"Eu acreditava na armadilha que Coran montara para a frota que adentrava a Baía Dourada. Acreditava mesmo. Procurei seu olhar e sorri quando se virou para mim, a juventude em seu rosto lentamente sendo substituída por determinação bruta. Fechei minha mão sobre a de Thomas, entrelaçando os dedos livres nos do príncipe herdeiro. Logo faríamos a guerra chover sobre os mastros dos navios, mas por um momento houve beleza no perigo iminente. Estão prontos? Coran quis saber e Thomas anuiu, com medo que suas palavras trouxessem pessimismo. Apertei as mãos daqueles que continuariam sendo os homens mais importantes da minha vida por mais alguns meses. Prontos. Vociferei, abraçando a magia que guardava dentro de mim."

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Os últimos raios de sol faziam suas sombras deitarem longas pela grama seca. Lyvlin deixava-se balançar de um lado para o outro na sela, fraca demais para sentar ereta. Haviam amarrado seu ferimento maior com alguns pedaços de pano, mas ela desconfiava de que infeccionaria se não fosse tratado logo. Sentia a pele pulsar onde lamina do nirnaila a mordera e a dor aguda se espalhava pela base das suas costas como veneno. Não se surpreenderia se a adaga estivesse envenenada ou enfeitiçada. Talvez estivesse além da salvação. Sabendo o que o povo de Wodan havia feito em Nehorna, talvez seria mais misericordioso que morresse antes de chegar ao acampamento.

A figura de Hara em sua montaria tornava-se turva novamente e o braço de Kvasir foi a única coisa que a impediu de despencar do cavalo. De novo. O jovem lhe dava tanta atenção quanto a um saco de batatas, mas a apoiava quando ameaçava desmaiar.

Hara virou-se em sua direção.

– Se quiser, pode descansar. – garantiu para Lyvlin – Ainda vai levar um tempo até chegarmos.

A garota anuiu obedientemente, virando a cabeça para o lado e fingindo fechar os olhos. Estava determinada a guardar o caminho que faziam em sua memória, o que havia se mostrado difícil o suficiente entre os momentos em que sua vista escurecia e as colinas desconhecidas. Sabia muito pouco sobre as redondezas, mas tinha a esperança de que alguém familiar com a paisagem de Alterf conseguisse reconhecer o que ela via. Um pequeno riacho fazia seu caminho sem pressa do seu lado direito, a agua tamborilando sobre o cascalho coberto de algas. Arvores isoladas começavam a ceder espaço para aquelas que se juntavam em pequenos grupos. Lyvlin reconheceu castanheiras e ulmeiros, prestando atenção no que seus ouvidos podiam revelar sobre o lugar que estavam.

Os pássaros que ainda cantavam lhe eram desconhecidos. Uma coruja piou alto quando passaram por baixo de um enorme cedro, seus grandes olhos amarelos acompanhando Lyvlin com interesse. Os seus captores não haviam trocado muitas palavras, mas diante da última luz do dia Hara falou algo que fez o homem barbudo gargalhar e um riso ressoar no peito de Kvasir. Lyvlin tentou se ajeitar, mas a fisgada do lado direito do quadril a fez desistir. Sentia-se impotente, o que para ela sempre era seguido de raiva. Mas conseguiu controlar a língua dessa vez. Se pretendesse escapar teria que se manter viva primeiro.

– Estamos tentando adivinhar como você vai tentar fugir. – Hara lhe explicou. Podia ver seu sorriso na penumbra quando se virou para olha-a – Fardoc acha que está apenas esperando para morder Kvasir e pular do cavalo, mas você não é estupida. Qualquer pessoa com miolos na cabeça esperaria ser curada antes de morder a mão que a ajudou.

– Como você? – Kvasir quis saber em tom leve e por um momento tudo ficou muito quieto.

Hara girou as rédeas para o caminho adiante.

– Ve’nakthyen. Ve’kthyernur? – disse sobre os ombros.

– Tur’kthyer. –o filho de Wodan pareceu concordar e não falou mais nada durante as horas que se seguiram.

Lyvlin tentou descobrir alguma pista em suas expressões, mas Hara lhes virara as costas e Fardoc havia se afastado atrás de um barulho no sub-bosque. Não quis erguer a cabeça para Kvasir. Já estavam pertos o suficiente um do outro.

Se estavam preocupados em se perder, nenhum dos dois revelava. Hara os guiou pela escuridão, acendendo uma tocha quando a lua se escondeu atrás das nuvens. Lyvlin pegou-se pensando no terceiro membro do grupo e quando estava prestes a perguntar se não se importavam com seu paradeiro ouviu o barulho de cascos atrás deles. Hara e Kvasir não fizeram qualquer alardeio quando o homem barbudo emparelhou com eles, um grande faisão pendendo da sua sela. A dinâmica do trio fez Lyvlin se lembrar de uma matilha de lobos. Silenciosos. Sempre atentos, sempre sabendo onde o outro estava sem qualquer esforço. Movendo-se como se fossem um só ser. Balançou a cabeça, tentando manter os pensamentos onde deveria.

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Sabia que algo estava terrivelmente errado, estava consciente o suficiente para isso. Que Wodan mandasse batedores para o sul era esperado, mas se tivesse qualquer consideração ou afeto pelos filhos a vinda de Kvasir significava mais que conseguia imaginar entre um solavanco e o seguinte. Lyvlin olhou para cima. A lua tentava tocar a terra, mas as nuvens ainda a cobriam resilientes. Sabia que Raoul teria a resposta para suas perguntas, mas Raoul não estava com ela. Teria que tentar sozinha.

Wodan estava confiante em ter uma vitória rápida sobre Adrahasis, de outra maneira não arriscaria ter um dos seus cercado por inimigos. Os ataques de Kvasir deveriam ter pouca utilidade além de espalhar o medo e preparar o reino para o que viria se seu pai conseguisse pôr as mãos em Rattra. Um aviso. Lyvlin pensou. Logo os senhores e senhoras daquelas terras teriam suas fortalezas inundadas por refugiados, desesperados por abrigo e segurança. Se esforçou para lembrar das lições dos livros que Gilbert a obrigara a ler e das palavras que ouvira no Monte do Rei sobre o povo de Wodan.

Durante toda a sua vida Lyvlin ouvira que os selvagens além da Baía Tempestuosa estavam poucos degraus acima da bestialidade. Degraus muito baixos, um dos escrivães no Monte do Rei lhe assegurara quando Lyvlin buscara compreender o que acontecera quase um século atrás. Quando por pouco o povo bárbaro não dominou a capital do reino e abandonou as crianças que se tornariam renegados e renegadas antes de completarem seus primeiros anos de vida. E então, vinte anos atrás, Wodan em pessoa quase desembarcara nas águas claras da baía Dourada, perdendo seus guerreiros para os soldados de Vassand antes de conseguir controlar a cidade. Príncipe Coran e sua guarda pessoal haviam vencido aquela batalha por Ciandail, liderando o exercito treinado e expulsando os invasores numa resposta tão rápida quanto o ataque inimigo. Lyvlin lera que Coran e seus guerreiros haviam sido tão incansáveis que perseguiram o que restara da frota inimiga pela costa de Ciandail até alcançarem Rattra. Adrahasis tivera o pior do ataque, mas foi liberta da influência do povo bárbaro depois de um cerco de poucas semanas. Wodan e sua família não estavam entre os prisioneiros arrastados para fora das muralhas de Adrahasis e por isso Osric sabia que tentariam novamente. Que voltassem com tanta confiança depois de uma derrota que deixara Wodan manco e, pior, ferira seu orgulho era estranho. São gananciosos, esse povo de Wodan. Não conseguem manter as mãos longe de tesouros e terra fértil, Vassand tem muito de ambos para oferecer. O bibliotecário nervoso lhe contara, ajeitando uma pilha de livros com dedos trêmulos. Lhe faltava um dos indicadores. Um dos selvagens o arrancou da última vez que poluíram Beltring com sua presença nauseante. Que o bom rei Osric seja firme ou levarão muito mais da próxima vez. Dissera antes de desaparecer atrás de uma estante tão velha que ameaçava cair.

As palavras pareciam uma ameaça vazia quando as ouvira pela primeira vez, mas quando Lyvlin viu as luzes do acampamento iluminarem o horizonte a frase lhe veio carregada de agouro. Subiram o ultimo monte que os separava do acampamento e a garota teve que segurar a respiração, os olhos arregalados encarando as fogueiras que se estendiam na planície abaixo do grupo. Eram pequenas manchas luminosas cuspindo labaredas na noite. Lyvlin contou catorze antes de começarem a descida. Hara viu o medo em seus olhos e escondeu um pequeno sorriso, chamas dançando em seus olhos escuros.

Ela os guiou pelo labirinto de tendas de couro e pano sem hesitar, traçando um caminho reto pelo acampamento. Kvasir tinha cumprimentos gritados em sua direção. O filho de Wodan parecia confortável com a posição que lhe fora confiada, respondendo aos gracejos de seus guerreiros e guerreiras com entusiasmo que Lyvlin ainda não vira. As expressões mudavam quando as pessoas olhavam para ela. Sentia-se como um animal capturado que serviria de diversão para animar a noite. Havia ouvido certa vez que lorde Gilas, a quem pertencia as terras que cercavam Evion, arranjara um urso dançarino para sua pequena corte quando estivera especialmente entediado. O animal dançara uma noite inteira e se soltara quando os homens estavam bêbados demais para prestar atenção. O lorde perdera sua filha mais nova antes que percebesse o que estava acontecendo. Lyvlin ouvira que matara o urso com as próprias mãos, louco de dor e raiva. "O urso era uma coisa selvagem, uma força da natureza contida em carne. Lorde Gilas se esqueceu disso e pagou o preço. Acho que é tão culpado pela morte da filha quanto a besta." Ezra dissera para Lyvlin, tirando-a da roda de historias enquanto Hasler descrevia os ferimentos no corpo da garotinha.

– Desça. – Kvasir pediu quando finalmente pararam. Não havia sinal de Hara ou Fardoc em canto algum. O restante do acampamento a observava com olhares curiosos, mas não ousava se aproximar.

– Vão me ajudar com o ferimento agora? –Lyvlin perguntou, cautelosa. Em nenhum momento haviam se referido a ela como prisioneira, mas não se iludiria. A haviam mantido viva porque esperavam informações em troca. Seus olhos cansados se perderam na abertura entre duas tendas. Se esporeasse o cavalo talvez conseguisse passar.

Kvasir seguiu seu olhar.

– Vai ter uma flecha atravessando seu peito antes de alcançar nossos vigias. – prometeu, voltando os olhos para ela – A escolha é sua.

Com cuidado, a garota deixou-se deslizar da sela. Assim que suas pernas tiveram que suportar seu peso a dor a alcançou, fazendo-a arquejar. Quando afastou os dedos do curativo improvisado os viu encharcados de sangue.

Hara de repente estava ao seu lado, impedido que caísse de cara no chão. Havia trazido alguém com ela. A velha parecia um esqueleto envolto em trapos, mas quando fechou a mão sobre seu pulso Lyvlin sentiu a escuridão se afastando dela.

– Olhe para mim. – mandou e não havia traço do idioma estranho em sua voz. Seus olhos claros como leite se fecharam e Lyvlin sentiu o sangue ferver em suas veias. Hara agora suportava todo seu peso, arrastando-a para uma das tendas e para longe dos olhares curiosos.

–x-x-x-

Lyvlin ouvira falar de torturas que fizeram seu estomago revirar, ameaçando devolver a última refeição. Se o povo de Wodan chamava aquilo de cura, não estava com pressa de ser interrogada. Suas costas se arqueavam sobre a pele de cordeiro que servia como leito enquanto cada pedaço do seu corpo experimentava uma agonia que lhe era completamente estranha. Havia se queimado em um braseiro quando era pequena. As brasas caíram sobre sua perna deixando marcas que a acompanhavam desde o acontecimento, mas a dor era um fantasma gentil perto do que sentia enquanto a velha murmurava encantamentos. Suas veias ardiam, cada centímetro de sua pele prestes a entrar em ebulição. Olhou para seu braço e esperou ver queimaduras se espalhando ou pedaços de pele se soltando, mas não conseguiu ver nada. Estou enlouquecendo. Pensou, a agonia se fundindo com seu sangue até alcançar a beira do desmaio.

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Fechou a mão livre sobre os dedos da velha.

– O que está fazendo comigo?! – cuspiu, os pés descalços se debatendo contra a pele macia. Não se lembrava de ter tirado as vestes. Suas roupas de baixo estavam encharcadas de suor, colando contra seu corpo. Sufocando-a.

A velha continuava de olhos fechados.

– Estou te salvando. – disse com simplicidade e abriu os olhos apenas para revelar pupilas vazias – Pronto.

Lyvlin obedeceu a sua palavra. Agonia se tornou calmaria até não sentir mais dor alguma, apenas um pequeno desconforto onde o nirnaila a apunhalara.

– Esse ferimento estava cheio de ódio. – a velha falou quando Lyvlin tateou a pele atrás de marcas – Vai demorar para estar inteira, mas devo elogiá-la. A maioria desmaia enquanto procuro.

– Procura? – Lyvlin conseguiu perguntar, sentindo a boca seca.

– Pelo quer que esteja fazendo mal, minha querida. – a velha lhe passou uma tigela cheia de agua – Beba. Deve ter suado mais agora que em toda sua vida. Eu mesma estou um pouco exausta, se devo ser sincera.

– O que foi... Isso? – jamais havia ouvido falar em nada parecido – Você destrói, mas ao mesmo tempo...

– Eu desfaço as pessoas e depois as remendo. – a velha fez um gesto de que não era nada – É um tanto diferente de como fazem as coisas por aqui, me contaram. Por muito tempo acreditamos que nossa magia não serviria para curar, apenas destruir. Mas se prestar atenção suficiente, vai saber que tudo pode ser usado para ambos. A parte de desfazer é fácil, destruir sempre é tão mais fácil que consertar, não é? Agora, diferenciar o que é você do que não é e mantê-la inteira enquanto esmago tudo que não é... – deu uma pequena piscadela, ainda que encarasse o pano atrás de Lyvlin e não ela – Isso é a parte curiosa. Nunca sei se vai dar certo ou não, mas quando sabemos os resultados dos nossos atos antes que venham nos assombrar? Eu separo e junto, separo e junto, separo e junto... Como uma fiandeira. - pareceu orgulhosa com a analogia - Vocês tem fiandeiras por aqui, não tem? – respirou fundo, como se tragasse os resquícios de magia na tenda – Maravilhoso. Você tem uma cor estranha.

– Minha cor não é diferente das cores que vi no acampamento. – na verdade, Lyvlin nunca vira pessoas tão diferentes em um só lugar antes.

A velha deu uma risada rouca.

– Não, sua tola. – passou os dedos diante de seus olhos leitosos – Esses aqui não me servem para nada. Estou falando da sua cor. Da que brilha dentro de você. Nunca viu?

Lyvlin lhe virou as costas.

– Apenas sombras. – sussurrou, esperando que aquilo não fosse suficiente para que soubesse quem, o que era. Ou talvez não soubessem de linairs além do mar tempestuoso – Obrigada por me ajudar, mas preferiria ficar sozinha.

A velha ficou tanto tempo em silencio que tinha imaginado que havia ido embora.

– Como desejar. – fez um sinal e Hara se aproximou para apoiá-la. A jovem passara todo o processo em silencio, assistindo pouco impressionada. – Uma pequena feroz, essa aí. Não gritou nenhuma vez. – a velha falou para Hara – O destino nos sorri.

Lyvlin encarou o pedaço da tenda diante dos seus olhos até suas passadas a deixarem sozinha. Seus dedos traçaram o caminho pela anca direita, onde o punhal perfurara sua carne. Havia uma pequena depressão na pele e soube que a cicatriz a acompanharia pelo resto da vida. Era um preço baixo a pagar, o que quer que ela valesse para aquelas pessoas. Ezra tinha orgulho das suas próprias cicatrizes e costumava dizer que eram como livros, prontas para contar sua história se assim desejasse. Um longa e tênue linha branca se espalhava pelo seu antebraço direito, onde Lyvlin o cortara muitos anos atrás. Havia sido um acidente, mas os rendeu a fúria de Gilbert e a proibição de treinarem com espadas de verdade. A princípio havia sido apenas um risco superficial que acompanhou o crescimento do rapaz, se tornando parte dele como as sardas salpicadas em seu rosto alegre.

Os braseiros queimavam preguiçosamente, deixando a tenda em uma penumbra que inquietou Lyvlin. Era parecida demais com a penumbra que carregava dentro dela. A pele de cordeiro era macia o suficiente, mas não lhe haviam dado cobertores e suara o bastante para deixar as roupas de baixo encharcadas. Se encolheu o máximo que podia, esfregando os pés na tentativa de se manter quente de alguma forma. E foi então que sentiu o sangue quente escorrer pelas pernas, lembrando-a que seu corpo voltara a funcionar como sempre fizera. Piorando o que já estava ruim o suficiente.

Forçou-se a sentar, tentando recordar algum sinal que a alertaria que sua menstruação estivesse próxima. Costumava sentir dores terríveis que Raoul conseguira amenizar com uma poção que tinha gosto de morte, mas seu gosto ruim era equiparável ao seu efeito rápido, por isso não podia reclamar. Muito. Passou os olhos pela tenda. A curandeira não deixara nenhum pedaço de pano limpo para trás. Lyvlin tropeçou até o balde de madeira e se limpou o máximo que pôde. Podia ouvir cantoria e o som de instrumentos do lado de fora e talvez se sentiria envergonhada se não tivesse escapado da morte poucas horas atrás. Jogou a sua capa puída sobre os ombros e se enrolou nela, escondendo a nudez. Respirou fundo e afastou a aba da tenda, dando a primeira passada em direção ao céu estrelado e um campo cheio de inimigos.

O povo de Wodan se espalhava ao redor das fogueiras, cantando e tocando músicas de uma terra distante. O ar cheirava a fumaça e carne assada, o que fez o estomago de Lyvlin despertar ruidosamente. Olhou aquelas pessoas com grande interesse, mas ninguém repousava os olhos sobre ela por mais de um instante. Uma mulher gritava versos de uma canção que fez os outros rir enquanto um dos homens passava uma tigela com carne de veado pela roda. Cada um deles comia um pouco e então passava para a pessoa do seu lado. Quando a tigela voltou para quem começara já não restara nada. O homem se levantou para cortar mais, indo até a carcaça que pingava gordura sobre a fogueira no ritmo que os amigos ditavam com a cantoria. Lyvlin já havia visto brigas começarem no pátio de treinamento por menos. Observava o caminho que um traço de gordura fazia pela barba de um deles quando uma voz a fez se virar.

– Realmente contamos com os melhores curandeiros do mundo. – Kvasir lhe disse e sorriu quando seus olhares se encontraram – Apenas uma sessão e já se sente bem o bastante para passear.

Havia se livrado das vestes de caça. O couro gasto havia dado lugar a uma túnica de um tom azul profundo. Pequenos arabescos brancos haviam sido cuidadosamente bordados no tecido, fazendo com que parecessem dançar quando se movimentava. Parecia mais jovem agora e o pequeno sorriso a encorajou a ir direto ao ponto.

– Preciso falar com uma das curandeiras. – disse, sentindo o estomago roncar – É urgente.

– Temo que Lin já tenha se recolhido. A não ser que esteja morrendo...?

Lyvlin desviou o olhar.

– Hara, então. – mexeu desconfortavelmente os dedos e Kvasir o notou.

– Do que precisa? – quis saber, acompanhando seu olhar – Se estiver com fome terei certeza de lhe mandar alguma coisa.

– Não faria mal – Lyvlin confessou – Mas não é isso. Estou sangrando.

Kvasir a olhou por alguns segundos e então entendeu.

– Pode voltar para a tenda, vou pedir que lhe tragam algo logo.

A comida veio primeiro. Lyvlin aceitou a tigela de carne de bom grado e estava esfregando o pão no molho de sangue e gordura para se certificar de que não deixaria sobrar nada quando a aba da tenda foi afastada novamente. Kvasir entrou, abafando o som da cantoria quando fechou a abertura atrás de si. Aproximou-se sem mostrar a vergonha que muitos homens sentiam quando se tratava de menstruação. Muito mais tarde, Lyvlin saberia que isso se devia a grande quantidade de irmãs que tinha e a proximidade que tivera com elas durante sua criação.

– Aqui. – disse, lhe estendendo uma muda de roupa e pedaços de musgo.

Lyvlin pôs as roupas de lado e observou o musgo com desconfiança.

– O que faço com isso? – quis saber.

– Você usa para impedir que saia sangrando por todo nosso acampamento. – Kvasir lhe entregou os pedaços macios e Lyvlin viu que haviam sido cortados em formas alongadas de mais ou menos uma palma de comprimento – Está vendo? Não tem pedaços de terra nem nada. Hara diz que é melhor que os trapos que costumam usar aqui. Se chama fardud'bara, musgo que brilha na lua cheia. - se permitiu um pequeno sorriso - Receio que o nome seja enganoso.

Deve absorver bem. – Lyvlin ponderou, fechando as mãos sobre o musgo – Vem dos arredores do acampamento?

Kvasir negou com a cabeça.

– Ainda não confiamos nessas terras e seus frutos. Demorei porque somos um povo teimoso, que não gosta de partilhar o que quer que seja com estranhos.

Lyvlin ficou em silencio encarando o pedaço de musgo como se fosse mordê-la a qualquer momento.

– Agradeça as mulheres pela manhã. – Kvasir se despediu, jogando um pedaço de pano limpo ao seu lado – Caso seja tão desconfiada quanto nós.

Acabou usando o pedaço de pano para se limpar com a agua que restara no balde de carvalho. Sentiu-se imediatamente melhor quando se livrou das roupas molhadas de suor, enfiando-se na pele de carneiro com pensamentos quase otimistas.

Deixou-se ninar pelas canções do inimigo, prometendo a si mesma que arranjaria uma maneira de fugir quando despertasse.

–x-x-x-

Lyvlin esperava ser arrastada para um interrogatório a qualquer momento. Ser alvo de torturas, negada comida e água ate que dissesse tudo que queriam saber. Mas o interrogatório nunca veio. O cotidiano no acampamento era lento. Podia andar livremente pela maioria do território, sendo apenas mantida longe dos cavalos, que o povo de Wodan tinha em grande estima. O descobriu quando tomava um pouco de ar em uma manhã úmida, dois dias depois de ser encontrada ferida. Ainda estava se acostumando com as vestes que lhe foram dadas, bem mais justas que o que costumava usar. Usava um colete de couro fervido e calças de lã. Uma pele de raposa abraçava seu pescoço, mantendo-a protegida das noites e manhãs frias. Sentia-se quase presa sem as camisas em que cabiam duas dela sem problemas.

Lyvlin suspirou, levando as mãos para o alto para se espreguiçar despretensiosamente. Também estava testando o processo de recuperação de sua ferida, mas disso ninguém precisava saber. Quando deu por si estava a poucas passadas do primeiro cavalo e Hara surgiu ao seu lado como um fantasma.

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– Não tem permissão para chegar perto dos animais. – ela avisou, pouco amistosa – Já deveria se contentar por poder sair da tenda.

Lyvlin abaixou os braços, ignorando a fisgada que acompanhou o movimento.

– Não estou em condições de cavalgar. – falou mais para si mesma.

Hara achou graça.

– Claro que não. E mesmo se estivesse, não chegaria longe. – garantiu – Não há nesse reino pessoas que cavalguem tão bem quanto nós. – um sorriso varreu seu rosto quando olhou para os cavalos – No mundo.

– São cavalos de além da Baía Tempestuosa? – Lyvlin quis saber porque não pareciam nada extraordinários.

A jovem a encarou por alguns segundos em silencio, pensando se deveria responder ou não.

– Essas coisinhas deploráveis? Não. – puxou Lyvlin pelo braço e a empurrou de volta ao caminho que fizera – Nossas montarias são as mais famosas do mundo, esses pangarés não alcançam a sombra do que nosso Ninrod é. Mas a Baía Tempestuosa não é gentil com quem tenta atravessá-la. E nossos cavalos são preciosos demais para desperdiça-los em travessias difíceis. –quando olhou para Lyvlin lhe presenteou com um sorriso quase sombrio – Mas o destino nos sorri.

– É por ele que estão esperando? – Lyvlin perguntou, afastando um mosquito - Pelo destino. -Naqueles vales o mormaço era maior e a umidade parecia multiplicar os pequenos bichos irritantes a cada hora que se passava. E ainda assim o ar era frio durante a noite e se mantinha assim ate o meio-dia. Lyvlin estava convencida de que o clima daquele lugar estava jogando com seu humor.

Hara a observou por um momento. Sua pele e olhos escuros reluziam nas primeiras horas da manhã, impregnada com o vapor que subia da grama rala. Lyvlin soube desde o começo que era com ela que teria que se preocupar. Não Kvasir ou as dezenas de olhos que vigiavam cada passo que dava pelo acampamento. Não. Hara era quem teria que convencer de que não tinha ambição alguma de fugir. Até que o fizesse quando finamente olhasse para o lado oposto.

– O destino? – Hara repetiu, inocente – Não. O destino vem ao nosso encontro.

–x-x-x-

Não demorou muito para Lyvlin descobrir que não eram apenas os cavalos que ocupavam a vida do povo de Wodan. Cada pessoa do acampamento parecia ter seu próprio arco, coisa que a fez franzir o cenho mais de uma vez. Arqueiros capazes eram algo valioso e raro em Vassand, mesmo com a magia sendo usada amplamente. Um bom arqueiro tinha poucos magos a temer, pois uma flecha com velocidade suficiente encontraria seu alvo antes de qualquer reação. Também era mais difícil perceber a presença de uma flecha que o fluxo de energia que uma magia bem focada costumava trazer consigo. Na Academia do Monte do Rei Lyvlin vira treinamentos em que aprendizes tinham que bloquear ataques com escudos mágicos materializados no momento exato. Um garoto quase recebera uma flecha no meio da testa e apenas se safara porque o projetil incendiara-se em pleno ar. Adisa achara graça, usando a oportunidade para se amostrar diante dos mais novos. Lyvlin ficara tão pálida quanto o menino.

Arqueiros não eram uma vista bem-vinda para ninguém, não em um pátio de treinamento magico mais longe do que conseguia imaginar e tampouco em um acampamento inimigo. Se os números que contava estavam certos, a comitiva de Darian teria que lidar com cinquenta homens e mulheres, todos munidos de arcos e pelo menos metade montados em cavalos. Não era uma quantidade que lhe dava esperança, mas também dizia a Lyvlin que aquele grupo deveria ter deixado as suas terras além da Baia Tempestuosa antes da grande força de Wodan que atacava Rattra. Poderiam ter vindo a pé de Rattra, roubando cavalos e saqueando pequenos vilarejos a cada oportunidade que se mostrava. Ou talvez contavam com um navio escondido a algumas dezenas de quilômetros na costa pedregosa, longe da vista de qualquer pessoa. Não saber com certeza fez a frustração de Lyvlin crescer e sempre que podia se esforçava para observar os habitantes do acampamento. Se não poderia dar informações táticas quando voltasse, ao menos serviria um relato do cotidiano de seus captores. Tinha certeza que pelo menos Raoul apreciaria o esforço.

Não pareciam com pressa para deixar o lugar, mantendo poucas sentinelas nos limites das tendas e se ocupando com afazeres que revelavam pouca coisa para Lyvlin. Caçadores saíam e retornavam diariamente com gansos selvagens, lebres e raízes comestíveis. Não passou fome em nenhuma das noites. Tampouco a maltrataram e apesar de sentir os olhos vigilantes sobre seu ombro, Lyvlin quase esquecera que era uma prisioneira. Mas não o suficiente. Tratava as mulheres com simpatia e logo lhe mostraram que eram tão guerreiras quanto qualquer homem no acampamento. Lyvlin não entendia uma palavra do que diziam, mas estava entediada o suficiente para tentar. Quando se surpreenderam com a velocidade em que esfolava lebres tentou contar que era uma caçadora. Havia juntado um círculo razoável a sua volta que mais ria de sua mímica que deveria representa-la caçando nas florestas em Evion do que a levava a sério, quando de repente todas ficaram em silencio.

– Vejo que mantem o acampamento entretido. – zombou Hara, ignorando os olhares que recebia do círculo de mulheres – Venha, Kvasir pediu que a encontrasse. – jogou um trapo em seu colo – E limpe essas mãos.

– Ber’duk. – sussurrou uma das mulheres enquanto Lyvlin limpava o sangue de seus dedos e quando ergueu a cabeça viu que falara com Hara. A palavra sequer a fizera piscar, mas pela forma como foi dita não deveria significar algo bom.

– Vamos. – Hara insistiu e a palavra foi cuspida em sua direção de novo.

– O que significa? – Lyvlin quis saber quando haviam caminhado alguns passos – Ber’duk. - repetiu, enrolando a língua na tentativa. O que quase fez Hara sorrir.

– Alguma coisa sobre não pertencer. – e então checou sua expressão – Você realmente não faz ideia, não é? Não sei se dou uma boa gargalhada ou se fico preocupada. Espere, eu sei. – e riu até lagrimas encherem seus olhos.

– Eu não entendo. – Lyvlin falou defensiva enquanto Hara limpava o rosto – Não imaginei que ser de outro lugar seria um problema entre o povo de Wodan.

– Não é, se você vem de territórios conquistados pelo Povo. A minha historia é muito diferente. - deu uma olhadela para ter certeza que Lyvlin ainda prestava atenção e então continuou - Eu tive a honra de nascer em um lugarzinho muito, muito distante. Onde conhecimento é tão desejável para uma filha quanto um casamento vantajoso. E como era a mais nova de cinco irmãs, meus pais tiveram um vislumbre do futuro e concluíram que estaria melhor entre livros e pergaminhos. Um fardo a menos, imagino. Não os culpo. - garantiu, cumprimentando Fardoc que voltava com um carregamento de lenha debaixo do braço - Percebi muito cedo que não tenho talento para a vida matrimonial. Imagine assim: eu vivia em uma torre, aprendendo línguas de lugares distantes e sobre os costumes de reinos que pareciam ficar do outro lado do mundo. E quanto mais eu aprendia, mais eu queria ver. Mas não podia.

– Por que?

Hara fez um gesto impaciente com a mão.

– Porque expedições exigem dinheiro e experiência de alguém perto da morte, pelo jeito. E então, numa bela noite, decidi que tinha treinado caligrafia o suficiente e que enlouqueceria se tivesse que fazer a copia de mais um pergaminho sequer. Fugi, tendo o bom senso de levar todos os potes de tinta comigo. Achei que teria tempo para escrever minhas aventuras. - encheu os pulmões e imitou um grasnido rouco - "Garota estúpida." Os anciões sempre diziam.

Lyvlin tentou imaginar aquela historia.

– Então, você é uma escriba fugitiva que acabou tropeçando no povo de Wodan? - e Hara deve ter notado sua incredulidade porque abriu o primeiro sorriso que não lhe pareceu ameaçador.

– Kvasir estava pelas redondezas e intercedeu em um assalto. Eu como a pequena garota estúpida que era achava que aqueles malditos potes valiam a minha vida. - e então sua expressão se fechou por quase dois segundos - Eram a única coisa que me restava da torre. - cuspiu no chão - Mas chega de detalhes, um deles me acertou com uma faca, os potes de tinta quebraram, Kvasir me levantou e me levou ao seu pai. Eu não tinha nada melhor para fazer, então fiquei.

A lembrança a fez abrir um sorriso afetuoso quando Kvasir surgiu no horizonte.

– Nunca me arrependi. - assegurou olhando para Lyvlin com uma sombra de ferocidade em seus olhos - Nem mesmo quando me chamam de nomes que foram feitos para machucar.

Lyvlin sorriu contra o sol.

– Você escolheu ficar. Talvez que pertença mais do que imagina. – disse antes de caminhar até Kvasir.

–x-x-x-

Estava sozinho. Voltava as costas para Lyvlin, o que fez o pensamento de lhe encostar uma faca na garganta e exigir um cavalo passar pela sua mente como um raio. E como um raio desapareceu quando seus olhares se cruzaram. Os dedos de Kvasir se fechavam sobre um arco curto e Lyvlin contou quatro flechas cravadas num punhado de arvores jovens dezenas de metros atrás.

– Nossas vestes caem bem em você. – a cumprimentou e então tirou uma flecha da aljava que descansava contra suas pernas. Quando a posicionou no arco e puxou a linha Lyvlin percebeu que o fazia de uma forma muito diferente de qualquer arqueiro que já tinha visto. Não deveria ter tido tempo para mirar, mas dois segundos depois a ponta da flecha encontrou madeira.

Lyvlin cruzou os braços.

– Foi para isso que me chamou? – quis saber, tentando estimar a distância que os separava do arvoredo. Parecia grande demais para ser deixada para trás por uma flecha saída de um arco curto. Significava que teria que correr mais antes de parar para recuperar o folego. Sua ferida quase não a incomodava. Hara havia feito a sua escolha e Lyvlin estava certa da dela.

Kvasir baixou o arco, usando a mão para bloquear o sol diante dos seus olhos.

– Há quantos dias está conosco? – perguntou.

– Cinco. – o numero a deixava nervosa.

Livrou-se do olhar de Kvasir. E se a comitiva não havia esperado por ela? Raoul e os outros poderiam estar a caminho de Beltring agora. Teria que fugir. Logo.

– Cinco dias. – Kvasir repetiu, os olhos perdidos no horizonte. Em algum lugar naquela direção deveriam estar os últimos montes do Alterf. Lyvlin se perguntou se tentava adivinhar como seu pai se saía no ataque a Adrahasis.

E então seus olhos voltaram para ela.

– Eu era jovem demais para participar do sítio a Beltring. – disse de repente – Jovem demais, inexperiente demais. As videntes disseram que não era meu destino. Elas regram a nossa vida, dizem quando é tempo de plantar e tempo de ceifar. Tempo de esperar e tempo de atacar. Leem o destino de cada criança e assim determinam que tipo de adulto se tornarão. – seus punhos se fecharam – Elas dizem que o destino nos sorri. Eu não vejo como.

– O que elas disseram sobre Vassand? – Lyvlin não acreditava que alguém poderia prever o futuro, mas não se negaria a ouvi-lo.

– Elas prometeram que Vassand seria nossa. Os ares se encherão de jubilo quando o último Oskias cair da grande escadaria da capital. Vassand sangrará e sairemos vitoriosos. – disse agourento, mas sussurrara as palavras como se as temesse – Imagino quanto desse sangue será nosso.

– Então os convença de que não adiantará. Retorne para casa. – Lyvlin mordeu os lábios, se esforçando para escolher as palavras certas - Vassand nem é tudo isso, aposto que encontram coisa melhor do outro lado da Baía Tempestuosa. Os invernos são terríveis no oeste, mas as pessoas são ainda piores. Rattra está cheia de escorpiões e daqueles que se consideram acima de todos. E Ciandail... Bem, Ciandail é a maior aglomeração de nobres brigando por pedaços de terra que pode existir. É uma briga de vizinhos sem fim. Vocês não iriam querer lidar com isso.

Aquilo fez Kvasir rir.

– Sua habilidade diplomática é invejável. – confessou sorrindo – Mas temo que não será suficiente para convencer minha família.

Lyvlin deu de ombros.

– Então deve saber que Ciandail, Rattra e Faolmagh tem suas desavenças, mas se pressionadas o suficiente mostrarão porque se unem sob um único estandarte. Para ter Vassand vocês terão que conquistar três reinos. – disse, chutando uma pedrinha e levantando o olhar para encarar Kvasir - Não é uma tarefa que gostaria de ter.

Aquilo apagou o sorriso de seus lábios. Estava prestes a responder quando alguém gritou seu nome do acampamento.

Um garoto vinha correndo na direção dos dois. Era alto para a idade, quase do tamanho de Kvasir, e tinha os mesmos cabelos escuros e olhos oblíquos. Quando os alcançou estava ofegante e suas bochechas coravam. Cumprimentou Kvasir com algumas palavras em sua língua e depois fez uma pequena reverencia para Lyvlin. Seus olhos brilhavam de animação.

– Olá, me chamo Hakko. – se esforçou para dizer, tropeçando nas silabas. E depois voltou o olhar para Kvasir em busca de ajuda.

– Hakko é meu sobrinho. – explicou para Lyvlin sem esconder o orgulho – Filho da minha irmã mais velha, Ksenia. Está aqui para aprender a ser um guerreiro ou porque meu pai não o aguentava mais pedindo para participar de batalhas.

– Eu costumava ser assim. – Lyvlin confessou, dando um pequeno sorriso para o garoto – Acabou que a minha aventura se mostrou grande demais para o meu gosto.

Hakko observava os dois com atenção, tentando entender o que falavam. Quando pararam de conversar o garoto revelou o arco que carregava nas costas e exigiu algo com voz determinada.

– Prometi que o treinaria. – Kvasir traduziu para Lyvlin e pediu que Hakko colocasse a primeira flecha no arco. Corrigiu a sua postura, paciente e gentil. Quando a flecha voou não encontrou arvore alguma e se fincou na relva seca, algumas passadas antes do arvoredo. Kvasir trocou algumas palavras com o sobrinho ao que Hakko saiu correndo para recuperar a flecha perdida.

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– Expliquei que voltaria logo. – Kvasir o observou com o olhar vigilante de um pai cuidando da cria – Ande comigo, quero lhe contar algo.

Naquele dia Kvasir usava uma túnica vermelha com pequenos sois bordados em sua superfície. As linhas douradas o deixavam em pé de igualdade com qualquer veste formal usada no Monte do Rei. Outra coisa que Lyvlin aprendera ao longo daqueles dias. O povo de Wodan tinha um gosto pelo belo e não eram os selvagens que a biblioteca real pintava em cores sombrias. Às vezes, Lyvlin esquecia do massacre em Nehorna. E se pegava quase gostando daquelas pessoas.

Foi ela quem falou primeiro.

– O que as videntes contaram sobre o seu destino? – quis saber, curiosa.

Kvasir entrelaçou os braços atrás das costas e ficou em silencio durante alguns segundos. O fim da tarde se aproximava e os pássaros voltavam para seus ninhos. Um grupo de gansos selvagens voava sobre suas cabeças e uma lebre mordiscava a relva a alguns metros de distancia. Os caçadores haviam voltado com um jantar farto, por isso Kvasir deixou seu arco descansar. O roedor ergueu o focinho no ar, ficando de pé nas pernas traseiras. E então disparou, alheio a sorte que tivera.

– Disseram que eu morreria antes de completar cinco anos. – Kvasir contou, distraído – Três semanas antes do meu quinto aniversário fiquei de cama, delirando e com uma febre que nenhum curandeiro conseguiu extinguir. Meu pai sabia que seria meu fim, mas minha mãe ficou do meu lado. Cuidando. Me alimentando ainda que colocasse tudo para fora. Ela disse que eu tremia como se tivesse caído em um lago congelado. Fiquei assim durante dias até que finalmente o dia do meu aniversario chegou. Dois dias depois me levantei da cama e não me lembro de ficar doente desde então.

– Consigo pensar em presentes piores. – Lyvlin comentou, achando graça.

– Ninguém achou engraçado na época. Achei que as videntes me matariam com as próprias mãos se pudessem, para manter suas palavras como verdade.

– Elas não podem errar?

Caminhavam sem caminho traçado e Kvasir pensou um pouco antes de responder.

– A preocupação era que se erraram sobre mim, poderiam ter errado sobre outras pessoas. Outras coisas. As palavras de uma vidente são tudo que ela tem. Sem elas, sem a certeza de que se tornarão realidade... Você percebe como pode ser perigoso. – deu uma olhadela no acampamento e pareceu aprovar a movimentação que via - Fui o único erro, o que certamente as deixou satisfeitas.

– Deve ser difícil viver sem destino. – Lyvlin disse e quando viu a expressão de Kvasir olhou na direção contraria – Para vocês, quero dizer. Aqui cada um faz o seu destino. Não somos presos por palavras que nos dizem o que vamos fazer ou não.

Teve problemas em fazer aquilo soar verdadeiro. Lembrou-se das palavras de Laoviah e sentiu o ardor no ombro esquerdo, onde a marca de Vaus a impedia de se esquecer de quem era. Kvasir não parecia convencido porque quando a olhou havia pesar em seus olhos.

– Queria que isso fosse verdade. – e então parou de andar, fazendo Lyvlin parar também – Nossos batedores avançados voltaram hoje.

As palavras a fizeram sentir o coração pulsar na garganta. Se esforçou para controlar cada músculo da face que ameaçava entrega-la. Direcionou o olhar para frente. Eles sabiam. Trovejou em sua cabeça.

– Achamos estranho não encontrar qualquer resistência nos vilarejos. – Kvasir continuou – Era de se esperar que os donos das terras alarmariam Beltring de alguma forma. Talvez não pelas vidas perdidas, mas nenhum senhor gosta de ver sua terra queimar. Os mandamos alguns dias atrás, nossos olhos além do nosso alcance. E pela manhã retornaram, contando de uma vista bastante curiosa. Você sabe o que eles viram, Lyvlin?

– Não. – mentiu, uma pequena parte dela se agarrando a esperança de que talvez haviam visto outra coisa. Outras pessoas.

– Eu sempre quis conhecer o príncipe de Vassand. – Kvasir confessou, ainda que não parecesse ansioso agora – Sua fama possui dedos longos. Dizem que será um rei melhor que o pai.

Lyvlin levantou a cabeça.

– O melhor. – ela o corrigiu, finalmente encontrando sua coragem – Dizem que será o melhor rei que Vassand já teve.

Kvasir a observou por alguns momentos, o suficiente para que percebesse que deveria saber a verdade desde o começo. Sentiu o peito apertar, a mão direita instintivamente tocando a bainha vazia. Onde Arcturus estaria se não tivesse sido roubada.

– É por isso que me salvaram? – quis saber.

– Na esperança de que poderia nos fornecer informações? - seu tom era paciente - Não.

– Isso é conveniente porque não conseguiriam arrancar nada de mim. - Lyvlin sibilou - O que vai fazer?

Pôde ver que a exigência em sua voz o divertiu.

– O herdeiro de Vassand está ao meu alcance enquanto meu pai dá início a uma guerra. – Kvasir virou-se para fazer o caminho que o levaria de volta ao sobrinho – Não deixarei que sangue seja derramado quando há outra maneira.

– Isso não combina com o que o seu povo costuma fazer. – Lyvlin comentou pelas suas costas.

Aquilo o fez virar.

– Você tem razão. - concordou - Isso é tão ruim assim?

Pela primeira vez Lyvlin se pegou sem resposta. Observou Kvasir voltar para o sobrinho em seu manto coberto de sois e percebeu que lamentaria quando morresse.

E então girou nos calcanhares, voltando ao acampamento com passos ligeiros.