Luna me ajudou a ficar de pé e abriu passagem, revelando uma porta. Eu entrei, mas Anne continuou do lado de fora.

— Anne? — chamei.

— Você viu o que ela acabou de fazer comigo! Eu não vou entrar aí. Não com ela.

— Anne, vou precisar de você.

— Não me importo.

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Dei um passo à frente para ir até ela, mas Luna me impediu com um braço.

— Ela servirá melhor no lado de fora. É melhor se importar, semideusa. Vamos precisar de você.

— A mochila, Anne — eu pedi.

Ela tirou a mochila das costas e jogou com força em minha direção. Luna a fez parar no ar com apenas um olhar.

— Obrigado — eu disse, pegando a mochila.

Anne cruzou os braços e emburrou.

O lado de dentro da construção era ainda mais feio, sujo, escuro, e parecido com uma igreja. Havia um pátio com escrituras complicadas desenhadas no chão, cercado de janelas em forma de espiral que permitiam ver a imensidão no nada que se estendia depois do precipício; e um altar, marcado por um círculo feito com runas tão antigas que meu cérebro não conseguia traduzir. Não havia teto. As paredes continham desenhos estranhos de pessoas sentadas ao redor do altar, prestando graças aos deuses.

No altar, dentro do círculo, havia três quadrados marcados com as mesmas runas do círculo. Em um desses quadrados, tinha um cajado partido em vários pedaços para que coubesse lá dentro.

— Junte as três partes do berrante — Luna pediu.

Eu tirei a minha mochila das costas e a coloquei no chão, ao lado da de Anne. Abri-a, e retirei as três caixas pretas de lá. Em cada uma delas, havia um terço de um berrante que se encaixava perfeitamente nos outros. Ao aproximar os três, eles brilharam e se atraíram como ímãs. Quando eles ficaram encaixados, um brilho vermelho circundou os cortes, como se alguém invisível estivesse soldando as partes. No final, o brilho se apagou, e só restou o berrante completo.

— Não ouse emitir um sopro sequer para esse objeto, ou tudo o que você fez até aqui terá sido em vão.

Assenti e coloquei o berrante cautelosamente dentro da mochila.

— Agora, pegue a camisa e o bonsai, e posicione-os nos quadrados restantes.

Retirei o bonsai da mochila de Anne e o coloquei dentro de um quadrado. Ao receber o objeto, as runas brilharam em azul por um curto período, voltando ao normal logo depois. Fiz o mesmo com a camisa do Metallica que pertencia à Louise.

— Eu quero um para a Hellen — pedi.

— Quatro almas? Isso vai exigir muito de você.

— Você sabe que isso não vai importar no final. Um para Hellen, ou nada feito.

Luna sorriu.

— Querido, o ritual só funciona com quem está morto.

— O quê? — fiquei sem reação de tanta perplexidade.

— Achou mesmo que ela se entregaria para a morte tão fácil assim? Menina esperta. Eu gosto dela também.

— Então ela vai voltar para o Acampamento, não vai?

Luna riu.

— É claro que vai.

Eu assenti.

— Sente no chão, dentro do círculo — ela pediu. Eu o fiz.

Ela saiu para falar com Anne. Mesmo longe, ainda pude ouvir a conversa.

— Semideusa, como eu disse, precisamos de você agora.

— O quer diabos você quer que eu faça? — Anne disse, com raiva na voz. Luna continuou calma.

— Um escudo.

— O quê?

— Use o dom que Deméter lhe deu. Evoque plantas, raízes, folhas, o que for necessário. Preciso que você crie um escudo capaz de reter qualquer coisa que tentar entrar aqui por uma quantidade considerável de tempo. Você é boa no ataque, como já tive a oportunidade de ver. E na defesa?

Depois de um tempo, eu ouvi um grito. Preparei para me levantar, mas vi pela janela que Anne tinha conseguido. Uma grande quantidade de raízes de diversos tipos de plantas formou o que parecia ser um escudo ao redor da construção. Pelo que eu vi, parecia extremamente forte. Nada entrava, nada saía.

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Vi Luna levantar as mãos, e outro escudo cobriu o de Anne. Era transparente, mágico, mas vez ou outra podia-se ver descargas elétricas passando.

— Fique aqui e prepare-se. Tente aguentar o máximo que puder. Nossas vidas dependem disso.

— É, como se você não pudesse sumir em fumacinha assim que quisesse.

— É, como se eu fosse abandonar a chance de salvar minha irmã.

Anne se calou. Luna voltou para dentro e sentou ao meu lado, lançando para mim um olhar penetrante.

— O segredo.

Hesitei, mas tirei a grande caixa preta da minha mochila mesmo assim. Era marcada com uma balança na tampa, com as letras “V” de “vida” e “M” de “morte”, uma em cada prato. No momento, os pratos da balança estavam equilibrados, mas quando eu tirei a tampa, vi que o prato do “M” afundou, deixando o “V” bem mais no alto. No interior da caixa, um pergaminho despedaçado e muito amarelo brilhava, esperando para ser aberto.

Olhei para Luna, ela estava olhando para o pergaminho. Ela pôs uma mão em cada braço meu, e acenou com a cabeça para o papel amarelo. Com dificuldade, devido às mãos dela, eu peguei o segredo. Assim que eu o toquei, ela apertou meus braços com força, e com razão, porque eu senti uma vontade implacável de me levantar e sair correndo sem rumo, para sempre.

— Aguente — ela ordenou. — Abra o pergaminho. É o último passo. Já vai acabar. Só aguente firme.

Ignorei a enorme vontade que eu senti de abandonar tudo, e pus uma mão em cada extremidade do papel, puxando de uma vez assim que consegui, e revelando, por fim, o segredo da morte.

Eu gritei. Gritei de dor, tristeza, vergonha, alegria, desamparo, vontade, raiva, melancolia, felicidade, orgulho, nojo, desprezo, amor, paixão, prazer, preocupação, ódio. Gritei por sentir tudo de uma vez. Todos os sentimentos que eu já tinha sentido e também os que eu não tinha. Todos vieram e saíram em um segundo, e logo só restamos eu e o segredo, nada mais.

Eu me senti mais forte do que nunca antes, com a confiança no máximo, e um sorriso no rosto. Eu sabia como trazer qualquer morto de volta à vida, seja ele semideus, mortal, titã, monstro, gigante ou até mesmo um deus esquecido. Eu poderia me erguer sobre as profundezas do tártaro e abalar toda a estrutura do Mundo Inferior, se quisesse. Eu poderia dominar o mundo com um exército de imortais, se quisesse, e não teria ninguém para me impedir, porque eu não podia morrer. Eu me senti imortal. Eu era o centro. O deus da morte e da vida. Eu sabia que poderia fazer o que eu quisesse com quem quisesse. Mas, acima de tudo, eu também sabia que tinha objetivos a seguir.

Ao longe, infinitamente longe, eu podia ouvir batidas. Machados, pedaços de pau, mãos, cabeças. Centenas, quiçá milhares de monstros batiam contra as defesas de Anne, cujos gritos eu também podia ouvir. Mas, de uma certa forma, era bom saber que todos estavam atrás de mim. Era bom saber que eu era o semideus mais importante de todos, naquele momento.

— Dylan — Luna falou, ao meu lado. A existência dela tinha se tornado tão insignificante perante a minha que minha única vontade era retirar a essência da vida dela. Mas algo me dizia para não fazer isso, porque eu precisava dela. — Não ceda às vontades do segredo. Lembre-se de quem você tem que trazer de volta. Mais ninguém, Dylan, ou vai dar tudo errado. Só as três.

Ela apertou meus braços com mais força, aproximou sua boca do meu ouvido e recitou algumas palavras que não consegui entender.

Minha visão ficou branca, como se alguém tivesse acendido um farol bem na minha frente. Senti minha cabeça pousar no chão suavemente. Foi como se eu tivesse caído no sono de uma hora para a outra. Acordei em um corredor como o de Teon, também branco, com memórias passando pelas paredes. Na verdade, toda a minha vida estava passando pelas paredes.

Eu vi o dia em que eu nasci, com a minha mãe me segurando nos braços, sorrindo. Vi toda a minha infância passar, com os dias em que fui travesso, que fiquei comportado, que dormi assistindo filme com a minha mãe, abraçados. Eu a vi morrer. Quis salvá-la, mas eu sabia que não poderia. Vi o meu primeiro internato, o dia em que fui expulso deste, e o dia em que fui expulso de todos os outros. Menos o último, de Albuquerque. Eu me vi comendo o hambúrguer, completamente desligado do mundo ao meu redor, e só notando o ciclope enorme quando ele já estava bem perto. Eu me vi me escondendo no aquário, tremendo de medo, mas criando coragem do impossível e matando o ciclope com minhas próprias mãos. Eu vi Mirina e Julieta me esperando do lado de fora, e me levando para o Acampamento. Vi o campeonato de escalagem com obstáculos, e me vi ganhando, depois de muito esforço. Vi Rachel recitar a profecia, convocando o Mar, o Sol e a Morte para uma missão. Vi Julieta ecoar seu grito de guerra: DJM. Vi as harpias nos sequestrarem e nos trancarem no porão. Vi a Sra. O’Leary nos salvar, e Mirina arrastando Colin para ir com a gente. Vi Colin abraçar Julieta quando acordou, e ela clamar que ele estava sumido há muito tempo depois de uma missão para resgatar Mirina. Vi Colin e Julieta se beijando atrás da caverna que nos servia de abrigo. Vi Mirina nos salvar de um desabamento nessa mesma caverna. Vi Luna nos sequestrar na prisão de Ohio. Vi Mirina dando a última essência de sua vida para nos salvar.

Essa memória estava com um destaque preto. Sem pensar entrei nela. Foi como se eu estivesse lá, ao meu próprio lado, olhando minha amiga morrer novamente. Mas não dessa vez. Aproximei-me do corpo de Mirina, deitado na cama de Edward, e o toquei. Senti minhas mãos sugarem algo de lá, como um canudo. Logo, eu estava com a alma de Mirina nas mãos. Ela parecia querer me bater.

Depois, voltei ao corredor de memórias. Vi Colin enganando Talassa com seu próprio jogo. Vi o resto das armadilhas, revelações, decepções e resgates que se envolveram naquela missão, até que cheguei no final.

Entrei na memória que envolvia a morte de Talassa. Com nojo, coloquei a alma dela nas minhas mãos também. Ela tinha um sorriso psicopata.

Voltei ao corredor de memórias, mas não tinha mais nada a fazer. Todas as lembranças se repetiram uma, duas, três, quinze vezes, e eu continuei procurando por Louise, mas ela não estava lá. Era como se toda a participação que ela teve na minha vida simplesmente tivesse se apagado. Entrei em pânico.

O corredor começou a desmoronar. Tentei gritar para que parasse, mas a voz não saía, como se eu estivesse no vácuo. Logo, eu estava de volta ao Mundo Inferior, com Luna ainda me segurando. O corpo de Talassa e de Mirina estavam lá, desacordados. Mas a camisa do Metallica continuava intacta em seu quadrado.

— Onde está a Louise? — perguntei, seco.

— Dylan… — Luna começou.

— Onde está… a Louise? — perguntei novamente, firme.

— Ela escolheu ressuscitar, Dylan. Ela escolheu uma nova vida.

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— E você não me avisou? — lágrimas começaram a descer pelo meu rosto.

Luna ficou sem palavras, pela primeira vez. Ela parecia realmente.

— Você não avisou. VOCÊ NÃO AVISOU! — eu gritei, e uma onda sônica empurrou Luna em direção à parede. Ela se deixou bater, sabendo que merecia.

Eu me levantei e andei em direção a Luna. Ela tentou me impedir com magia, mas eu quebrei seu campo de força com apenas minha vontade. Cheguei muito perto dela, com o punho fechado, mas não bati. Eu queria bater, queria espancá-la até que seu corpo caísse mole no chão, sem vida, mas não o fiz. Não o fiz porque sabia que não haveria resultado no final. Sabia que não traria Louise de volta.

Ao invés disso, sentei no chão e chorei, com os gritos de esforço de Anne juntando-se aos meus, de frustração.

— Ela disse que ia me esperar — eu berrava, em meio a soluços. — Ela disse. Eu voltei por ela. Eu fiz tudo aquilo por ela, mas ela não me esperou. Não. Não! NÃO!

Olhei para Luna, mas a visão dela estava focada em outro lugar. Pela primeira vez, eu vi que ela sentiu medo. Olhei para onda ela estava olhando, e vi raios azuis saindo de mim. Senti uma fraqueza momentânea, e caí no chão. Os raios se direcionavam para o quadrado com a camisa do Metallica. Eu sentia algo sendo puxado de mim, e isso fazia meu estômago embrulhar e apertar. Cheguei a um ponto em que eu estava gritando de dor a plenos pulmões. Luna só conseguia recitar a palavra “impossível”.

Quando os raios sumiram, e quando eu parei de sentir dor, algo tinha mudado. Havia uma terceira pessoa dentro do círculo. Mesmo fraco, eu me arrastei até onde Louise estava. Tirei o cabelo dela do rosto, acariciando as bochechas macias e pálidas. Comecei a chorar de novo, mas de alegria.

Luna veio até mim, parando ao lado do corpo de Talassa.

— Você não faz ideia nenhuma do que acabou de fazer. Nenhuma.

— É? Pois eu tenho. Eu trouxe de volta as pessoas que morreram por minha causa, inclusive aquela que eu amo. Eu consertei meus erros.

— Você começou uma guerra que não sabe como lutar — ao dizer isso, ela segurou o corpo de Talassa e sumiu com ele.

Não entendi o que ela quis dizer, mas não importava. Louise estava aqui. Mirina estava aqui. Meu trabalho estava completo. Só me restava fazer uma coisa para o bem de todos.

Tirei o berrante da mochila, e saí da construção.

— Dylan? — Anne chamou. — O que aconteceu? Você tá horrível.

Agora que eu estava do lado de fora, os monstros batiam com mais voracidade no escudo.

— Eu consegui, Anne. Elas estão lá dentro.

— Ótimo, toque esse berrante e vamos dar o fora daqui.

— Você sabe que eu não posso.

— O que quer dizer com isso?

— Se eu ficar, vou ser perseguido o resto da vida por todos os monstros do planeta. Não vou poder ver vocês nunca mais, de qualquer jeito.

— Mas Dylan…

— Você fez bem, Anne. Apesar de tudo, foi bom te conhecer. Não me faça dizer isso de novo.

— Dylan, não.

Uma lágrima desceu pelo rosto dela. Uma lágrima de Anne por mim. Quem diria que isso ia acontecer? Agora eu já tinha visto de tudo.

— Diga a Louise… Ah, ela sabe.

Coloquei o berrante no chão, e Anne veio correndo para pegá-lo. Eu não queria fazer isso, mas empurrei ela em direção à parede de plantas. Ela bateu as costas e não conseguiu se levantar, no momento.

— Dylan, seu idiota! — ela gritou, com toda a força que conseguia.

Eu corri com toda a força que consegui, para não parar. De repente, não havia mais chão sob os meus pés, e o precipício se estendeu abaixo.

Mas, apesar de ainda ouvir os nãos de Anne e do enorme frio na barriga durante a caída, eu não consegui tirar minha satisfação em ter feito o certo do rosto.

Eu morri sorrindo.

Ψ