Bem Vindo à Time Watch!

Loading... Arch 1, Chapter 2: Conflito


Tinham se passado dois dias desde a entrevista, nos quais eu deveria tomar uma decisão que poderia mudar os rumos da minha vida para sempre. E eu estava praticamente certa do que queria. A parte mais difícil seria deixar as pessoas que conheço sabendo da decisão, e isso incluiria minha melhor amiga Keila, pois só assim teria uma garantia de que alguém pudesse exigir satisfações caso eu desaparecesse, ou me machucasse, talvez morresse. Eu não tinha a quem deixar uma indenização ou bens próprios, mas precisava confiar ao povo conhecido do Entulho a missão de me entregar ao destino de forma pacífica.

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Contudo, eu não tive coragem de contar nada a ninguém assim que optei pela minha escolha, e no tempo que se decorreu. Tudo o que conseguia fazer era me esconder dentro da pequena casa onde vivia, lucubrando a respeito do futuro e preocupada com a minha falta de domínio sobre as coisas que aconteciam. Nas raras vezes que eu saía do cortiço sujo e hostil no noroeste da cidade, era apenas para comprar pão fresco, e mesmo assim cedo o suficiente para não dar de cara com Keila e sua oficina de veículos bons demais para qualquer um de nós.

No entanto, quando percebi que para uma futura recrutada em uma empresa internacional, eu não sabia quase nada de política exterior, tal pensamento me causou profunda insegurança. Já tinha ficado surpresa o bastante quando descobrira que o líder da TimeWatch era um nórdico, daqueles que tem o monopólio do mundo. Por isso tomei a decisão de refrescar meus conhecimentos. Peguei minha única cópia restante do render de imagem oferecido pelo governo para explicar à população da América nossa situação atual.

Esse render era considerado de suma importância e absolutamente obrigatório em cada propriedade ou lar do país, sob pena de prisão. Fornecido completamente de graça, através de todas as maneiras possíveis: quando um cidadão compra uma televisão, ele vem de graça com um leitor barato incluído. Quem não tivesse dinheiro suficiente recebia um Holo com o vídeo gravado. Ele era exibido duas vezes por ano em todos os colégios da nação no Ensino Fundamental. Enfim, aquele que recebesse uma vistoria em casa e por infelicidade não tivesse a gravação guardada seria indiciado por anti-nacionalismo e investigado até a morte pelo governo.

Mas fazia um bom tempo que eu não assistia, então inseri o render no leitor e sentei no sofá para revê-lo na tela de plasma que foi uma das poucas heranças deixadas pelo meu pai.

Vestida em um moletom cinzento e abraçando um travesseiro, vi o símbolo da águia estampar majestoso a introdução do VT. O hino soava nos alto-falantes enquanto uma nova tomada mostrava um país rico e majestoso.

"−Os Estados Unidos da América sempre foram uma nação brilhante e cheia de liberdade, mas há alguns anos, éramos supremos nesse pequeno planeta chamado Terra (corte para um desenho de um planetinha azul com a legenda 'Terra')".

Éramos donos da economia e tínhamos o controle sobre as antigas formas de energia, como petróleo e gás natural. Tudo o que não tínhamos, era adquirido com nossos parceiros e colaboradores ao redor do Globo.

Mas, infelizmente, um dia essas riquezas começaram a causar um dano muito grande ao nosso planeta. Primeiro em outros continentes, depois nos países que mais costumavam trabalhar conosco. Foi um período de crise muito difícil para todos"

Vários americanos tristes e inconsoláveis estampavam a tela em cores desbotadas. Prosseguia:

"−Para piorar nossa situação, os países pequenos, que costumavam ser apenas transportadores de finanças, traíram-nos e a vários outros dando golpes e roubando todo o dinheiro que confiamos a eles para nosso progresso".

Os nórdicos. Suíça. Caribe. Alguns dos países que se tornaram ricos da noite pro dia.

"Então, uma conferência dos principais líderes decidiu que o mundo deveria ser abastecido por uma nova forma de energia: estava mais do que na hora de mudar nossa história. Com um planeta limpo e cheio de vida, a humanidade poderia recomeçar do zero em busca da prosperidade infinita.

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E desde então, nos EUA, Inglaterra e várias outros países amigos, foi adotado o sistema de divisões. Visando preservar nossa riqueza e o bem-estar de todos, para nosso retorno, que temos CERTEZA, será triunfal".

Fim da gravação. Desligo.

Sem tirar o render do aparelho. Desligo tudo de uma vez porque me enoja. Me enoja a falta de caráter. A musiquinha orquestral suave quando começam a falar do sistema de divisões. Na desculpa podre de "conservar riquezas". Todos sabem que esse sistema foi adotado para garantir o dinheiro aos mais ricos quando o país entrou em crise. Mas a coisa toda tinha refrescado na minha mente: as antigas potências agora eram o terceiro mundo e os emergentes, a supremacia cultural. Os países menores controlavam quase tudo. Essa era a situação.

Foi quando pensei no que Johansson tinha dito, com a história do estoque secreto. Se os mais poderosos usam energia renovável, isso significa que ainda teriam alguma coisa de reserva. Mas eles eram muito pequenos, e é claro que nunca iriam financiar a própria exploração, o que nos leva de volta ao plano A.

Me levantei e fui até o pequeno compartimento do banheiro, onde um espelho me ajudaria a pensar melhor. Meus pais, o que eles fariam?

Encarei meu reflexo. Os cabelos da minha mãe, cor de chocolate, com alguma coisa sólida e brilhante, como castanhas. Olhos do meu pai, cor de orvalho e folhas secas. Pareciam uma pintura com tinta verde envelhecida. As sobrancelhas finas e o rosto oval, as orelhas um pouco mais pra frente do que eu gostaria. Prazer, Jane Adams.

Decidi que a melhor forma de contar para Keila era fazendo um convite para lanchar comigo. Alimento é bom e deixa todo mundo mais feliz, e de mais a mais, eu não queria que ela esquecesse que, acima de tudo, somos amigas.

De início ela tinha ficado um pouco relutante. Mas assim que voltei para a sala, o interfone do prédio tocou.

***

−Então você vai aceitar.

Foi a primeira coisa que ela disse, assim que nós entramos na sala. Eu mal tinha começado a falar. Fechei a boca e suspirei.

Ela examinava o interior da casa com uma expressão estranha. Convidei-a para se sentar de um lado na mesa da sala, que tinha um pote de manteiga, alguns pães quentes e uma jarra de refresco. Keila não olhou para eles nem um segundo. Ela olhava para mim, diretamente.

Parecia que tinha saído a pouco da oficina. Ela era bonita, isso eu devo admitir, mesmo com as mãos sujas de graxa de vez em quando. Tinha o cabelo preto curto repicado na altura da nuca e olhos castanhos. Usava uma regata preta, calças cargo cáqui (pessoas do Entulho usam muita cargo. É boa pra armazenar coisas) e tênis esportivos que pareciam herança de família. Uma faixa vermelha sempre decorava sua cabeça, junto com um par de luvas sem dedo. Ela lembrava um pouquinho aqueles guerreiros de filme, só que mais feminina.

−Eu convidei você aqui não para brigar, e sim porque quero que você saiba da minha escolha-comecei.

−Sabe que eu só falo isso pelo seu bem, não sabe? Jane, aquelas pessoas têm dinheiro, não se engane−falou, séria.

"Como elas podem ter dinheiro se a energia está acabando?" pensei, mas decidi não contar para Keila o que sabia e deixá-la se achando vitoriosa. Poderia complicar tudo.

−Eu sei que elas têm. E é disso o que eu preciso: dinheiro. Todos nós precisamos. Sinceramente, não está cansada de viver desse jeito? Por um fio, o tempo todo?

Ela franziu a testa, pensativa. Eu estava indo bem...

−Key, se eu conseguir, imagina as recompensas que eu poderia receber. Uma vida nova−sussurrei, emocionada−não seria bom? Eu perdi meus pais, você nunca nem os conheceu direito, mas com tudo isso a gente poderia... talvez sair daqui!

Os olhos dela se arregalaram−Você diz... sair do Entulho? De vez?

−Acredite, com o dinheiro que eu acho que estou prestes a receber, e vendendo algumas coisas, poderíamos construir uma casa na fronteira dos Ganhos.

−...perto da Platina−ela murmurou, e parecia não acreditar no que estava ouvindo−Jay, isso seria um sonho.

−Ei, morar na Utopia não, eu ainda não faço milagres−brinquei, e nós duas rimos. Ela parecia mais calma, e se voltou para o lanche em cima da mesa.

−Espera. −ela tinha o olhar fixo na comida, e eu engoli um seco.

−O que...

Isso aqui−ela rosnou, segurando o pote de manteiga como se fosse tacar em mim a qualquer momento.

−Do que você está falando, é só manteiga...

−Não, não é. Tente outra vez− ela estava enfurecida. Eu não sabia do que ela estava falando, até ela se levantar e andar com raiva até a minha geladeira− o que você está fazendo? −gritei.

−Eu te conheço, Jane, e você sabe disso muito bem.

E então eu percebi.

Mas. Que. Droga.

Eu não ia resistir, e Keila sabia. Minha afeição por comida. Meu pai costumava cozinhar para a gente antes de morrer, e a qualidade das coisas era bem melhor até eu ficar sozinha. Minha melhor amiga adivinharia que na primeira oportunidade eu compraria coisas melhores para encher o armário. Olhei para o pote em cima da mesa, desesperada.

−Manteiga, mas não é sintetizada. Não é daquelas de se comprar no mercado−dizia−é MANTEIGA REAL, feita de óleo de palmeira. Isso não é muito barato, é!?

Ela abriu a porta da geladeira com força, e tirou um pote com conteúdo roxo.

−Geléia de ameixa− disse, erguendo uma sobrancelha− imagina se fosse de morango, não é mesmo?

Eu estava começando a soluçar.

−Você não pode me culpar por comprar nada disso!

−Eles te deram DINHEIRO, Jane! Eles querem te COMPRAR! Como você não enxerga isso?? −ela ia elevando a voz, e eu me recusava a aceitar.

−Eles não vão me comprar−gemi−foi só uma garantia, só isso! O Sr. Johansson me deu a escolha-

−Johansson? Esse é o nome do cara?

Keila começou a rir. Mas, de repente, ela ficou sombria. Fechou os olhos, e parecia resmungar.

−Já era, não é? Você vai embora. Pra sempre.

−É claro que não! − retruquei, sem paciência− Para de ser tão louca! Eu tenho proteção do governo!

−Você. Vai ser mandada. Para. O espaço− falou, me encarado− Que tipo de proteção pode se ter no espaço? Ainda mais em uma base lunar que não é nem daqui. Ei, acho que você está esquecendo uma coisa essencial. Você é uma jovem sozinha, pobre, e que não tem nenhum responsável que possa recorrer por você lá fora. Sabe porque eles usam pessoas assim, Jane? −ela apontou para a janela− porque nunca, ninguém, pode reclamar por mão de obra irregular. É mais barato− acrescentou, afiada.

Que coisa, garota. Eu não te convidei para me ofender assim na minha casa.

–Essa é a minha decisão, e eu não vou voltar atrás, Keila. E não existe nada que você possa dizer que mude isso.

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−ÓTIMO! − berrou.

Desastre. Desastre. Ela estava virada de costas. Eu estava em pé, atrás dela, segurando a porcaria do pote de manteiga. Mas não tinha outro jeito.

−Sabe, Jane... você foi praticamente a minha primeira amiga. Por muito tempo. Mas, eu acho que agora− ela se virou, e eu vi dois olhos marejados− eu vou estar por mim mesma, né? Quero dizer, mesmo que dê tudo certo, eles vão te levar para o caminho deles. E quando você estiver morando na Platina, talvez nem lembre mais de mim.

−Keila, não...

−Tá tudo bem. Eu estou indo embora... boa sorte− ela abriu a porta− desculpe por te incomodar− e saiu.

Não existia nada que eu pudesse fazer, a não ser cair de joelhos no chão.

Minha melhor amiga. Minha única esperança. Tinha ido embora por aquela porta.

Lembrei de como tinham me deixado levar a xícara de chá na saída, como se tivessem medo que eu transmitisse alguma coisa contagiosa. Ainda bem que ela não tinha visto a xícara, guardada no armarinho de cima. Seria verdade, que recrutas são só objetos?

Bem, o programa era minha melhor aposta, já que eu era uma adolescente sozinha. E no momento, eu tinha acabado de ficar mais sozinha ainda.

Senti lágrimas. Não as impedi.