há um mundo de emoções vibrando em sua mente.

Mesmo nesse curto espaço de tempo, posso afirmar que também criei uma pequena fixação por seus cílios, que normalmente não se notam muito, porque são bastante loiros. No entanto, de perto, com a luz do sol invadindo a sala através da janela, eles adquirem uma tonalidade dourada clara e são tão longos, que me espanto em como eles não ficam emaranhados quando ele pisca.

Num gesto inesperado, Peeta interrompe o desenho que está fazendo e ergue os olhos para mim tão subitamente que eu me assusto por ter sido flagrada em minha observação. Ele não faz nenhum comentário embaraçoso, mas apenas diz:

— Acho que essa é a primeira vez que fazemos algo juntos na escola, sabia?

— É mesmo – concordo. — É legal mudar um pouco.

Quando concluímos nossa tarefa, limpamos e organizamos os materiais nas caixas para devolvê-las ao almoxarifado.

— Eu já preciso ir, pois combinei de almoçar com os Cartwright. – Peeta confere o relógio, antes de vestir sua jaqueta. — Eles almoçam tarde, mas nem tanto. Você gostaria de vir comigo?

— Olhe pra mim! – Aliso meu macacão surrado. — Não estou apresentável.

— Você fica linda de qualquer jeito.

— Não exagere e… Vamos deixar para uma próxima vez.

Peeta faz menção de tocar meu rosto, mas desiste ao ouvir as risadas de alguns estudantes ecoando no corredor. Ele, então, bate as mãos nas laterais de sua calça, guardando-as nos bolsos da jaqueta em seguida.

— Vocês dois podem fazer o favor de levar esse material para o seu devido lugar? – Annie ordena, com uma entonação capciosa, apontando as caixas que eu e Peeta acabamos de fechar.

Peeta ergue uma delas, mas eu não me movo.

— Pode deixar, Peeta. Os meninos me ajudam a levar depois.

— Nem pensar! – Annie retruca, franzindo o cenho pra mim com impaciência. — Vocês dois devem ir agora! Aproveitem que Boggs não está lá e organizem tudinho, sem pressa…

— Já que você insiste! – Peeta pisca para Annie e sai da sala antes que eu possa alertá-lo sobre a hora do almoço com seus amigos.

Prim pega a outra caixa, coloca-a em meus braços logo em seguida, e ela e Rue me conduzem até o corredor.

— Lembre-se do que a Annie falou – Rue me aconselha. — Boggs vai querer encontrar tudo bem arrumadinho.

As duas se afastam, divertindo-se e cochichando entre si. Peeta me espera a alguns passos de distância e ri ao me ver respirar fundo e hesitar.

— Vamos? Não estou tão atrasado assim para o almoço – afirma ele, meneando a cabeça, antes de dar alguns passos para me incentivar a caminhar com ele.

É um pouco estranho vê-lo na escola depois de tanto tempo. Está tudo tão diferente, mas ele parece reconhecer cada recanto. Peeta passa a andar ao meu lado, quando viramos na direção do almoxarifado. Ele felizmente quebra o silêncio.

— Quer dizer que ainda é o Boggs quem toma conta dos materiais?

— Sim. Boggs ainda trabalha lá. Mas ele já foi embora.

Minhas sapatilhas clicam nos pisos de mármore do corredor vazio. Nossos passos são tudo o que posso ouvir, quando cruzamos o conjunto de portas até chegarmos ao nosso destino.

Ambos apoiamos nossas mãos na maçaneta ao mesmo tempo. O toque da ponta dos seus dedos é eletrizante, diante da expectativa de ficarmos a sós.

Capturo o seu olhar por um segundo antes de Peeta abrir finalmente a porta e apoiar-se nela para me dar espaço para entrar.

Atravesso o umbral, passando por Peeta. Deposito a caixa que estou carregando numa prateleira e Peeta escora a que ele trouxe num armário que fica na parede oposta.

Depois, ambos nos permitimos um vislumbre um do outro e cada um dá um pequeno sorriso. Ele começa a caminhar em minha direção, seus olhos faiscando de ansiedade, o que é suficiente para que eu me esqueça completamente de onde estamos.

Peeta está tão perto de mim que posso sentir sua respiração em minha pele. Sem sandálias de saltos, fico bem mais baixa que ele, porém, antes que ele possa dizer qualquer coisa – e antes que eu perca a coragem –, rapidamente me lanço para frente, na ponta dos pés, e aperto meus lábios contra os dele.

Eu sinto seus músculos se tensionarem de leve com a surpresa pela minha iniciativa, mas eu mantenho meus olhos fechados e nossos lábios unidos, até Peeta relaxar um pouco e retribuir o beijo, enlaçando minha cintura.

Eu me separo ligeiramente e busco os olhos dele. Nós nos encaramos ainda sem acreditar no que está acontecendo. Começo a abrir a boca para balbuciar sobre o quanto fui imprudente ao beijá-lo nas dependências da escola. No entanto, assim que inicio a frase, Peeta rapidamente agarra meu rosto em suas mãos e me beija mais avidamente.

Desta vez, ele está pronto e sou eu que fico em choque. Seus lábios estão quentes e são tão gentis contra os meus, que não resisto em devolver o beijo, movendo nossas bocas suavemente, despreocupadamente, como se todo o tempo do mundo não fosse o suficiente.

Suas mãos se deslocam do meu rosto para a minha nuca e seus dedos se aninham em meu cabelo. Pouso minha mão direita em seu peito, onde sinto seu coração batendo tão rápido quanto o meu. Sorrio contra seus lábios.

De repente, um pigarreio irritado nos interrompe e nós nos afastamos um do outro, com os rostos afogueados e a respiração curta.

O inspetor Romulus Thread estala na palma da sua mão a régua que ele sempre carrega consigo, como se fosse um chicote, anunciando a sua temível presença, como faz desde a época em que eu e Peeta éramos alunos.

— Ora, ora, se não é o Mellark! Não sinto falta de ver você se esgueirando por aí com suas vítimas, como nos velhos tempos. – Ele aperta os olhos na direção de Peeta, depois passa a me espreitar. — E você, Srta. Everdeen? Nunca me trouxe preocupações na época de estudante, vai dar mau exemplo agora que é professora?

— A culpa foi toda minha, inspetor – Peeta mente em minha defesa.

— Está sentindo falta das inúmeras advertências que recebeu durante todos os seus anos aqui na escola por ser um… Conquistador?

Imediatamente, milhares de perguntas se amontoam em minha cabeça. Quem seriam essas garotas? Será que eu conheço alguma delas? Com quantas ele já se encontrou depois que voltou da Inglaterra?

E, quanto mais surgem esses questionamentos, mais minha frustração aumenta e mais vergonha eu sinto por fazer esse papel idiota e infantil em pleno ambiente de trabalho.

— Isso não vai se repetir, inspetor – afirma Peeta com ar culpado, quando Thread nos dá as costas.

Aguardo ele sair e encaro Peeta.

— Não vai se repetir mesmo – murmuro entre dentes, dando passos largos para sair do almoxarifado.

— Katniss, espere um minuto! Sobre o que Thread falou…

— Você não tem que se explicar. Isso é passado.

— Eu… Eu sei que não se importa com o meu passado. – O tom magoado que ele usa me corta o coração, mas continuo irredutível em meus passos duros e sem rumo certo. Peeta segue em meu encalço e prossegue, ofegante: — Só queria que você soubesse que, provavelmente, ele me confundiu com um dos meus irmãos.

Paro de andar subitamente, mas me viro devagar. Peeta dá alguns passos cautelosos até onde estou. Acompanho com o olhar o movimento de seus dedos, que se esticam até meus cabelos e correm por minha trança. Ergo os olhos e eles encontram sua fisionomia, que mescla receio e ternura.

— Thread nunca poderia ter me dado uma dessas advertências. Eu tinha apenas onze anos quando saí dessa escola e… – Peeta titubeia. — Só tinha olhos pra você.

Para completar, depois de fazer tal confissão, Peeta sorri timidamente e coça a nuca, o gesto que está disputando o topo da lista das coisas adoráveis que ele faz. Isso é mais do que suficiente para eu me impulsionar para a frente e eliminar a distância entre nós com mais ímpeto do que quando fugia dele.

Para alguém que pretende ser discreta, eu não pareço muito preocupada em ser descoberta novamente ao arrastá-lo através da porta de uma das salas de aula.

— Então, você vai mesmo querer uma advertência? – pergunta ele, colando a testa na minha.

— Acha que estou merecendo? – respondo com outra questão e desapareço em sua boca mais uma vez, depois que ele faz um gesto afirmativo com a cabeça.

Peeta também age rapidamente. Antes que eu possa calcular o que ele se prepara pra fazer, já estou presa entre seus braços, com suas mãos apoiadas na parede atrás de mim. É impossível escapar… E isso é algo que definitivamente não tento fazer.

Não há como ignorar as rajadas de calor que percorrem meu corpo, quando seus lábios deixam a minha boca e descem por meu pescoço.

— Estou toda suja de tinta – digo, quando seu nariz raspa um pedaço de pele ainda manchado.

— Ah, se você soubesse… Essa é a união perfeita de duas das coisas que mais me fascinam no mundo. Tinta e Katniss Everdeen.

E acontece de novo. Os mesmos sentimentos de segurança e conforto que conheci ontem se apoderam de mim no instante em que ele me toma em seus braços. Sou também apresentada a outras sensações maravilhosas a cada toque suave e a cada beijo.

— Você me desculpa por minha reação exagerada e nada simpática no almoxarifado?

— O que foi aquilo, hein? – Ele acha graça, agora que está tudo bem.

— Não sei direito. Acho que me senti meio boba por ter sido flagrada pelo Thread.

— Então, foi só isso?

— Havia também uma pontadinha de ciúme das suas possíveis conquistas.

— Se é assim… Está desculpada! – garante ele, com um sorriso triunfante esculpido em seu belo rosto.

Dou um passo para trás e seguro suas mãos, fitando seus olhos e, depois, o ambiente ao redor.

— Essa é uma das minhas salas de aula, sabia?

Ele me olha intensamente, com um sorriso de lado.

— Eu não conseguiria me concentrar na aula, se você fosse minha professora – Peeta assume com a voz grave. — Pensando melhor… Vem aqui me ensinar uma coisa.

Peeta me puxa para seus braços e seus lábios de novo.

— Você é um aluno aplicado!

— E você, a melhor professora que eu já tive… Mas, infelizmente, eu preciso ir.

— Tudo bem. Não quero que se atrase mais ainda.

— Imagino que não poderei ver você amanhã. Vou sentir saudades da minha bela professora.

— Pense em mim… Essa é a sua lição de casa.

Peeta planta um beijo terno em minha bochecha e cerro os olhos, que permanecem fechados quando ele se afasta e me deixa querendo mais, muito mais.

Ele sussurra adeus bem perto do meu ouvido e eu abro meus olhos para fitá-lo diretamente, meu corpo explodindo em chamas ao vê-lo partir.

No entanto, antes de atravessar a porta da sala, Peeta dá meia volta e confessa:

— Estou em dia com minha lição de casa… Eu sempre pensei em você.