As Caçadoras

A Menina Lobo


DUQUE DE CAXIAS, RIO DE JANEIRO

Já passava da meia noite. A Polícia Militar estava em uma das rodovias mais movimentadas de Duque de Caxias onde um engavetamento em série havia acabado de acontecer. As ambulâncias tratavam de socorrer os feridos e de levar os casos mais graves ao hospital mais próximo. Já os policiais tinham a função de isolar a área e recolher depoimentos das testemunhas.

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— Ok, senhor Silva – disse a sargento Andrea Moraes. – Pode repetir o que acabou de me dizer de forma lenta e ordenada?

— Posso. – falou o homem de aproximadamente seus sessenta anos, o copo d’água nas mãos trêmulas.

— Então diga, o que causou o acidente?

— Foi um cachorro, um cachorro bem grande de pelo escuro como a noite. Ele apareceu do nada correndo pela rodovia atacando os carros. Foi horrível. O bicho pulou no meu carro e me olhou nos olhos. Mas seu olhar era estranho, diferente... Não parecia com o olhar de um animal e sim... de gente!

— Ahn... – disse a mulher negra meio incrédula. – Muito obrigada, senhor Silva. Você será chamado para depor na delegacia daqui a alguns dias, ok? Cuide-se. – e Andrea se afastou do homem fazendo algumas anotações na ficha acomodada na prancheta. – “Cachorros com olhar de gente... Esse velho deve estar caducando.”

Após a chegada da perícia e a remoção dos treze carros, a polícia retornou ao seu batalhão. Andrea registrou a ocorrência e quando deu duas horas da manhã ela finalmente pode retornar para sua casa, que ficava no bairro Figueira ali mesmo em Duque de Caxias.

A policial passou um bom tempo esperando um ônibus, que quando passou estava bastante vazio. Havia uma ou outra alma penada ali voltando do trabalho ou alguma festa, o que era completamente normal. Quando finalmente desceu foi andando por uma longa rua praticamente vazia o que a deixava um pouco assustada.

— “Vamos, Andrea, você tem uma arma. Não precisa ficar com medo de nada.” – pensou agarrada a sua bolsa.

Quando já estava virando a esquina da Rua Beatriz, onde morava, a mulher de cabelos alisados começou a ouvir sons estranhos. Pareciam rosnados e vinham de trás da mesma. Pensando ser um cachorro de rua, ela se virou e viu um lobo enorme pronto para atacar.

Andrea saiu em disparada pela rua sem olhar pra trás. O lobo vinha correndo em alta velocidade querendo abocanha-la a todo custo. Ela arrancou a chave da bolsa e lançou a bolsa contra o animal, fazendo-o diminuir sua velocidade e entrou em casa trancando a porta rapidamente. Suas costas deslizaram pela madeira até a mulher sentar-se no chão, ofegante. Agora Andrea acreditava no velho.

***

A luz do sol invadiu o quarto pela fresta da cortina o que fez os olhos de Ana se abrir devagar naquela manhã de sexta-feira. A garota estava exausta, pois pouco conseguiu dormir por conta dos pesadelos que teve graças aos acontecimentos da noite anterior. A cena de seu pai e tia sendo sugados não saía de sua mente e a possível morte de sua mãe fazia seu coração ficar apertado.

Ela virou-se para o outro lado, agora ficando de frente para a cama de Rafa. Por sorte a prima tinha uma bicama e não precisou ter dormido no chão ou no sofá da sala. Ana puxou o travesseiro da prima e o abraçou com força. Estava sentindo-se totalmente inútil. Precisava salvar as pessoas que amava, mas não se sentia capaz de fazer aquilo sozinha. Tia Josiane não a apoiava e a prima também não parecia levar muita fé naquilo.

Tantos pensamentos negativos a faziam ficar deprimida e sem a mínima vontade de levantar-se daquela cama. Ana só queria ficar ali, parada, remoendo suas dores e lamentando por não conseguir realizar o seu maior desejo por falta de forças. Uma lágrima escorreu pelo rosto da jovem Ferraz e foi naquele momento que Rafaela entrou no quarto com um copo de suco na mão.

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— Ei, Ana, já acordou?

— Não, ainda tô dormindo. – respondeu após disfarçar a lágrima.

— Você é uma égua, sabia? – disse a garota sentando-se na cadeira cor-de-rosa com rodinhas. – Espera, você tava chorando?

— Chorando? Eu? – disse se sentando na cama.

— É, tipo, você está com a maior cara de quem estava chorando. Tá tudo bem? – falou a ruiva pegando o lápis e começando a fazer um exercício de biologia de um livro que estava sobre a escrivaninha.

— Tudo ótimo. Deve ser só impressão sua.

— Se você diz. – disse com os olhos no livro. – (FUVEST-SP) Nos porquinhos da Índia, a pelagem negra é dominante sobre a pelagem branca. Um criador tem um lote de porquinhos-da-índia negros, com o mesmo genótipo. O que deve fazer para descobrir se esses animais são homozigotos ou heterozigotos? Justifique sua resposta. Aff...

— Cara, tu só estuda? – perguntou Ana.

— Eu tenho que estudar. – disse a garota anotando algumas coisas em um caderno. – Pretendo passar pra medicina esse ano, então preciso estudar o máximo que puder.

— Que nerdice.

— Não é “nerdice”. – falou a ruiva. – É só um sonho que pretendo realizar.

— Pra mim continua sendo nerdice.

— E você, Ana? Não pretende fazer faculdade?

— Não sei nem se vou estar viva amanhã. – disse a morena se espreguiçando. – Tenho continuar tentando descobrir aquela senha do capeta, mas acho que antes vou tomar um banho... e comer alguma coisa, claro.

— Pode pegar uma roupa minha se quiser.

— Valeu, gata. – falou Ana se levantando e indo até o armário da ruiva. – Bem, vamos lá. Rosa, rosa, rosa, rosa, rosa, gatinho fofinho não, oncinha não, mais rosa não, Mickey não, rosa com panda menos ainda... Aff! Como podemos ser parentes? Somos tão diferentes uma da outra!

— Nós só fomos criadas de formas diferentes, só isso. – respondeu Rafa.

— Nunca pensei que fosse dizer isso, mas preciso agradecer aos meus pais por ter me criado de forma tão estranha. – disse pegando uma roupa no armário. – Ser normal é uma merda!

— EI!

— Banho! – gritou Ana piscando para a prima e correndo dali o mais rápido possível.

— Será que ela ainda toma jeito? – perguntou-se a ruiva suspirando.

Rafaela terminou de fazer a questão da FUVEST e passou para a próxima, que falava sobre doenças passadas geneticamente. Mas antes que pudesse respondê-la foi interrompida por uma cantoria. Quem era a artista? Ana Carolina de Almeida Ferraz, é claro.

— ...esfrega, esfrega vai fazendo massagem. Gostoso pra chuchu chuá chuá uh uh! – cantarolava a garota enquanto lavava o cabelo usando a embalagem de xampu como microfone.

— Eu mereço isso. – disse a ruiva fechando o livro, segurando-se para não rir. – É, parece que não vai ser hoje que vou conseguir estudar. Enfim, vou esquentar o almoço antes que a outra resolva comer a casa.

O banho de Ana durou cerca de quinze minutos. Agora ela se sentia muito melhor, sem a poeira e o suor que conseguiu em sua fuga na noite anterior. Enquanto lavava o cabelo, além de dar o Show da Ana Carolina (risos) ela aproveitou para pensar um pouco sobre o possível plano para salvar seus parentes das garras dos reptilianos. Aliás, não podia afirmar se estavam vivos ou não, mas algo no fundo de sua alma dizia que sim e não iria desistir até ter seu pai e sua tia sãos e salvos.

Ana chegou à cozinha usando um short jeans curto e uma blusa preta com uma estrela de pequenas pedrinhas que havia pegado no armário da prima. Já Rafa esquentava o almoço, que pelo aroma deveria ser algo muito bom.

— Cara, que cheiro maravilhoso. – disse a garota se aproximando do fogão, pronta para pegar um pedaço da carne assada no tabuleiro recém–saído do forno.

— Tira a mão. – disse Rafa dando um tapa na mão de Ana.

— Ah, qual é, Rafa? Eu tô com fome! Vai deixar mesmo a sua prima assim?

— Você já vai comer. – falou mexendo na panela do feijão. – Por que não vai arrumando a mesa?

— É, pode ser. – disse Ana indo pegar os pratos no armário. – Quantos eu pego?

— Dois.

— E a sua mãe?

— Ela saiu cedo pra trabalhar, só chega de noite. – respondeu Rafa desligando o fogão. – E daqui a pouco eu vou sair também, tenho que ir para o curso.

— Ué, não vai me ajudar com a senha? – perguntou ajeitando a mesa.

— Quando eu voltar, te ajudo.

— Ah é? – disse a morena incomodada com a atitude da prima. – Está bem então.

— Bem, vamos comer ok?

As garotas almoçaram em silêncio. Ana estava um tanto chateada com a atitude de Rafa. Será que ela não ligava para a própria família? Será que ela era tão egoísta a ponto de colocar os estudos acima de gente do seu próprio sangue? Aquilo fazia o sangue da morena ferver, mas não falaria nada por enquanto. Afinal, não queria perder a única aliada que poderia ter naquele momento complicado.

Após o almoço as duas arrumaram a cozinha e Ana foi descansar um pouco do almoço assistindo televisão enquanto Rafa se arrumava para sair. Estava na hora do noticiário local que passava entorno do meio-dia em um dos canais de TV mais vistos no Brasil.

— ...o governo do estado irá cobrir todos os gastos. – disse a repórter no estúdio logo em seguida havendo um corte da câmera. – Ontem a noite uma casa pegou fogo em Cascadura, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro...

— Não acredito. – disse Ana se sentando no sofá para assistir a reportagem.

— A repórter Sara Nunes está no local com mais informações. Boa tarde, Sara.

— Boa tarde, Pâmela. – respondeu a repórter em frente a casa dos Ferraz que agora não passava de um bando de escombros incinerados.

— Você pode nos dizer o que aconteceu?

— Bem, Pâmela, ao que parece o incêndio começou ontem por volta das oito horas da noite. Moradores dizem ter visto luzes no céu muito brilhantes e que uma delas foi em direção a casa e ouviu-se um estrondo muito alto, minutos depois o incêndio teria iniciado. A perícia investiga a possibilidade de que um meteoro tenha caído na propriedade e depois causado do incêndio.

— Meteoro? Fala sério. – disse Ana.

— A casa está em nome de Geraldo Nascimento Ferraz e segundo testemunhas ele morava com a esposa Claudia Ferraz e a filha Ana Carolina Ferraz. A irmã, Lúcia Ferraz, também estaria presente na hora que o meteoro caiu, porém nenhum dos corpos foi encontrado. A PM segue as buscas por todo o estado. Pâmela.

— Obrigada, Sara. Caso estranho, não? – disse a mulher ajeitando as fichas nas mãos. – Agora vamos à previsão do tempo.

— Você não viu nada, querida. – falou a morena.

— Sua casa? – perguntou Rafaela atrás da garota que deu um pulo e caiu no chão.

— PORRA, RAFA! NÃO ME ASSUSTA ASSIM!

— Tá, desculpa. – disse a ruiva.

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— E sim, aquela era a minha casa. – falou se levantando. – E eu espero que eles não encontrem a Batcaverna porque senão vai dar treta.

— Por que?

— Os documentos devem ter pegado fogo, claro, mas ainda tem armas lá, de um calibre maior do que a outro. Ou seja, podem achar que meu pai era traficante ou algo do tipo.

— Complicado. – disse Rafa passando a mão pela alça da mochila. – Estou indo pro curso. Mais tarde, quando eu voltar, te ajudo com a senha, ok?

— Está bem. – falou Ana.

— Se ficar com fome a carne está dentro do forno e na geladeira tem bastante comida, pode pegar o quanto quiser. Qualquer coisa pode ligar pro meu número, tá?

— Pode deixar. – disse Ana olhando nos olhos da prima segurando a raiva da indiferença da mesma. – Boa aula.

— Valeu. – disse a ruiva saindo de casa e deixando-a sozinha.

— Eu vou quebrar a cara dessa garota! – exclamou Ana jogando uma almofada longe. – Bem, vamos trabalhar um pouco. – falou para si mesma indo pegar o tablet no quarto da prima, porém parou no meio do caminho ao ouvir a notícia na televisão.

— Ontem à noite, na Rodovia Washington Luiz, a mais movimentada de Duque de Caxias, houve um engavetamento envolvendo treze carros. Testemunhas contam que o acidente ocorreu logo após um cachorro grande invadir a pista na altura da prefeitura e atacar os carros. Pelo menos dez pessoas saíram com ferimentos leves e cinco com ferimentos mais graves. As vítimas foram levadas para o Hospital Municipal Adão Pereira Nunes e passam bem.

— Cachorro grande atacando pessoas? Tá, calma, Ana. – disse a garota para si mesma. – Não é um lobisomem, ok? Afinal, não estamos nem na lua cheia, né? Como poderia ser um lobisomem? Agora força na peruca e vamos ver qual é a da senha encapetada que o pai colocou no arquivo de nome estranho.

— A sargento Andrea Ferraz também foi atacada enquanto voltava para casa, mas felizmente conseguiu fugir.

O dia da Ferraz foi um tanto entediante. Resumiu-se apenas a tentar achar a senha correta do arquivo que com certeza não era “lasanha”, “tôcomfome” ou “abracadabra”. Ana tentou descobri-la no sofá da sala, no banheiro, deitada na cama de cabeça para baixo, mas nada conseguia desbloquear aquele arquivo. A melhor parte do dia foi ter comido um mega sanduíche com a carne assada do almoço e mais um bilhão de ingredientes, por volta das cinco horas da tarde.

À noite, quando sua tia chegou, nenhuma das duas deu um pio. Apenas ficaram trocando olhares nada indiscretos. Josiane estava extremamente brava com a sobrinha – de seu marido, melhor dizendo – por ter destruído o trabalho que havia feito com a filha todos aqueles anos mantendo-a longe dos perigos do mundo sobrenatural. A mulher foi para o seu quarto ficando lá por horas sem dar um único sinal de vida.

Ana já não sabia mais que senha colocar, então resolveu ir comer alguma coisa. Tirou um saco de Doritos do armário e foi para a sala comer enquanto assistia Vai Que Cola na televisão. Era um dos poucos programas nacionais que ela gostava e a fazia rir horrores. Seu personagem preferido era Valdemiro Lacerda, um malandro que se meteu em confusão com a polícia na zona sul do Rio de Janeiro e teve que abandonar o luxo para viver na humilde pensão da Dona Jô, no Méier.

A morena tentou mais três ou quatro senhas, mas acabou desistindo. Iria ver um filme na televisão enquanto esperava Rafaela do curso e ver se elas conseguiam juntas pensar em alguma coisa, afinal, duas cabeças pensam bem melhor do que uma, certo? Uma espiada no relógio e já passava das onze e meia e a ruiva não chegava. Onde será que ela tinha se metido? Será que o lobisomem...? Não, não havia lobisomem. Ana lembrava muito bem do que seu pai lhe ensinara e era impossível aquela criatura aparecer por aí fora da lua cheia. Foi então que a porta se abriu e Rafaela entrou em casa.

— Onde você tava? – perguntou Ana.

— Oi, prima. Tudo bom com você? Como foi o seu dia? – provocou a garota pondo a mochila no chão e se jogando no outro sofá. – O ônibus demorou e por isso me atrasei, sua chata. – disse em seguida bocejando. – E aí? Conseguiu alguma coisa?

— Nadica de nada. Estava te esperando pra ver se você tem alguma ideia do que colocar.

— Ah, Ana, eu tô cansada. Não podemos deixar isso pra amanhã não?

— ...

— Hein, Ana?

— ...

— Ana?

— Escuta aqui, garota, – disse a morena irritada. – eu tentei ser legal, tentei ficar na minha, mas simplesmente não dá! Por que você acha que eu vim pra cá? Pra passar as férias na casa de parentes que não vejo há séculos? Colônia de férias? Não! Eu vim porque vocês duas são as únicas pessoas em que minha mãe confiava e que poderiam me ajudar! Meu pai e a tia Lúcia foram abduzidos, sabe-se lá onde estão agora, mas precisamos resgatá-los. E o que você e sua mãe tem feito para me ajudar ultimamente? NADA! Sua mãe me ignora completamente e você parece ligar que nossos familiares, sangue do nosso sangue! Você está sendo egoísta, Rafaela! Muito egoísta!

— Ah, eu estou sendo egoísta?

— Essa sua indiferença que me mata. Como pode ser tão insensível!?

— Ah, agora eu sou indiferente? Uma prima minha que não vejo há um milênio aparece do nada na minha casa dizendo que mais parentes que também pareciam ter me esquecido foram abduzidos e que na verdade o meu pai não morreu em um acidente de carro, e sim extraterrestres mataram ele. E aí você quer me mandar pro mesmo caminho. Como você acha que eu me sinto? Você está sendo egoísta, Ana! O mundo não gira entorno do seu umbigo!

— Espera, depois de tanto tempo você não superou a morte de seu pai? Não pode viver assim a vida toda! Supera!

— Ah é? Eu digo o mesmo pra você.

— O QUE!? – berrou Ana pegando a prima pela gola da camisa. – SE DISSER ISSO OUTRA VEZ ACABO COM VOCÊ!

— Ué, não me disse para superar? Então, supere a morte de sua mãe! Supere que seu pai e a tia Lúcia podem estar mortos! SUPERA!

Ana deu um soco na cara da ruiva que ficou enfurecida e partiu para o ataque. Em um piscar de olhos as duas se estapeavam e puxavam cabelos na sala de estar. Rafa derrubou Ana sobre a mesinha de centro que se quebrou e a luta continuou no chão. Josiane chegou à sala para ver o motivo de tanta gritaria e tapou a boca com a mão quando viu a cena das primas se estapeando no chão. A mulher correu para separar a briga, tirando a filha de cima da sobrinha.

— O que deu em vocês? Ficaram loucas!? – gritou Josiane.

— Quer saber? Eu tô cansada! – disse Rafa correndo porta afora com lágrimas nos olhos.

— Rafaela, volta aqui! Rafa! – gritou a mulher indo atrás da filha.

— Me deixem em paz! – gritou a ruiva correndo pela rua ao som dos latidos dos cachorros das casas vizinhas.

Mas algo a fez parar de correr e ficar paralisada. Algumas luzes passaram rasantes no céu, o que a fez imaginar serem OVNIs e logo em seguida uma cena que normalmente só se vê em filmes de terror acontecia a sua frente. Um grande lobo negro estava na esquina da rua rosnando para a garota. A baba escorria por seu focinho, parecendo estar pronto para atacá-la a qualquer instante.

— Essa não. – disse sem conseguir se mexer.

De repente o lobo veio correndo em sua direção e Rafa fechou os olhos pronta para o pior. Porém o som de um tiro foi ouvido, acertando o animal que tentou correr, mas caiu novamente na virada da esquina com uma rua que levava a um beco. A ruiva abriu os olhos sem entender nada. Quando olhou pra trás viu Ana escondendo a arma.

— Querida, você está bem? – perguntou Josiane abraçando a garota.

— S-sim.

— Vamos ver o que temos aqui. – disse Ana se aproximando do animal que, porém já não era mais animal. Era uma garota negra e de cabelos cor-de-rosa desacordada.

— LETÍCIA!? – disse Rafa ao ver a amiga com a mão sangrando.

— Você conhece ela? – perguntou Ana.

— É minha melhor amiga!

— Garotas, ela levou um tiro! Temos que levá-la ao hospital! – exclamou Josiane.

A mulher correu em disparada para pegar o carro. Ana e Rafa colocaram a garota desacordada no banco de trás e partiram em direção ao hospital mais próximo. A ruiva estava desesperada tentando estancar o sangue com lenços de papel, mas parecia ser quase em vão.

— Vai ficar tudo bem, Let. – falou para a amiga.

— Rafa... – disse com a voz fraca.

— Aguenta. Estamos quase chegando.

Ana, que estava no banco da frente, olhava para o desespero da prima diante aquela situação. Talvez Rafa não fosse a pessoa que imaginava ser e ela estivesse sendo insensível com a mesma. Iria consertar aquela situação na primeira oportunidade que aparecesse.

Quando chegaram ao hospital tiveram que carregar Letícia para dentro, pois ninguém veio ajudá-las ou pareceu se importar com a garota. A sala de espera estava lotada de pessoas de todas as idades, acompanhantes e pacientes que esperavam a sua vez para ser atendidos.

Algumas pessoas se levantaram para que pudessem sentar a garota em um dos bancos, mas não antes de se fazer um caminho de gotas de sangue no chão. Josiane foi até a recepção pedir ajuda.

— Precisamos de ajuda! A menina levou um tiro e... – disse ofegante.

— Acalme-se, senhora. – disse a mulher de uniforme e coque no cabelo. – Nós não podemos atendê-la antes da polícia chegar e avaliar o caso.

— O que!? Mas a garota está sangrando!

— São os procedimentos do hospital, senhora.

— Pro inferno com seus procedimentos! Ela precisa de ajuda!

— Tia, o que tá acontecendo? – perguntou Ana chegando.

— Ela tá dizendo que não pode atender a Letícia sem a polícia.

— Dá licença. – disse Ana se metendo na frente da mulher e batendo com as duas mãos no balcão, irritada. Seu olhar estava firme no da recepcionista, como se fosse fuzilá-la e foi aí que soltou o verbo. – Escuta aqui, querida, eu sei que você tem um regulamento a seguir e blá blá blá, mas se tiver um coração batendo dentro desse seu peito que aliás é muito grade, parabéns, e um pouco de dignidade que ainda lhe resta nessa vida, atenda a garota! Você quer ser responsável pela amputação de alguém, hein? Porque é isso que pode acontecer se demorar mais um pouco, e vai ser sua culpa! – a mulher ficou paralisada olhando para a Ferraz por alguns segundos, mas logo falou no microfone.

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— Doutora Márcia Denise Gomes, emergência, por favor!

Todos bateram palmas e assoviaram para Ana. Mais uma vez ela tinha feito um ótimo trabalho resolvendo problemas frequentes no cotidiano cada brasileiro que poderiam ser facilmente evitados com um pouco de boa vontade e menos burocracia.

Letícia foi levada para o centro cirúrgico e as garotas ficaram esperando impacientes do lado de fora do hospital enquanto Josiane falava com os policiais. Tinha inventado toda uma história de que tinha ido buscar a filha, que sempre vinha com a amiga, no ponto de ônibus e então passou um homem de moto atirando. Não iria entregar a sobrinha, por mais que tivesse raiva da mesma.

— Cara, se aquela garota morrer eu nunca vou me perdoar. – disse Ana sentada na escada abraçando as pernas.

— Ela não vai morrer. – disse Rafa de forma seca, sentada alguns degraus abaixo.

— Rafa...

— O que?

— Desculpa por ter falado com você daquele jeito, você não é nenhuma sem coração. – falou olhando a garota.

— Tá tudo bem...

— Eu que fui egoísta e imatura, e não procurei ver o seu ponto de vista. Você também tem sentimentos e assim como você respeita os meus, tenho que respeitar os seus.

— Tá tudo bem, Ana. Eu também errei com você. – disse ajeitando o cabelo bagunçado. – Prometi te ajudar com essa situação chata e não cumpri. Desculpa mesmo.

— Sabe, eu sei que não tenho sido o exemplo de prima nos últimos anos, mas acho que podemos ser amigas, não? Como quando éramos crianças...

— A gente aprontava cada uma juntas né?

— Nem me fala. – falou Ana rindo. – Lembra daquela vez que escondemos a dentadura do vô Carlos?

— Ele ficou doido. – riu a ruiva. Então Ana se levantou.

— Alguém viu minha dentadura? Sem ela não posso comer minha rapadura. – imitou Ana andando curvada como se apoiasse em uma bengala e fazendo voz de velho.

— Melhor imitação ever! – disse Rafaela gargalhando. – Nossa família era muito hilária né?

— Sim! E quase todo fim de semana estávamos juntos. – falou se sentando novamente. – Espera! É isso!

— O que Ana?

— A senha! – falou pegando o tablet e o ligando.

— O que?

— Você vai ver. – Ana digitou a palavra a senha e o arquivo se abriu como em um passe de mágica.

— Mentira! Qual é a senha?

— Família. Estava debaixo nos nossos olhos o tempo todo!

— Ótimo, agora vamos ver o que tem nesse tal arquivo Genesis.

Dentro do arquivo havia somente um programa que se abriu em uma tela negra com várias abas diferentes. Elas foram clicando uma a uma, descobrindo sobre um projeto feito pelos reptilianos em todo o país que busca transformar todas as pessoas em mutantes em duas etapas: primeiro, o tratamento químico, em segundo, a implantação e ativação de um microchip implantado na medula espinhal de cada cobaia e que é ativado conforme a necessidade. Em seguida passaram para a parte das fichas e ficaram espantadas com o número de pessoas que já haviam passado por aquela experiência.

— Espera, Ana. – disse Rafa olhando a tela. – Sobe um pouco.

Naquele momento as garotas ficaram boquiabertas. Dentre as diversas fichas estava uma com nome e foto de Letícia, entre outras informações.

— Como isso é possível? Por que a Let? – perguntou a ruiva.

— Parece que a sua amiga é aliada das tartarugas do espaço.

— Quem, a Let? Não, Ana! Jamais... A não ser que...

— Que...?

— A não ser que eles façam isso sem a pessoa saber.

— Tipo uma vacina ou algo do tipo?

— Exatamente. – falou pensativa. – Precisamos saber como isso aconteceu.

— Não, precisamos deter a garota. Ela está machucando gente.

— O que?

— Lembra aquele noticiário que eu estava vendo ontem de tarde? Então, logo depois que você saiu passou uma matéria sobre um cachorro preto que causou um acidente na Washington Luiz ontem de noite e também perseguiu uma policial. Ninguém morreu, mas sabe-se lá o que pode acontecer se não fizermos nada.

— E o que você acha que podemos fazer sobre isso?

— Ahn...

— Nós NÃO VAMOS matar a Let, Ana.

— Calma, eu não ia dizer isso. – falou a garota bloqueando o tablet. – E se tentássemos tirar o microchip? Só teríamos que fazer um pequeno corte e pronto.

— Até não seria má ideia se não tivesse risco dela ficar tetraplégica ou com algum outro problema sério. – disse com uma expressão triste. – A medula espinhal é uma parte do corpo muito sensível e qualquer lesão pode causar sequelas.

— Cara, como você sabe disso?

— Eu estudo isso o dia inteiro, esqueceu? Pré-vestibular...

— Tu é muito nerd mesmo. Então, o que faremos?

— O problema é que eu não vejo outra solução... E não podemos chegar e simplesmente pedir para um médico arrancar um chip.

— Seria muito estranho, né? Tipo: “Fala aí, doutor! Tudo beleza? Será que dava pra você tirar um chipzinho da medula espinhal daquela menina ali? É que ela se transforma em um cachorrão e uma hora pode matar alguém”.

— Ana, você é muito boba. – disse rindo.

— Garotas – falou Josiane aparecendo na porta do hospital. – a Letícia acordou.

Rafela foi correndo falar com a amiga, enquanto Ana e a tia ficaram do lado de fora da porta do quarto observando conversando sobre as recentes descobertas sobre o Projeto Genesis. Josiane ouviu a sobrinha com atenção, relembrando seus tempos de caça ao lado do marido. Lembrava-se de terem descoberto muitas coisas sobre os planos dos reptilianos e aquele foi o motivo de sua morte, apesar de nunca terem encontrado o corpo.

— Microchip, certo? – disse pensativa. – Me lembro que quando caçava com seu tio nós primeiro dopávamos o monstro com algo que o enfraquecesse. Por exemplo, sangue de defunto para vampiros ou prata para lobisomens e quando era indefinido nós atirávamos dardos tranquilizantes e eles apagavam. E aí retirávamos o chip com todo o cuidado do mundo. A pessoa continua infectada, mas pelo menos não vai mais estar sob controle dos reptilianos.

— Mas a Rafaela disse que isso tem alguns riscos e não quer fazer isso.

— Escuta, Ana, a Rafa não conhece nada desse mundo sofrido da caça. Às vezes temos que abrir mão dos nossos sentimentos e fazer o certo. E se ela quer mesmo seguir esse caminho, vai ter que aprender uma hora ou outra.

— Meu pai sempre me disse isso. E foi em algumas situações desse tipo que perdemos muitos familiares, porque eles deram suas vidas para que não fizessem mal a ninguém. É triste, mas é a verdade.

— Que bom que você entende. Agora precisamos fazer a Rafa entender isso.

— Sim. – disse Ana balançando a cabeça de forma positiva.

— Ela não se lembra de nada. – disse a ruiva voltando para perto delas. – O que vamos fazer?

— Querida, precisamos conversar. – falou Josiane bastante séria.

Mãe e filha foram ter uma conversa no banheiro, enquanto Ana ficou na porta do quarto observando a garota de mão enfaixada que olhava para todos os cantos tentando entender como fora parar naquele lugar. A morena agora sentia-se menos pior por ter atirado em Letícia, mas mesmo assim um sentimento de culpa ainda tomava conta de seu ser.

Não foi nada fácil para Josiane explicar sobre o mundo dos caçadores para a filha, menos ainda convencê-la de que a única forma de salvar sua amiga era somente tirando o chip. Era uma operação de risco? Sim, mas que seria necessária. Porém a mulher perguntou se Letícia iria gostar de matar alguém e aquilo mudou toda a forma de pensar de Rafaela.

Como Letícia nunca conheceu o pai e a mãe estava trabalhando em uma cidade muito distante, a garota de cabelos rosa foi levada para a casa das Ferraz. Então elas a explicaram o que aconteceu de verdade, e não versão contada para os policiais, fazendo-a ficar extremamente confusa.

— Ok, então eu fui cobaia das experiências de ETs e agora tenho um chip implantado na minha medula que faz com que umas substâncias loucas façam eu me transformar em um lobo negro que tenta matar as pessoas?

— Sim. – responderam Ana e Rafa ao mesmo tempo.

— Que drogas vocês usaram? – perguntou Letícia.

— Não são drogas, é a verdade. – falou Ana.

— Escuta, Let, você passou por algum tratamento recentemente? – perguntou a ruiva. – Precisamos muito saber disso.

— Tratamento? Bem... Não que eu me lembre. Ah, não! Mês passado eu estava passando muito mal e passei o fim de semana em um posto de saúde perto do calçadão.

— Então deve ter sido isso. – disse Rafaela. – Eles te deram alguma medicação estranha?

— Não, só soro e alguns remédios comuns. Mas... Eu me lembro de ter desmaiado e acordar com uma dor no pescoço. – naquele instante as primas se entreolharam.

— Foi o chip. – falou Ana. – Eles implantaram o chip em você e precisamos tirá-lo.

— O que? Não, gente! – disse se levantando do sofá.

— Por favor, Let, você pode acabar machucando alguém. – pediu a ruiva.

— Não! Vocês não vão tocar em mim! Nunca!

De repente o corpo da negra começou a mudar. Pelos cresceram por todos os lados, os dentes ficaram afiados e sua forma começou a mudar. Em uma questão de segundos as primas Ferraz tinham diante delas um lobo babando e rosnando, para atacá-las a qualquer instante. Porém antes que o pior acontecesse elas ouviram um barulho de algo sendo disparado e um dardo atingiu o animal.

— Mãe! – exclamou Rafa.

Mais um tiro foi dado e o lobo caiu no chão adormecido. Aquele foi o momento perfeito para levarem Letícia para o porão da casa, onde Rafaela nunca tinha estado antes. Era um lugar grande cheio de armas e estantes abarrotadas de livros, similar ao que havia na casa e Ana. E foi sobre uma mesa que as três fizeram a minicirurgia para a retirada do tal chip. Quando Letícia acordou estava deitada na cama da amiga confusa novamente e um cheiro muito forte de comida entrava por suas narinas.

— Amiga, você acordou! – disse Rafaela indo abraçá-la. – Você tá bem?

— O-o que foi que aconteceu? – perguntou com a voz fraca.

— Você ficou assustada e se transformou, Letícia. – respondeu Ana.

— Mas agora vai ficar tudo bem. – falou a ruiva.

— Então eu sou... eu sou um monstro?

— Não se você aprender a se controlar. – disse Josiane entrando no quarto. – E aí? Quem quer pizza?

— EU! – exclamou Ana empurrando a tia correndo para a cozinha o mais rápido que podia.

— Essa Ana... Ela não tem jeito mesmo. – falou Rafa levando a mão a testa em meio as risadas das outras duas.