Bacchikoi

2º Capítulo — Bolinho


Dentro do ambiente onde o chão era revestido pela madeira escura, podia se ver o vapor escapando por detrás da cortina que separava o balcão da cozinha. Ressoava pela loja o som do arroz sendo cozido dentro das panelas, sendo amassado e moldado pelos artesões enquanto uma senhora tratava de finalizar as dezenas de doces que iam sendo feitos.

O Som de Edo (1) ressoou quando os clientes entraram na loja, chamando assim a atenção da mulher que, apesar da idade, insistia em trabalhar nos fundos. Terminou de arrumar o último dos bolinhos e caminhou, vagarosamente, para o balcão, atravessou o tecido que dividia os ambientes e se preparou para atender os rapazes com um sorriso gentil no rosto, que condizia exatamente sua personalidade amigável.

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Mesmo com os seus olhos exprimidos entre as bochechas ela pôde reconhecer Ren, que vinha ligeiramente à frente do garoto muito familiar para ela, mas mesmo que tentasse, a proprietária ainda não conseguia lembrar o seu nome. Sabia que, em um momento ou outro, se de fato o conhecesse, lembraria de quem se tratava. Cumprimentou os dois com uma pequena e quase imperceptível saudação.

— Senhora Sasaki, você está bem? — Reverenciou-a depois de se aproximar do mostruário.

— Ren, eu estou bem sim. — Pôs a mecha grisalha detrás da orelha. — Obrigada por perguntar. — Fitou-o silenciosamente, enquanto o esperava fazer o pedido.

Ele cruzou os braços e, assim como todas as vezes em que visitava a loja, o rapaz ficou indeciso com o que pedir. A mulher aguardava pacientemente enquanto colocava uma caixa vazia sobre a bancada. Dentre todos aqueles doces, desde os que eram simples e recheados até os que eram cobertos de matcha (2), ainda não havia achado um preferido e, como já era de praxe, acabaria comprando daqueles que eram feitos com morango.

Ao notar a dúvida do amigo, Seiichi, que havia permanecido quieto até agora, aproximou-se do balcão também, fazendo com que a senhora tornasse a prestar atenção nele. Reparou em todos os doces que estavam expostos na vitrine, e, sem pestanejar uma só vez, escolheu o tradicional doce da primavera.

— Ohagi (3)! — Ren e a Senhora Sasaki se surpreenderam, deixaram com que as sobrancelhas salientassem e se curvassem em seus rostos. — Digo, por favor.

Ela soltou um riso baixo enquanto curvava os lábios num sorriso, comprimindo os olhos mais outra vez entre as bochechas. Mesmo de cabelos grisalhos, as rugas em seu rosto ainda não eram muito alarmantes, ainda que fosse notável sua idade já avançada e seu modo antiquado de se vestir.

— Seiichi? — indagou a mulher. Lembrou-se de que só havia uma pessoa que chamava este doce por este nome em todas as estações, surpreendeu-se por vê-lo novamente. — Você voltou de Tokyo? — O semblante alegre da senhora deu lugar a um olhar acolhedor, suas sobrancelhas se arquearam por um só instante, mas desistiu da ideia de fazer-lhe uma pergunta.

O garoto sorriu enquanto olhava para Sasaki, não era comum ver ela deste jeito, não se recordava de notar essa feição em seu rosto em nenhum momento. Pôde compreender em um só instante o que lhe afligia, aproximou-se um pouco mais da mulher.

— Não se preocupe, ela já está bem. — Esfregou a nuca com uma das mãos. — Talvez a Obāchan (4) possa vir te ver em breve. — Quase que simultaneamente a vivacidade tomou a mulher, a tristeza se esvaiu de seu rosto. Ela pegou os bolinhos um a um, enquanto punha eles em cada um dos espaços vazios da caixa. — Ela sabe que você está bastante ocupada com a loja, principalmente perto da primavera. Não precisa se preocupar em ir vê-la, ela já está bem melhor.

A senhora terminou de colocar os doces em seus devidos lugares, olhou para ambos os garotos e notou que Ren procurava algo em sua bolsa, deduziu que se tratava do dinheiro para pagar pelos doces.

— Ren, hoje isso fica como um presente — disse Sasaki entregando a caixa para o garoto, mostrando o sorriso que surgiu dentre as maçãs do rosto — Afinal, mesmo quando ele foi embora você não deixou de vir aqui nem uma semana sequer, e a volta do Seiichi merece uma comemoração — insistiu.

Parou de mexer na sua bolsa, não conseguiria negar o presente da mulher, ela insistiria até que ele aceitasse, a única coisa que restava a fazer era acatar o que lhe foi dado, Ren agradeceu a senhora e logo pegou a caixa enquanto suas bochechas assumiam um tom rosado, mas nada que fosse indiscreto o suficiente para que comentassem.

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Pouco antes de saírem da loja eles se curvaram em uma reverência enquanto a senhora sorridente acenava detrás do balcão, despediram-se em palavras baixas e ligeiras e caminharam até a porta, sem deixar de olhar a mulher que não havia perdido o ar alegre desde que os rapazes entraram na loja, ainda que por cima dos ombros.

Seiichi, que estava um passo à frente do amigo, abriu o shōji5 que separava o exterior e o interior da loja. Passos ligeiros soaram, sobre o assoalho de madeira, fazendo com que a atenção de todos fosse digirida ao barulho que surgiu, e eles pararam de andar.

Foi aí que pela mesma cortina pela qual Sasaki havia passado, surgiu uma garota de cabelos cumpridos e escuros. Correu em direção aos rapazes que iam saindo do estabelecimento enquanto abria os braços e se aproximava, seu longo cabelo se esvoaçava conforme se aproximava dos dois.

Logo ela desviou Ren, que estava em seu caminho, e só parou quando abraçou o rapaz que já estava quase do lado de fora. Este não conseguiu esboçar reação alguma quando os braços da garota apertaram seu tórax, seu rosto enrusbeceu-se, e assim permaneceram por um curto espaço de tempo, até ela tomar consciência do que havia feito e, assim como aconteceu com Seiichi, seu rosto foi tomado pela cor vermelha.

Os braços dela desafroxaram o abraço que se desformou quando eles correram e se desvencilharam de vez do corpo do rapaz. Ambos se encararam durante alguns instantes, a Senhora Sasaki já havia voltado para dentro da cozinha, não era novidade nem para a mulher a cordialidade exagerada da neta.

— Me desculpe. — Escondeu o rosto corado detrás das mãos enquanto desviou o olhar do rosto do rapaz. — Eu... é que, o Ren... — Puxou ar com o nariz e espirou lentamente, enquanto tentava se acalmar. — É que, eu não sabia que você tinha voltado. — De fato o garoto estranhou, afinal, mesmo ele antes sendo um cliente assíduo da loja, nunca havia conversado com a garota.

— Você deve estar se enganando. — Tentou contornar a situação.

— Não não. Ele sempre vinha aqui, desde que era só um garotinho do fundamental, junto com um tal de Seiichi. — A garota indicou Ren que estava logo atrás deles observando a conversa. — Todas as semanas ele vem aqui desde que esse garoto deixou de acompanhar ele, e coincidentemente você, um rapaz com a mesma idade dele, e com uma pinta sob o olho direito, vem aqui, junto com ele. — Apontou para a mancha no rosto dele. — Seria difícil de acreditar que aquele garoto não é você.

— Sim sim, eu sou o Seiichi — disse sem titubear.

Somente quando se passaram alguns instantes, o suficiente para a vermelhidão em seu rosto se esvair, ele pôde olhar no rosto da garota, que até então não havia dito seu nome. Não havia notado o quão alta ela era, teve de inclinar levemente a cabeça para cima para que pudesse ver seus olhos.

— Ah! Sim! Eu me chamo Hoshino. — Levou o dedo indicador para a frente dos lábios, como se pedisse silêncio.

— Hoshino...? — repetiu o rapaz.

— Watari, Hoshino Watari. — Ren pronunciou-se pela primeira vez desde que a garota chegou. — Você deveria se lembrar, ela sempre se escondia detrás da Senhora Sasaki quando vínhamos, ao menos quando ela ainda conseguia se esconder ali. — Tornou a caminhar para fora da loja.

Caminhou entre os dois e saiu da loja, logo Seiichi tratou de segui-lo, depois de um breve aceno à garota, que retribuiu com uma curta reverência seguida de um sorriso tão breve quanto. A garota observou ambos os rapazes seguirem pela calçada estreita que ladeava o rio sinuoso, ainda estava inquieta, tanto pelo encontro inesperado que teve, quanto pela sensação de que acabara de esquecer de algo. Chacoalhou a cabeça para os lados, com o intuito de deixar isso quieto, afinal, hora ou outra teria que se lembrar do que era.

O sol havia terminado de se pôr quando chegaram em frente à casa da família Ogawa, o frio e a escuridão noturna iam tragando, aos poucos, o ambiente. Assim como todas as casas daquela vizinhança, a casa onde Ren vivia não possuía aquele ar tradicional, sem paredes de papel ou pavilhões espalhados ao redor da residência, entretanto a casa não podia ser tão espaçosa quanto a do amigo, mas certamente era tão confortável quanto.

Ao passar pela porta Ren tateou a parede em busca do interruptor, as luzes se acenderam quando tocou-o com os dedos. Deixou os calçados rente ao pequeno degrau que separava o genkan (5) do restante da casa, o que foi repetido pelo garoto que o acompanhava.

Não demoraria muito para que o calor da residência tomasse o lugar do frio da rua, instalava-se aos poucos desde que chegaram ali. Seguiram pelo curto corredor, que durava até pouco depois de duas portas, uma à direita e outra à esquerda, que eram posicionadas exatamente uma de frente à outra.

Ao deparar-se com a sala Seiichi notou que a casa não estava muito diferente de antes, não haviam muitos móveis por ali, sempre achou que aquele ambiente se parecia com aquelas revistas sobre minimalismo. Foi direto até o kotatsu (6) que estava no centro do cômodo, entre o sofá e a televisão presa à parede, e se sentou sobre o tapete, enfiando as pernas sob o cobertor grosso que envolvia a mesa, onde pôde se aconchegar, pois o ar quente não se dissipava dali.

Ren pôs a caixa de doces sobre o tampo amadeirado, finalmente pôde ter suas mãos livres outra vez. Antes de abri-la lembrou-se de que deveriam comer os doces acompanhados com chá, de acordo com as tradições.

— Espere um pouco — disse enquanto se levantava — Trarei chá, mas não temos mais matcha (2).

Rapidamente andou até o corredor, entrou na porta à direita, que levava até a cozinha. Não demorou muito para que surgisse com uma bandeja, onde um delicado bule, acompanhado de um par de xícaras que faziam parte do mesmo jogo de chá, repousavam. Deixou as peças sobre a superfície da mesa, ao lado da caixa onde os bolinhos esperavam, e serviu a bebida levemente esverdeada.

O amigo observava a neve caindo lentamente, acumulando-se com o tapete branco que foi formado pela manhã do lado de fora. Não era muito comum que nevasse em abril. O som da cerâmica sendo arrastada sobre a mesa chamou-lhe a atenção, desviou o olhar para a xícara que vinha até perto de si, sendo empurrada pelo amigo. Sem mais delongas, a tampa da caixa foi retirada, revelando os doces delicados, moldados como diversas flores de primavera, intercaladas entre os bolinhos cobertos de anko (7) e gergelim.

Os rapazes comeram-nos, entre mordidas e goles no chá amargo que contrastava com o sabor adocicado do botamochi (8), enquanto assistiam um programa genérico na televisão. Assim como naquele dia frio em que se separaram, o tempo novamente aparentou ter parado, enquanto partilhavam a refeição preferida de Seiichi, que com o tempo Ren aprendeu a gostar, imersos no calor de dentro do kotatsu6 na presença um do outro.

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O clima agradável e cômodo durou por muitos minutos, só destoou quando tateavam a caixa em busca doutro doce, e suas mãos geladas se encontraram. Não havia restado vestígio algum dos pequenos bolos em quaisquer dos espaços na embalagem, o que roubou um suspiro de ambos os rapazes.

— Outro dia nós podemos visitar a Senhora Sasaki outra vez. — Recolheu as xícaras e as pôs sobre a bandeja, rente ao bule já frio.

Enquanto ele ia à cozinha o rapaz que ali ficou abriu sua bolsa, que tinha deixado ao lado da mesa quando chegou, e tirou de lá uma folha vermelha e quadrada, com um belo padrão pintado em si. Pôde dobrar um delicado pássaro antes que o amigo voltasse, hesitou antes de deixar o calor que aquecia seu corpo, mas convenceu-se de que tinha que manter seu costume e saiu de debaixo do grosso cobertor

Caminhou até o outro lado da sala, onde o butsudan (9) estava à mostra, centralizado na parede. Sentou-se em sua frente e tocou o sino que estava sobre o móvel duas vezes seguidas, fazendo com que o som metálico se espalhasse pela sala, pôs a dobradura ao lado do retrato de um menino. Juntou as mãos e fez uma breve oração, e neste instante Ren sairia pela passagem que dava à sala, sairia, pois, ao ver o amigo ali, optou por não o interromper, afinal de contas, era um momento em que a quietude era mais do que necessária.

Bateu palmas uma vez só, enquanto reverenciava o móvel, e antes de se levantar fez o sino ressoar outras duas vezes. Retornou para debaixo das cobertas, onde reencontrou o calor acolhedor, e só quando Seiichi se acomodou ali o rapaz adentrou no cômodo. Nenhum dos dois comentou algo sobre o que havia ocorrido, era assim desde antes deles terem se desencontrado, e, se dependesse de ambos, continuaria sendo para todo o resto da eternidade.

—'cê ainda tem ele? — Indicou o console sobre a estante, que transmitia para ele lembranças afáveis das vezes que tinha ido até a casa de Ren.

— Sim, — afirmou enquanto se sentava — mas eu não o ligo desde... — Percorreu o olhar pela sala em meio a pausa, pressionou seus lábios quando viu o altar. — Desde o fim do fundamental — completou.

Notou o incômodo que foi causado pela pergunta, pigarreou e procurou uma maneira de diminuir a tensão que surgiu, pouco-a-pouco, entre os dois rapazes. O ar parecia mais denso, agravado pela quietude que se instalou e perdurara até que algum som se propagasse, o que não ocorria.

Seiichi levou a mão até o bolso, tirou de lá o celular e checou o horário que aparecia na tela, impressionou-se como o tempo havia passado rápido. "Tenho de ir", presumiu o garoto, mas mesmo que a sensação de estar ali não estivesse tão acolhedora quanto alguns minutos atrás, tinha algo para dizer ao amigo. Pôs o aparelho de volta no bolso da calça, fitou o rosto de Ren, que estava distraído com a cena que passava na televisão. Sem que ambos percebessem, entreolhavam-se hora ou outra, mas hesitavam em dizer qualquer coisa um para o outro.

Entretanto, tanto para um, quanto para outro, somente o fato de poderem partilhar outra vez um momento como aqueles era satisfatório. Involuntariamente pregou os olhos, o cansaço, somado à noite mal dormida, o fez adormecer.