“Fazemos um grupo muito estranho. Um grupo de aberrações. Mas não há circo que nos aceite.”


– Parece confusa Lyvlin. – notou Raoul. A garota o encarou em silêncio. De repente estava de volta ao beco desolado de Perth. Casimir surgindo da escuridão como se fosse abraçado por ela ou fosse um de seus componentes. Os feixes de pura energia cortando a ar, mortalmente rápidos, tão poderosos e obedecendo a cada gesto do homem, por mais sutil que fosse. A harmonia silenciosa entre ele e a muralha que conjurara, capaz de proteger ou matar de acordo com a sua vontade. Sua mãe fez de Casimir o que é. Não sei ao certo se fez um bom trabalho, mãe. Com a parte de magia e raios luminosos certamente, mas um mentor é muito mais do que isso, não é?

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– Estou tentando encaixar as peças. Você diz que Layil foi mentora de Casimir, mas se ela me protegia desde o início... Tenho dezesseis anos, Casimir não deve ter mais do que vinte, não é? - um pequeno sorriso surgiu no rosto de Raoul e ele voltou a esquentar a ponta da agulha – Deve ter levado muito tempo para Layil conseguir passar para Casimir todo seu conhecimento e deixá-lo no nível que está agora. Sei muito pouco sobre magia, mas o suficiente para perceber que a aprendizagem levaria anos e mais anos. E ensinar a crianças de menos de quatro anos parede exaustivo demais, deixando completamente de lado a pouca eficiência que teria.

– Está certa. – respondeu Raoul, erguendo a sua mão que segurava o espelho e a posicionando no ângulo certo. Enfiou a linha pela cabeça da agulha na primeira tentativa e voltou a costurar, permanecendo em silêncio por alguns momentos. Lyvlin esperou com paciência. Aprendera que Raoul tecia cada palavra em seus pensamentos antes de dizê-las e que na maioria das vezes bastava aguardar até que estivesse satisfeito com elas. – Cheguei a Ciandail quando tinha nove anos, a capital era completamente diferente de tudo que já vira na vida. Mas no castelo as coisas eram ainda mais estranhas – sua expressão ficou séria e pela primeira vez parecia relutar com o trabalho – havia visto magia apenas uma vez e em circunstâncias que me ensinaram que deveria ser temida e exaustivamente aprendida para ser controlada. Havia uma grande comoção em um dos pátios e fui atraído pelo barulho de uma multidão que parecia arfar, segurar a respiração e gritar como se cada uma das pessoas fosse parte de um único ser. Era a sua mãe Lyvlin. Sua mãe e na outra extremidade do pátio, coberto de suor, poeira e pequenos cortes Casimir tentava se manter de pé. Mais tarde saberia que fora um de seus inúmeros treinamentos, mas na ocasião achava que a qualquer momento a mulher destruiria o rapaz.

– O rapaz?

– Sim, o rapaz. – concordou, parecendo satisfeito com a confusão que se apoderava do rosto da garota – O rapaz que passou por mim mancando e teimosamente de cabeça erguida não parecia muito mais novo do que o Casimir que você viu em Perth.

Lyvlin ergueu os olhos do corte parcialmente costurado e encarou Raoul.

– Você não pode estar dizendo que ele pertence a uma das antigas raças. – devagar Lyvlin era novamente dominada pela sensação de que estava se envolvendo em algo grande demais. Deveria levantar-se e sair por aquela porta. Pegar o cavalo e galopar para longe. Muito longe. Onde magia, mães mentoras e extremamente poderosas e rumores sobre a sobrevivência de integrantes das casas antigas eram apenas isso. Rumores. Em todos os lugares as pessoas concordavam que fazia milênios que os humanos primordiais haviam deixado de andar sobre a terra e para Lyvlin parecia a velha estratégia de colocar coisas impossíveis enterradas profundamente o suficiente no tempo para que soassem mais verídicas. Se dissessem que fora há um século ninguém acreditaria, mas acrescente alguns milênios e tudo parece possível. Se no sul as antigas lendas estavam despertando não tinha certeza de que era o lugar onde queria estar.

– Pertencente às raças antigas? - perguntou Raoul, incrédulo - Não, não. Existem formas de se retardar o envelhecimento, algumas comprovadas, outras obscuras. Todas elas têm em comum o fato de serem muito perigosas e exigirem poder em uma escala que é impossível atingir pela magia convencional. Fazem parte das magias proibidas e quando uma pessoa tocada por elas aparece na capital é imediatamente tomada para um interrogatório. Mas os estudiosos e grandes mestres foram incapazes de determinar exatamente o que ele é. Não sei muito sobre o que aconteceu com Casimir no período anterior a minha chegada, apenas que Layil o trouxe pela mão para o grande salão esmeralda pouco antes de terminar o seu período de aprendizado para se tornar mestre e disse que o tomaria como aprendiz. Dissera que o encontrara vagando pela cidade, que sua memória parecia ter sido apagada de alguma forma e que jamais estivera na presença de alguém com tanto potencial de magia, que deveria se tratar de um linair. Isso deixou os velhos conselheiros tão perturbados que a princípio não sabiam o que fazer com ele, cogitaram que era muito perigoso e que sua falta de memória poderia indicar um uso excessivo de poder. Todos concordavam que o rapaz deveria ser posto sob observação durante algumas semanas e mantido longe de qualquer contato humano que poderia afetá-lo e fazê-lo perder o controle. Layil deixou o salão furiosa e na primeira madrugada o tirou de sua cela e o acomodou em seus aposentos. Nenhum conselheiro parecia ter coragem para enfrentá-la e ao rei ela anunciou que tomaria o garoto como aprendiz e que se responsabilizaria por qualquer dano que ele causasse. Ela o ensinou a como moldar a magia, a transformar a sua mente em uma ferramenta mortal e a viver. Quando começamos o nosso treinamento para a guarda real ela ficava muito tempo fora, ocupada em assuntos que não revelou a ninguém e com a promessa de descobrir a origem de seu aprendiz. E então simplesmente desapareceu e jamais alguém voltou a vê-la, ainda que existissem aqueles que insistiam que ela ainda vivia e deles Casimir talvez fosse o mais barulhento.

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– Não apenas porque ela o apoiava – concluiu Lyvlin, entendendo – mas também porque perdeu a oportunidade de descobrir a sua origem.

Raul concordou.

– Mesmo depois de todos estes anos ele não parece estar próximo de uma explicação, os deveres na guarda tomam muito do seu tempo e não pode se ausentar por longos períodos sem ter que reportar exatamente o que estava fazendo. E com as discussões entre os três reinos ficando mais intensas... – um pouco mais inclinado Lyvlin, obrigado – Digamos que a cada dia que passa parece estar mais longe do seu objetivo.

– Não imagino que ele queira me contar sobre Layil quando nos reencontramos. – Lyvlin mudou a sua posição, esperava que Raoul não demorasse mais muito tempo. Seu braço começava a ficar dormente. A ideia de que Casimir de todas as pessoas que conhecia era o que talvez mais sabia sobre a sua mãe a deixava frustrada e com um pouco de inveja. Talvez se a tivesse criado e não se limitado a protegê-la a milhas de distâncias tinha sido ela a duelar com ela nos campos que cercavam Evion e não Ezra. Com o que Raoul contara sobre ela a imagem que a garota montara sobre Layil ia lentamente se quebrando, transformando-se numa de uma mulher poderosa, cabeça-dura e feroz. Características que não esperava ouvir sobre a sua mãe, que a tornavam muito pequena e simplória em comparação, mas que fazia surgir também uma nova pontada de orgulho.

– Provavelmente não, mas não deve levar muito a sério. É a forma como trata a maioria das pessoas. Sua mãe era uma mulher formidável Lyvlin. Seu pai também. Ambos foram cidadãos notáveis e com a chegada a Beltring poderá conversar com muitas pessoas que os conheceram bem. – puxou a linha uma última vez e a cortou, dando um nó – E há alguém que anseia especialmente pela sua chegada e não, não contarei. Prometi que seria uma surpresa. Veja, terminei.

Lyvlin segurou a língua e olhou para o tórax de Raoul. Havia costurado melhor do que a garota podia ter imaginado. Os pontos estavam firmes e precisos, o que a fez lembrar que os treinamentos para a guarda real deveriam incluir lições de cura e como lidar com os mais diversos ferimentos. Raoul pediu que lhe trouxesse um pouco de unguento de ervas e quando a garota estava se aproximando de sua trouxa chamou a sua atenção.

– Não encontrará unguento fresco ai, Lyvlin. Terá que descer e falar com o estalajadeiro.

– Terei? - quis saber. A ideia de descer e mergulhar novamente em todo o barulho não a animava. Estava mais cansada do que gostaria de admitir – Poderia chamar Sinnie e pedir que ela o tratasse. – um sorriso tocou os lábios cansados. Gostara muito da ideia – Aposto que ela não se recusará.

– Por favor.

Lyvlin deu de ombros e apagou parte das velas do quarto. A lareira crepitava aconchegante e precisou de toda sua força para não expulsar Raoul do quarto e tomá-lo para si. Quando estava na porta virou-se para dizer que agora lhe salvara a vida duas vezes em um só dia, mas o homem já fechara os olhos.

Teve certos problemas para encontrar o caminho para a escadaria, o longo corredor parecia idêntico de ambos os lados. Quando alcançou as escadas eram as para o último andar da construção e teve que voltar todo o caminho. Nunca se perdera na floresta de Evion ou nos grandes mercados de Perth, mas espaços fechados sempre a deixavam confusa. Havia luz por debaixo das portas de alguns quartos e podia-se ouvir diferentes vozes. Em um dos quartos parecia haver algum concurso de brincadeiras porque risadas irrompiam do cômodo e no seguinte um casal parecia estar prestes e se matar ou a dormir juntos, não saberia dizer. Sabia que estava na direção certa quando os ruídos da grande sala tornavam-se maiores. O bardo persistia em sua cantoria, percebeu, e agora era reforçado pelo som de flautas e rabecas. Alcançou a escadaria e respirou fundo, fazendo o plano de puxar o primeiro serviçal que encontrasse para o lado – exceto Sinnie – e perguntar sobre o unguento. O lance de escadas era interrompido por uma área plana onde vidraças mostravam o que acontecia do lado de fora. Ou mostrariam caso fosse dia. Lyvlin aproximou-se do vidro e percebeu que pequenos cristais de gelo se acumulavam na superfície oposta. Podia ver muito pouco, mas voltara a nevar. Gordos flocos de neve voavam de encontro ao vidro e ficavam presos, como se fosse uma armadilha. A garota ergueu a mão e bateu no vidro, os flocos de neve formavam um padrão muito bonito, quase podia tocá-los. Quando tocou a superfície plana com as unhas para arranhar os flocos um por um grandes olhos dourados a encararam da escuridão. O sobressalto quase causou a sua queda do lance de escadas que faltava.

“Saudações, criança.”

– Laoviah. – conseguiu dizer do chão. A maldita espada está no quarto. Foi a primeira coisa que pensou.

“Não verbalize a sua fala, apenas desenhe em sua mente e eu entenderei. Não queremos que pareça mais tola do que é.”

Lyvlin levantou-se e se aproximou novamente da janela. A loba não parecia estar sentada na neve como acontecera em seu primeiro encontro, no lugar disso os olhos dourados pareciam pairar entre os flocos de neve.

“Não está realmente aqui, está?”

“Não. Mas não deixe que isto lhe traga alívio. Minha senhora está muito decepcionada com você Lyvlin. Partiu seu coração.”

“Desculpe por isso” e quase o pensou com sinceridade. Quando a presença de Laoviah mudara durante o primeiro encontro Lyvlin gostara dela. Se essa era a senhora da qual a loba tanto falava, talvez não era tão mal como a sua serva.

“Venho observando-a nos últimos dias, o que pretende fazer indo para o sul? Está cometendo um terrível erro.”

“Vindo de você, me perdoe se não me sinto mal. O que você quer que eu faça, aceite sua proposta, monte em seu dorso e deixá-la me levar diante de algum ser divino?”

Quase podia ouvir o seu rosnado e mesmo sabendo que não estava exatamente ali, os olhos a fulminaram de uma forma que a fez se arrepender das palavras.

“Ninguém monta em meu dorso, sua imbecil! – permaneceu algum tempo em silêncio, o que fez Lyvlin pensar que talvez não se materializasse ao seu lado e a abocanhasse de uma só vez – Palavras não são o meu lado forte, sou uma general, nascida para os campos de batalha e não para servir de ama de leite para linairs estúpidos. Mas muito bem. Minha senhora ordena e eu tento cumprir da melhor forma que consigo. Você está me testando criança e se continuar tão leviana se verá morta muito antes do que espera. Vejo que Isone a deixou, mas isto era de se esperar. Covarde, mil vezes covarde. Se tivesse sido eu a responsável pela sua criação, mas não, a comeria em uma semana.”

“Bondade sua. Estou indo para o sul para receber o meu treinamento de magia, Laoviah, coisa que a sua senhora e Isone não se preocuparam em resolver antes de tudo começar a desmoronar ao meu redor. Os terríveis homens que vem do sul? Salvaram a minha vida e foram os primeiros a falarem a verdade para mim, coisa que nenhum de vocês achou necessário, não é? Na primeira oportunidade Gilbert me deixou como se fosse um fardo pesado demais para se carregar. Não sou um fardo, não sou uma arma, sou uma garota. E eu mereço respeito.”

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Não notara que o assunto a deixara tão frustrada até começar a falar. Laoviah permaneceu em silêncio e os olhos dourados se fecharam. Lyvlin ficou diante da janela, observando os flocos cair. Atrás de si ouvia o barulho do aposento cheio como se nada tivesse acontecido. Um homem pedia a plenos pulmões mais uma cerveja e os músicos começaram a tocar “o coelho manco”, Lyvlin viu o seu reflexo no vidro e suspirou, afastando-se. Quando o primeiro degrau rangeu sobre seu peso Laoviah voltou.

“Espere.” Pediu e pela primeira vez não parecia obrigada a falar. “Entenda, criança, o seu nascimento foi previsto há muito, muito tempo. O seu papel nos eventos que já começaram será decisivo, tanto para os humanos quanto para nós. Os dois lados precisarão de você se quiserem sair vitoriosos. Mas não precisa o fardo do que já foi traçado sobre você sobre as suas costas, acredite, não precisa. E se souber o futuro, não faria tudo para impedi-lo?”

“Não sei, qual o meu futuro?”

“Ah, como faria. Mas ele precisa ser cumprido, mesmo com as perdas e a agonia. Espero que o dia da revelação esteja muito longe e quando ele chegar você vai ouvi-la, vai gritar e chorar, espernear e xingar. E o encarará de frente, sabemos que sim.”

“Isso deveria me motivar? Porque não está funcionando.”

“Falei com a minha senhora e concordamos que o mais importante é você deixar o norte o mais rápido possível, com Isone perdido talvez a sua melhor chance seja com os seus companheiros. Então vá, vá para o sul onde estará segura, ao menos por algum tempo. Aprenda a dominar o seu dom e não tenha medo da magia que carrega dentro de si, porque ela será essencial. Apenas tente não confiar demais porque não poderemos protegê-la dos humanos.”

“Mas podem dar conta de Tengil e seu senhor?”

“Meu corpo está no encalço de Tengil e sem a minha ajuda ele já os teria encontrado, acredite. Mas o exilado tem muitos servos, alguns menos aparentes que os demais. Tenha cuidado e esteja pronta, nos encontraremos novamente quando o tempo for certo. E cuide bem da carga extra.”

Quando estava prestes a perguntar a que carga se referia os olhos desapareceram. Ótimo, por que ser claro com Lyvlin de qualquer forma? Pensou enquanto descia os degraus se esforçando ao máximo para esquecer a parte sobre seu futuro nada promissor. Ao menos Laoviah estaria cuidando dos servos de Vaus e com sorte chegariam a Ciandail sem muitos problemas.

– Vocês tem alguma espécie de unguento de ervas frescas em estoque? - perguntou ao garoto que ajudava a manter os hóspedes bem atendidos (o que se resumia a canecas cheias). Era o mesmo que a ajudara com Raoul mais cedo. – Preciso um pouco para um amigo, ele pagará o que usar, obviamente.

A parte sobre pagar o que usar agradou ao garoto e ele disparou entre as mesas, desaparecendo no que deveria ser a dispensa. Lyvlin esperou paciente, ouvindo um pouco da canção que os músicos tocavam. Era uma das intermináveis estrofes da Grande União, que narra como o grande herói Unificador fez as pazes com os homens primordiais e uniu os três reinos para dar origem a Vassand, ficando com a filha mais nova do rei adversário como prêmio. Por mais que os bardos tivessem se esforçando em transformar a união em uma mistura de paixão à primeira vista e amor eterno Lyvlin desconfiava que a bela Melara servira apenas como vaca da paz. O bardo, por sua vez, parecia estar à beira das lágrimas enquanto cantava sobre as qualidades da jovem senhora.

“Melara, Melara, quão bela e espirituosa

Sua pele era macia como as pétalas de uma rosa

Os olhos brilhantes como as constelações

De sua boca surgiam as mais belas canções”

Lyvlin revirou os olhos. De todas as estrofes esta era a que menos gostava. As rimas pobres não faziam justiça a qualquer mulher, muito menos a primeira rainha de Vassand. E se o Unificador fora mesmo um guerreiro e estrategista tão formidável parecia errado se encantar por uma mulher que podia ser substituída por um rouxinol engaiolado a qualquer momento. Queixara-se com Ezra sobre isto quando ouviu a canção pela primeira vez de um andarilho que escolhera Evion como ponto de parada. Demorou tanto tempo para terminar as estrofes que no final as pessoas já estavam sentadas ao seu redor e algumas tinham caído no sono.

– Está apenas com inveja. – dissera Ezra, ainda bocejando – Queria ser bonita e graciosa como a bela Melara.

– Nunca invejaria alguém que tem como principal qualidade ser bonita e graciosa, seu cabeçudo. – devolvera a garota, lhe dando um cascudo para enfatizar o “cabeçudo” – Invejaria alguém que viaja por todos os cantos e não está preso a nada, alguém forte e confiante que não deve nada a ninguém.

– Bem, as pessoas podem ser bonitas e fortes ou graciosas e não deverem nada a ninguém. Ou todas as coisas juntas. – disse o amigo, levantando-se e tirando a sujeira de suas vestes – Venha, ainda precisamos de dois ou três coelhos para a janta.

Por mais que odiaria admitir para Ezra se ele pudesse ouvi-la, ele estava certo. Raoul era gracioso e forte, já quanto a Casimir a garota achava, antes de Raoul contar-lhe sobre os reportes, que não devia nada a ninguém e sua aparência também não era das piores. Isso tudo deixando de fora o fato de ser o poder em forma de pessoa. Afastou aqueles pensamentos inoportunos e sorriu ao garoto quando este veio em sua direção com um pequeno pote de barro.

– Ervas escarlates e flor do luar. – anunciou satisfeito – Deve tratar bem irritações de qualquer tipo de ferida.

– Está me dizendo que aliviará a dor de um corte recém-costurado, por exemplo?

– Muito, senhora. – respondeu – Deixei avisado com o estalajadeiro, ele cobrará pelo unguento quando partirem.

– Pedirei para deixar um pouco extra pela sua rapidez. – disse Lyvlin e o garoto sorriu de orelha a orelha. A garota se sentira mal ao assustá-lo quando pediu sua ajuda pela primeira vez, ainda coberta de sangue. Agora o garoto nem parecia reconhecê-la, o que era bom.

Passou pelos músicos que agora cantavam sobre a Batalha na Planície Chorosa e mesmo sendo uma de suas canções favoritas arrastou-se pelas escadas, ignorando o olhar de Sinnie que perfurava as suas costas. Não conseguia entender ao certo o motivo de sua raiva e estava cansada demais para perguntar.

Quando entrou no quarto de Raoul ele ainda cochilava. Pisou com cuidado, tentando evitar que a madeira rangesse. Mas assim que chegou ao lado da sua cama e pousou o unguento na mesa de cabeceira, viu na penumbra que seus olhos verdes estavam bem abertos.

– Ficaremos aqui amanhã. – disse, como se ela estivera ali o tempo todo – Para que possa me recuperar e ainda precisaremos de mais um cavalo e novos suprimentos, ainda que sejam somente dois dias até alcançarmos o porto de Maris. Também vamos esperar por dois integrantes do meu grupo que devem nos acompanhar e assegurar que o restante da viagem seja menos mortal. Se tudo deu certo eles devem se juntar a nós amanhã de manhã.

Lyvlin quis perguntar onde aquelas duas pessoas estavam quando haviam sido atacados mais cedo, mas mordeu a língua.

– Eles são... Um pouco diferentes, mas totalmente confiáveis. O mais cedo que você entrar em contato com pessoas como eles, melhor, assim não será um choque muito grande quando alcançarmos Beltring. Ainda assim peço para que não lhes conte sobre os seus pequenos incidentes com magia. Deixe para quando alcançarmos a capital. Pode fazer o que achar melhor amanhã, mas permaneça aqui dentro e não saia sem a presença dos dois.

– E como saberei quem são?

– Adisa consegue ser muito chamativo, ele se destacará do restante dos hóspedes, acredite. E Desmera provavelmente a encontrará antes que você a veja.

Lyvlin anuiu e aproximou o pote o suficiente para que Raoul pudesse usar o unguento sem se mexer muito.

– Vejamos – disse quando enfiou a mão no pote – Frio, consistência mediana, odor fresco, isso é bom. Flor do luar e ervas escarlates? Não temos ervas escarlates no sul, aproveitarei para pedir mais algumas amanhã.

Trocaram desejos de boa noite e a garota se retirou para o seu quarto. Assim que abriu a porta o frio do aposento a abraçou e quis dar meia volta. No lugar disso enfiou-se debaixo das cobertas e ficou por algum tempo ouvindo os sons que vinham dos quartos ao lado e do aposento de baixo. O barulho não a incomodava, pelo contrário, a sensação de ter muitas pessoas ao seu redor lhe dava uma estranha sensação de segurança. A conversa com Laoviah espreitou a sua mente por pouco tempo. Pretendia relembrar cada uma de suas palavras e tecer conexões entre o que tinha acontecido e o que ela falara que iria acontecer, mas estava tão cansada... Assim que fechou os olhos dormiu.

Acordou com gritos vindos do andar de baixo. Sua primeira reação foi agarrar Arcturus que deixara repousando dentro de seu alcance ao lado da cama. Da janela do quarto podia ver as primeiras luzes da manhã espiando através das nuvens cinzentas. Saltou das cobertas e checou a porta, o corredor parecia deserto. Ou todas as pessoas haviam fugido, ou ninguém parecia se importar o suficiente para checar a origem da discussão. Olhou de relance para a porta da frente, ponderando se deveria acordar Raoul. Decidiu que se fosse acordá-lo depois de um dia difícil, que fosse por causa de um perigo real e aproveitou para se esgueirar pelo corredor, aproximando-se das escadarias. A discussão parecia ficar mais acalorada e Lyvlin reconheceu uma das vozes como sendo a do estalajadeiro. Talvez os bandidos nos seguiram até aqui. Ponderou, descendo os degraus e apertando os dedos ao redor da espada. Precisava apenas de uma confirmação e correria de volta para tirar Raoul dali. Heroísmos não ajudavam muito, especialmente quando a parte capaz de lutar com eficiência estava machucada. Quando alcançou a plataforma que dividia os dois lances de escada agachou-se, tentando espiar através dos espaços no corrimão. O estalajadeiro estava lívido e discutia com um homem que virava as costas para Lyvlin e respondia aos gritos do senhor com uma voz calma e controlada. Mas ao olhar para ele Lyvlin entendeu muito bem o motivo do dono do lugar estar apavorado e exigir a sua saída imediatamente. Porque os cabelos do recém-chegado estavam pegando fogo.


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