Black Desert

Os Prédios Condenados


Em meio à minha curiosidade persistente Saret então finalmente parou tudo o que estava fazendo e soltou um cansado suspiro -sabendo que eu ainda não tinha sumido de trás dela-, me falando em um tom bem mais irritadiço.

— "Haah... Dá para sair da frente do meu prédio? Eu já sou obrigada a te aguentar na clínica, não quero também ter que ficar olhando para a sua cara quando finalmente consigo voltar para casa!"
— "Ah-! Então você mora aqui?"
— "...Minha vida também não é do seu interesse."
— "Concordo que não é mesmo... Mas fiquei surpreso por você morar aqui."
— "Porque? Essa região é simples demais para o nível de um "prodígio" como você?"
— "... Bem, comparado à Cidade Baixa definitivamente qualquer lugar se torna "simples" demais-..."
— "Então você mora naquele bueiro? Humph, faz sentido."
— "...Você sabe que mora em uma área de prédios condenados, não?"

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Ao que eu disse aquilo, Saret então cortou sua atitude orgulhosa e começou a me encarar com um misto de desconforto e intimidação -ao que eu juro que seu olhar tentara me atravessar igual à uma chuva de agulhas sendo atiradas contra mim- admitindo sem querer com aquela sua atitude que ela sabia muito bem o quão perigosos os prédios daquela área das Escadarias tinham a fama de ser. E o quanto o lugar em que ela morava não era nenhum lugar para se orgulhar também...

Existia alguma explicação bem lógica para as Escadarias em si serem formadas por esses pedaços grandes de blocos lisos derrubados e amontoados uns nos outros.
Eu pessoalmente não conheço a verdadeira história por trás de como essa região foi criada -porque cada pessoa conta uma história um pouco diferente- mas quase todos dizem que isso foi resultado de alguns prédios antigos que foram derrubados com o tempo porque haviam sido feitos pelos Skreas em uma época em que eles ainda testavam vários tipos diferentes de estruturas contra a natureza do deserto (antes de se decidirem pelas estruturas de pedra e material escuro apenas).
E parece que nessa época em que as Escadarias foram criadas, eles tentavam usar ainda muita madeira em quase todas as suas estruturas (herança da cultura das regiões originais das quais eles vieram). Mas esse é um recurso difícil de se conseguir por aqui em grande quantidade, e reformar esses prédios depois de tantas avarias passou a se tornar um custo irrelevante para eles quando o vidro negro começou a ser usado nos prédios, tornando esses lugares algumas das construções menos confiáveis que foram deixadas para trás pelos antigos Skreas na Ala Oeste até hoje.
"Isso é, se eu não pensar muito nas construções do Gargalo... aquelas ali fazem até mesmo esses prédios parecerem confiáveis."

Ebraín me disse que quando nossa raça começou então a povoar o interior abandonado da Citadela e notou que ainda existiam prédios com essas estruturas de pé, eles tomaram como certa a determinação dos Skreas de que sua qualidade não era de confiança e os abandonandonaram também à própria sorte, deixando-os para os mais pobres da cidade já que esses não tinham muito como escolher onde se esconder do sol, dos ventos e do frio da noite.
Desde então Ebraín me falava que nenhum desses prédios realmente desabou já que seus novos moradores se esforçaram muito para continuar mantendo-os de pé com o pouco que tinham. E talvez por ela também fazer parte disso seja que Saret agora está me fazendo uma expressão tão irritada, independente do quão certo eu ainda possa estar.
"E ela já está nessa cidade há 2 anos, ela tem um trabalho remunerado, então por quê escolher viver em um dos poucos lugares que só o Gargalo supera em expectativa de desastre?"

Eu continuei olhando Saret pensativamente por mais alguns segundos enquanto ponderando essa situação. Talvez fosse porque ela não é dos desertos e não tenha testemunhado a violência com a qual tábuas de madeira podem ser arrancadas por uma tempestade muito forte. Afinal, aqui na Citadela as muralhas também nos protegem de qualquer vento direto, então as lembranças que me perturbam talvez nunca venham a perturbar ela, mais do que os boatos que circulam com a intensidade da insegurança das outras pessoas, que também são nativas dos desertos e testemunharam as mesmas coisas que eu testemunhei quando menor, quando forçado a me refugiar em abrigos muito precários pelos traficantes. Afinal, tínhamos sorte quando parte do abrigo não acabava sendo arremessado contra um de nós, nas piores das tempestades...

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"Tsc, eu realmente nunca vou conseguir confiar nessas construções, não quando nem mesmo quem as construiu não consegue confiar nelas."
Mas para Saret talvez isso não importe, porque sequer sabemos se os prédios caídos que formam as Escadarias realmente caíram sozinhos, ou se foram os Skreas que os derrubaram propositalmente antes de qualquer Humano chegar aqui para testemunhar. E essa área inegavelmente é uma das melhores localização na Ala Oeste para se morar, sem falar que Saret não deve gastar quase nada por esse privilégio, morando em um desses prédios.
Afinal, as Avenidas são muito caras e lotadas de Skreas nada amistosos, a Cidade Baixa tem uma taxa de crimes muito alta por culpa das gangues e é exageradamente movimentada durante a noite, as áreas ao redor do Gargalo são muito segregárias com estranhos sendo o próprio Gargalo um lugar esquecido por Grivah que opera completamente fora das leis da Citadela, e as áreas residênciais como os Distritos e os Aquedutos se tornam regiões fantasmas quase que o dia todo porque são longes demais de qualquer comércio.

"É, talvez para Saret, afinal, esse lugar não seja uma escolha tão ruim assim para se morar se ela conseguir ignorar os boatos... Mas ela não irá ouvir isso de mim."
Nisso, então, eu voltei à prestar atenção em Saret -que aparentemente dera suas costas para mim pretendendo me ignorar durante todo esse tempo em que eu ficara quieto na minha-, finalmente entrando naquele prédio sem qualquer outro tipo de aviso além de um alto e irritado "humph" -ao que ela confirmou com o canto de seu olho que eu continuava ali.
Só que, antes de realmente desaparecer prédio adentro, eu pude então ouvir sua voz uma última vez se dirigindo à mim em provocação, como se ela realmente não pudesse deixar de aproveitar aquela chance para tentar desafiar minha paciência.

— "Pelo menos é bom saber que não somos vizinhos. A última coisa que eu quero é ficar esbarrando em alguém como você todos os dias."
— "Verdade, mas você ainda não pode dizer o mesmo quanto à Ebraín, não é?..."

Ao que eu mexi com ela em seu ponto mais fraco (Ebraín), Saret então deixou escapar um cansado gemido de sua boca -um gemido que parecia carregar várias cansativas lembranças- tencionando seus ombros no processo e fazendo ela cruzar seus braços como se um calafrio a percorresse.
Nisso então Saret se virou rapidamente na minha direção com uma expressão nada agradável -ao que eu acho que ela queria muito me mandar para algum lugar- e agarrou a maçaneta da porta de seu prédio com vontade.
A última coisa que eu pude ver então, em seguida, foi ela esmurrando aquela porta na minha cara e fechando-a com vontade. Usando toda a violência que ela não podia deixar escapar de outra maneira comigo sem que acabasse perdendo a sua própria razão diante de Sal mais tarde.

Já eu, por outro lado, apenas balancei a minha cabeça em desaprovação, rindo comigo mesmo ao que eu sabia que havia ganho a última palavra dentro de nosso pequeno embate -dessa vez!
"Talvez usar Ebraín tenha sido um golpe um pouco baixo, mas sempre funciona quando quero que ela me deixe em paz. Hehehe!"
Lidar com Saret era muito diferente de lidar com qualquer outra pessoa para mim. Mas em um bom sentido, já que com ela pelo menos eu me sentia apto à mentalmente enfrentá-la no mesmo nível!
Outras pessoas como Gale, Sal ou Ebraín sempre me impuseram um desafio mental grande demais para eu sequer me sentir confiante em desafiá-los. E por isso que eu agradeço às vezes, por Saret ser a maior pedra que existe no meu sapato, e não um deles três.

Pensando assim eu então voltei com o meu caminho até minha casa na Cidade Baixa. Com meus passos lentos e tranquilos até lá, o momento em que eu finalmente cheguei em casa já era o momento em que a noite e o frio estavam cobrindo o deserto inteiro -me fazendo querer mais do que nunca cair na cama independente dos barulhos que vinham da rua.
O clássico som latente da Cidade Baixa começando a despertar também entrava sorrateiramente pela minha janela, junto daquela característica brisa gelada da noite. E aquilo sempre desafiava a minha mente diáriamente à querer despertar e arrumar algo diferente para fazer.
Só que o meu corpo já estava bem pesado, implorando para eu deixá-lo descansar mais do que algumas poucas horas -ao que minha cama estava tão próxima de mim- fazendo com que minha mente desistisse e resolvesse realmente ir dormir logo de uma vez.

Nisso eu então fui tirando aos poucos cada uma das minhas peças de roupa sem qualquer pressa até que restassem apenas as minhas roupas de baixo -arrumando e guardando todos aqueles panos da melhor forma possível por sobre algumas cômodas que eu tentava sempre deixar organizadas.
Nessa minha atitude rotineira então foi que eu finalmente notei aquela carta de Gale -sobre o móvel na qual eu havia deixando-a de manhã- ainda intocada como se ela estivesse esse tempo todo me aguardando voltar com notícias.
Como se algo estranho desse em mim, eu então tomei-a em minhas mãos com um pequeno desconforto (por me lembrar ainda o que estava escrito dentro dela) e a rasguei em vários pedaços sem qualquer tipo de embromação.
Fazer aquilo me trazia à tona todo o sucesso de minhas ações e me satisfazia por dentro de uma maneira indescritível! Era como se eu pudesse projetar e misturar minhas raivas sobre Gale naquele gesto, desabafando muita coisa naquele simples papel picado.
E assim que eu então terminei -me dando conta da bagunça que eu fizera no chão- foi que então eu relaxei finalmente meu corpo e comecei à divagar um pouco...

"Eu poderia estar morto a essa altura mais uma vez... E é muito estranho admitir que deu tudo certo hoje graças àquele Skrea."
Eu pensei comigo mesmo sabendo que eu devia de ser grato por Damian ter estado ali por perto, mas que por outro lado eu ainda me sentia muito incapaz de ignorar que ele era um Skrea e que eu não queria esquecer que odiava toda a raça dele.
"Não importa o que aconteça, estar perto dele sempre me faz sentir como se eu estivesse 'traindo-a' de alguma maneira... Mesmo que eu nunca concordasse com a filosofia da SevenRoses de enfrentá-los diretamente... coisa que ela por outro lado seguiu tão fielmente até o fim."
Aquilo tudo somado ao fato de que eu havia sido salvo das ações de alguém que eu considerava meu amigo, por alguém que eu facilmente consideraria meu inimigo... era o suficiente para fazer não só minha cabeça doer, como meu peito também.
"Deixar de pensar nisso é o melhor para mim. Afinal nada muda por causa disso. Ainda odeio Skreas, ainda não quero ter nada haver com Damian... e ainda sei que vou continuar cruzando o caminho de Gale como se para ele nada demais tivesse acontecido."

Às vezes eu acreditava que Gale era uma sina pessoal minha. Eu gostava muito de andar com ele -independente de seus avanços estranhos sobre mim- porque eu sempre senti que ele me respeitava de uma forma que outras pessoas por sua vez nunca conseguiram.
Eu notei isso por exemplo quando ele decidiu que queria trazer as Feiticeiras D'água para sua gangue (fazendo Sal desaparecer com suas meninas em resposta), e me colocando na difícil posição de escolher entre trair os desejos de Sal e continuar andando com ele, ou trair os desejos de Gale e sumir de sua vista para sempre junto à Sal.
Para minha sorte, porém, Gale naquela época me surpreendeu. Eu sabia o quanto ele era manipulador com as pessoas, e por isso principalmente que eu fui pego de surpresa quando ele resolveu me garantir que jamais iria me envolver naquela história se eu não quisesse, dizendo que não iria também me forçar ou misturar a nossa amizade nessa história -me isolando totalmente de seus planos assim como ele está fazendo hoje.
Para ele realmente eu nunca fui apenas um Feiticeiro, um prodígio, ou apenas um cara vestido de odalisca. Para ele eu era a pessoa que eu era -sem títulos ou adjetivos-, e é por conta disso que eu acabei criando essa dificuldade em me convencer a odiá-lo de verdade.
"Mesmo que ele seja muito errado aos meus olhos. Ainda sim ele continua a ser a pessoa que mais me quer por quem eu sou, e não pelo que eu sou... E eu não sei como me opor de verdade à uma pessoa assim."

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Nisso que eu fui pensando aquilo, lentamente eu fui me ajeitando sobre os panos na minha cama e me enrolando neles desajeitadamente sem muito me importar -ainda um pouco consternado.
Gale no fundo era uma fraqueza secreta minha que eu conseguia manter sobre controle -me afastando dele sempre que precisasse.
Mas quando ELE se tornava o problema em si, era então que eu quase sempre perdia a noção do que fazer ou de como reagir às coisas. Eu sabia que não tinha realmente que me preocupar mais com ele por um tempo, mas eu sabia que ele continuaria à ser um problema enquanto tivesse essa mentalidade anti-Skreas bem pior que a minha.
E o fato dele ter uma atitude firme quanto a concretizar seus sonhos só o tornava ainda mais perigoso no segundo em que ele encontrava meios de enfrentar essa outra raça.
Era isso que mais me preocupava no momento -as coisas que ele conseguiria fazer para chegar aonde queria, mas que por outro lado eu não conseguiria fazer para detê-lo.

Porém mesmo com esse obstáculo que eu não conseguia ultrapassar, para minha sorte Gale continuava à ser um humano limitado. Não importava o quanto eu soubesse que não poderia impedi-lo para sempre, eu também sabia que ele não conseguiria lutar para sempre contra mim.
Não importasse quantos contatos ou membros ele tivesse para encurtar seus caminhos na busca de um mundo sem Skreas, eu ainda sim conseguiria atrapalhá-lo dentro de meus próprios limites -fossem eles físicos, ou sentimentais. E por isso em especial que eu também conseguia me sentir ainda no controle dessa situação, sabendo que não haviam razões para me desesperar e envolver Sal ou Ebraín nessa história por enquanto.
"Eu sei que eles também precisam ficar apostos ao pior, mas ainda é cedo demais para eu os alarmar atoa. Especialmente se eu ainda sentir que posso resolver isso sozinho e poupá-los no processo."
E ao que esses meus pensamentos então foram se afirmando mais e mais por conta própria, o sono finalmente veio... Embalado pela brisa que vinha da janela e pelo peso do meu corpo que não conseguia mais mover sequer um músculo sobre aquela cama dura -porém, no momento, muito confortável.