Antes de ELA chegar

5. Aprender uma coisa nova


Era manhã de quinta-feira, um feriado nacional que daria a todos nós, estudantes do Brasil, quatro longos dias de folga da escola. Acordei às seis e meia e, mesmo me recusando a levantar tão cedo, não consegui mais dormir.

Pela primeira vez em muito tempo, não liguei direto pro Gustavo. Sei lá, achei que ele merecia dormir até mais tarde. No lugar disso, mandei só uma mensagem — estou me habituando a usar o Google Voice Assistant, apesar de não gostar nem um pouco de dizer minhas mensagens em voz alta. Pelo menos me livrei do corretor ortográfico — desejando um bom dia e pedindo que ele me ligasse quando acordasse.

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Sim, eu sou um amor.

Esperava ir até a cozinha e encher uma tigela — ou, no caso, uma tupperware mesmo — de Sucrilhos pra comer vendo TV. Seria como nos velhos tempos, quando eu ainda não ia pra escola e me arrastava pra fora da cama em silêncio absoluto pra assistir meus desenhos até minha mãe levantar. Sério, eu me sentia uma ninja das sombras, sincronização cada movimento com as respirações dela e congelava a cada pequeno sinal de vida.

Demorei alguns anos pra descobrir que ela dorme feito uma pedra e não acordaria nem que eu derrubasse todas as suas tupperwares no chão. Seria uma quinta-feira preguiçosa.

Infelizmente, não deu pra realizar meu plano, porque assim que coloquei os pés no piso gelado da cozinha vi meu irmão dormindo debruçado em cima da mesa. O rosto dele estava amassado sobre uns papéis de exames meus e a chave do carro estava perigosamente perto do fio de baba que escorria pela bochecha dele.

Tirei uma foto pra usar como chantagem mais tarde e coloquei a mão no ombro dele, evitando olhar os papéis; já sabia de cor as palavras de cada um deles. Uma ideia tinha acabado de surgir.

— Luke — chamei. Ele nem se mexeu. — Lucas, oi. Acorda.

Ele abriu um dos olhos e resmungou alguma coisa em árabe arcaico misturado com persa contemporâneo. Levantou a cabeça, limpou a bochecha com o ombro da camisa e me encarou. O cabelo dele estava mais armado que o meu.

— Você é de verdade ou eu posso te bater? — questionou.

— Se estiver afim de morrer, pode. — Fechei os punhos e dei dois soquinhos no ar. Ele riu.

— É de verdade. A Helena dos meus sonhos não é tão tonta.

— Bom pra ela. — Peguei a chave do carro e balancei na frente da cara dele. — Eu quero aprender a dirigir.

— O quê? — Meu irmão esfregou os olhos e deu uma olhada no relógio de parede sobre a geladeira. Quando viu o horário, me olhou como se me achasse mais louca ainda. — Lena, olha...

— Você sabe que eu não vou aprender na hora — cortei. — Não vou tirar carteira, nada disso. Vai, me leva na área industrial e eu prometo que não vou matar a gente, podemos ir e voltar antes que a mãe acorde.

Luke pensou por um segundo.

— Ela ia gostar de ir — comentou.

— Ela já tentou uma vez. Foi quando ela gritou comigo e eu quebrei um dos retrovisores do carro. Ambas concordamos que ela não é muito boa professora.

— Que eu me lembre, você arrancou o retrovisor raspando no muro. — Seu tom era casual, mas dava pra ver que ele estava se segurando pra não rir.

— Tanto faz. — Fiz um gesto vago com a mão e retomei o tom sério. — Vamos? Por favor. Faz tempo que não fazemos nada juntos.

Luke pensou por alguns instantes, procurando em cada cantinho de sua mente um motivo pra dizer não. Dava pra ver as engrenagens girando na cabeça dele. Quando não encontrou nada, deu de ombros e esfregou os olhos com os polegares.

— Vai se trocar, então — comandou. — E, pelo amor de Deus, escova os dentes.

Eu não tinha reparado em como os olhos dele pareciam cansados até ficarmos sozinhos no carro. Como ainda era muito cedo, os primeiros raios de sol se escondiam timidamente atrás de algumas nuvens e deixavam qualquer lugar com sombra um pouquinho frio, o que me fez ficar meio encolhida no banco do carona durante todo o trajeto até o bairro do antigo frigorífico.

É longe do restante da cidade, mas ainda não é perto da estrada. Se escolher as ruas certas, você pode passear por lá em círculos o dia todo e não vai encontrar ninguém. É pra onde os casais vão "estacionar". Eu pensei nisso quando estávamos quase chegando e tive que segurar a risada; a ideia de ser parada por um policial num carro com um loirinho aguado quase dez anos mais velho que eu era muito filme de Sessão da Tarde.

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— É aqui. — Ele parou o carro num ponto aleatório e desceu.

Mudei pro banco de motorista e fiz uma careta.

— Eu prefiro não perguntar como você fez pra deixar o banco tão quente — reclamei quando ele entrou. Como um perfeito adulto, a resposta dele foi me mostrar aquele dedo.

— Babaca. Eu sou um lobisomem, dãã — respondeu.

Nota: eu não ouvia alguém dizer "dãã" desde o primeiro ano do Fundamental.

O carro estava ligado, mas eu passei uns bons dois minutos olhando fixamente pro painel.

— Ei, Luke — chamei, por fim. — O que eu faço?

Eu poderia pesquisar na internet como guiar um carro, mas descobri da pior forma possível que tinha esquecido o celular em casa.

Ele me encarou e riu.

— Sério? Ok, isso vai ser louco.

Essa foi a frase mais profética que já saiu daquela boca. Eu descobri a contragosto que a) o câmbio do carro da minha mãe é tenebroso, b) o volante é tão duro quanto o leme de um navio cargueiro e c) meu irmão é um professor de bosta.

Eu não entendi muito bem o propósito da embreagem.

Acelerador: acelera.
Confere.

Freio: freia.
Confere.

Embreagem: ???
Não confere.

Talvez seja por isso que, na minha primeira tentativa, o carro deu um tranco pra frente. Luke, num gesto automático, afivelou o cinto de segurança com uma expressão tão apavorada que eu tive que rir.

Ah, também descobri que — surpresa! — você tem que manter as mãos firmes no volante. Não dá pra ficar girando ele enquanto o carro faz vrum vrum. Parece idiota mencionar isso, mas foi realmente uma novidade pra mim.

Claro que eu não virei o Baby nem nada assim, mas depois de quase meter a cabeça no painel do carro várias vezes, por pouco não bater na única árvore ali num raio de cem metros e subir sem parar no meio-fio da divisa entre a estrada e a propriedade do frigorífico, eu finalmente consegui seguir em linha reta sem nenhum acidente.

Dali pra frente, ficou mais fácil. Acho que passamos umas duas horas e meia tentando me transformar numa super motorista, mas o que saiu foi uma manobrista de carrinho de golfe.

— Eu não confiaria em você pra ser a minha motorista de fuga — confessou Luke. — Mas acho que já dá pro gasto.

Balancei a cabeça afirmativamente.

— Então eu posso dirigir de volta pra casa?

— Não! — ele gritou antes mesmo que eu terminasse de falar. — É melhor você não pegar no volante perto de tantas casas... E muros, e outros carros, e pessoas vivas.

Ri e mudei de volta para o banco do passageiro enquanto ele saía e dava a volta no carro.

— A gente pode pelo menos comprar um sorvete?

Ele sorriu com o canto da boca, o que me lembrou um pouco o Vader.

— Tá, eu passo na sorveteria, mas você compra sozinha.

— Não importa, eu vou tomar sozinha também.

Quando chegamos em casa, minha mãe ainda estava dormindo. Pretendia retomar meu plano de assistir desenhos até a hora do almoço, mas mudei de ideia quando vi nada mais, nada menos que trinta e cinco ligações perdidas do Gustavo. Merda! Será que tinha acontecido alguma coisa?

Comecei a me sentir como o garoto de Ponte Para Terabítia (acho que o nome dele é Tess, ou eu confundi os filmes?) e quase não consegui ligar de volta, meio porque meus dedos são uma merda, meio porque além disso estavam tremendo.

— Helena? — ele atendeu no primeiro toque.
— Oi, tá tudo bem? — Marchei pro quarto e fechei a porta, assim podia deitar e colocar a ligação no viva-voz. — Você me ligou um milhão de vezes.

— Você me deu um susto — ele respondeu. Não consegui identificar o sentimento em sua voz enquanto me ajeitava na cama e colocava o celular por perto. — Um susto enorme. Quando eu acordo, tem uma mensagem sua pedindo pra te ligar, daí eu ligo e você não atende. Trinta e cinco vezes. Fui pra sua casa, mas não tinha ninguém. Jesus Cristo, Helena. Eu não sabia mais onde te procurar. Achei que alguma coisa tivesse acontecido.

— Saí de carro com o Luke — murmurei, a culpa me corroendo. — Ele tava me ensinando a dirigir. Esqueci o celular em casa.

Ele suspirou.

Preocupação. Era esse o sentimento impregnado em cada sílaba que ele pronunciava. Por um lado, era tão fofo que eu queria morder a cabeça dele, mas por outro isso me cortou o coração.

— Você tá bem, então? Não sei como vocês dois sobreviveram! — Detectei um sorriso se formando enquanto ele falava.

— Tô ótima. O Luke bateu a cabeça de leve umas duas vezes, mas tá vivo também. Aconteceu alguma coisa aí?

— Fora o fato de eu perceber o quanto você é indispensável, não. Sério, você sumiu por duas horas e eu já tava reavaliando os conceitos da minha vida.

Ri. Grande piadista, esse meu baixinho e mau-humorado melhor amigo.

— Desculpa. É pra você se preparar pra quando eu morrer de verdade. — A linha ficou quieta. Achei que ele tivesse desligado. — Vader? Foi uma piada.

— Você tem um senso de humor meio obscuro, Helena. Não sei se algum dia vou entender.

Tive fisioterapia à tarde; Luke me levou junto com a minha mãe, mas insisti para que Gustavo fosse junto e entrei sozinha no consultório. Pelos testes que o médico fez, deu pra notar que os movimentos das minhas duas mãos já estavam bem comprometidos. Foi bem mais difícil apertar aquela droga de bolinha de borracha. Ele me deu exercícios para os braços e pulsos que eu tenho que fazer toda manhã e elaborou uma rotina de caminhadas, além dos remédios que provavelmente custam mais que os meus rins.

Depois que saí, meus dois parentes de sangue entraram e o outro — não de sangue, mas de história — ficou comigo na recepção. Eu estava surpreendentemente serena com tudo aquilo. Quase parecia que o pior já tinha passado, e que tudo que eu perdesse dali em diante não seria tão ruim quanto o choque inicial.

Vader segurou minha mão durante a volta pra casa e ficamos sentados na minha calçada até bem depois de escurecer. Nenhum de nós dois disse uma palavra por horas a fio, até que ele quebrou o silêncio.

— Podemos caminhar juntos. Um tempo a mais pra gente conversar todas as tardes, né?

Gostei da sugestão dele.

— Como se nós dois não andássemos sem rumo por aí o suficiente — acrescentei.

Ele riu.

— Barretos que se prepare.

Pensei na minha lista. Naquele instante, percebi que teria que levá-la mais a sério se quisesse fazer tudo o que pretendia antes de você-sabe-o-quê. Busquei a mão dele no escuro, como se fosse a única âncora que ainda me segurava a esse mundo.

Risquei mentalmente mais um item e lamentei por todas as outras coisas que nunca vou aprender. Pensando bem, agora acho que, não importa o quão longa e plena seja uma vida humana, nunca se pode experimentar todas as coisas do mundo nela. Seria injusto com pessoas como eu, não é? Mas, na verdade, não importa. O que conta é que, no fim, cada um esteja feliz com sua pequena coleção de memórias. Estou me esforçando para incrementar, diversificar e amar ao máximo a minha.

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E você? Quando chegar ao fim, gostará do que vai ver ao olhar pra trás?

Sinceramente espero que sim.

Aqui quem fala é a Helena,

Câmbio e desligo.