Antes de ELA chegar

3. Aprender a apreciar minha própria companhia


16 de agosto de 2017

Essa, na verdade, nem é a data exata. No início do mês, eu comecei a pensar em como nunca faço nada sozinha. Sempre tem meus pais, Luke, Vader ou alguém da escola. Não lembro da última vez em que dormi em um ônibus ou prestei atenção nas gotas de chuva batendo numa janela antes de hoje.

Não há um momento sequer no dia que eu possa chamar de meu; acordo sendo bajulada por alguém e isso segue assim até o momento em que vou deitar. Notei que vem sendo assim desde que descobrimos sobre a doença.

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Eu me pergunto se eles querem estar ao meu lado, ouvir a minha voz, me ver andando e aproveitar o tempo que eu tenho ou se têm medo de que eu faça alguma coisa pra me machucar — ou pior.

Não vou dizer que nunca passou pela minha cabeça (e espero que minha mãe nunca descubra isso), mas não levei a ideia a sério. Amo estar viva. Se esse é o preço, eu pago.

Estava chovendo hoje de manhã, então tive que pegar o ônibus pra escola. Não sei o que me levou a fazer isso, mas coloquei os fones de ouvido e fingi que estava dormindo quando Vader entrou. Acho que só não queria conversar.

De qualquer forma, acabei dormindo de verdade, sorte minha ele ter balançado meu ombro para me avisar quando chegamos.

Fiquei meio distante durante as aulas, também. Vez ou outra, me pegava olhando pra janela (não me culpem se eu estava cagando e andando pra matéria, eram ciências humanas) e me concentrando em ouvir a chuva. Acenava com a cabeça quando as pessoas falavam comigo — porque de repente todo mundo parecia me amar, que engraçado! Não que não falassem comigo antes, mas comecei a receber uma atenção absurda desde que as férias acabaram e não estou acostumada com isso —, mas não registrei uma palavra.

Tento não fazer sensacionalismo barato com ELA. Eu não sou extremamente corajosa nem resiliente como as pessoas me pintam, sou só eu. Não quero ser lembrada como a garota que perdeu todos os movimentos do corpo — mas talvez seja justo se lembrar de mim como a garota que muda de assunto o tempo todo e fica introduzindo subtemas irritantemente desnecessários, por isso nunca consegue terminar uma história sem contar outras mil.

Vader deve ter percebido, porque ele não ficou tagarelando sobre como o lançamento do iPhone X faz com que a Apple foda com os outros modelos pra galera comprar o novo, Justin Bieber ser um reptiliano e outras teorias da conspiração que estão em alta. Ele só ficou ali, sentado na mesa ao lado da minha. Às vezes, quando olhava em volta, eu o pegava me observando e ficávamos ali, nos olhando em silêncio, até que ele sorria com o canto da boca e voltava a prestar atenção no professor.

Gosto disso. Tanto de ele me entender sem precisar de palavras quanto de quando ele sorri assim — ele fica bonitinho. Não um bonito "galã de novela/deus grego", é só... Eu não sei. Ele fica com uma marquinha na bochecha por alguns segundos quando o sorriso se desfaz, na parte que não está coberta por essa penugem rala que ele insiste em chamar de "barba".

Quando ele começar a namorar, uma parte de mim espera que essa pessoa também repare nessas pequenas coisas porque são incríveis e fazem dele uma pessoa incrível, mas confesso que outra parte quer que ninguém mais veja — somos amigos há tanto tempo que tem certas coisas que eu quero só pra mim, pra gente. Reza a lenda que isso é ciúme.

— Quer tomar um chá lá em casa? — ofereceu quando saímos. Tinha parado de chover, mas o céu ainda estava nublado.

— Eu vou andar um pouco — respondi. Fiquei triste por negar o convite dele; eu adoraria tomar chá, mas não naquele momento. — Mas amanhã podemos fazer isso, talvez ver um filme.

— Tudo bem. Você tá legal? Quer que eu caminhe com você?

— Sim e não, respectivamente — aproveitei pra usar minha palavra favorita do dia e sorri pra ele, que sorriu de volta.

Se estava chateado, disfarçou bem. Quando ele sorri de verdade, mostra só os dentes de cima, mas quando o sorriso é falso ele abre um pouco mais a boca, como se quisesse forçar nas pessoas a ideia de que é de verdade. É mais uma das coisas que eu me pergunto se alguém mais repara.

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— Certo — concordou. — Me mande uma mensagem mais tarde, então.

Essa foi a nossa conversa. Espero mesmo que ele não esteja chateado. E, sim, ainda preciso escrever uma mensagem pra ele. Farei isso assim que terminar de escrever.

Andei em volta do quarteirão da escola e depois me afastei um pouco pelo caminho que se distanciava do cetro até que encontrei um lugar em que adoraria comer: um tal de Rock Café. Parecia super aconchegante, com alguns desenhos feitos a giz no vidro, e estava escondido entre uma loja de discos e um escritório de advocacia.

Que engraçado. Mesmo sendo relativamente perto de um lugar em que estou todos os dias há uns três anos, eu nunca passei por aqui.

Por dentro, era praticamente um museu hipster. Tinha cartazes espalhados com fotos dos Beatles, Nirvana, desenhos do DeadPool e dos Simpsons, anúncios de Woodstock e de shows antigos do Legião Urbana, além de figuras de ação. Muitas delas, todas de super-heróis. Gostei do fato de estarem organizadas separadamente, as da Marvel à esquerda e as da DC à direita. Também havia miniaturas de carros e até os utensílios de cozinha pareciam fazer parte da decoração.

No cardápio, que eu achava que ia apresentar aquelas comidas gourmet que custam mais que um rim, tive uma surpresa; a maior parte das coisas dava pra comprar com dez reais (que era o que eu tinha) se eu não tomasse refrigerante.

Sobre o balcão, foi colocado algo que se parecia com um pequeno tapete para que meu prato ficasse em cima.

Só pra constar, pedi uma "mini" pizza de calabresa por R$9,90 que quase não coube no meu estômago — a sorte é que eu sou gulosa. O único funcionário ali, que deduzi ser o dono, é um amorzinho. Pouco tempo depois que eu contei que só tinha dinheiro pra pizza, ele apareceu na minha mesa com uma garrafinha de suco — citrus punch, "porrada cítrica" em tradução livre, delicioso, a propósito — e disse que era cortesia da casa.

— Mas não conta pra ninguém — sussurrou com uma piscadela. Eu estava a ponto de chorar porque ele foi o maior amorzinho.

Falou comigo por um bom tempo sobre casualidades, filmes, livros e outras coisas, mas a conversa acabou quando mais pessoas chegaram e ele teve que atendê-las.

O ambiente tinha um quê de mágico que me fez pensar se a comida era feita por gnomos. Bem que ouvi uns barulhos suspeitos na cozinha... Talvez, da próxima vez que for lá — eu definitivamente vou voltar — eu leve Vader pra investigar comigo.

Fucei na bolsa até encontrar mais dois reais e fui pagar a conta.

— Tô bem feliz porque achei mais dinheiro — comentei. — Então eu te pago doze.

Ele fez uma careta engraçada e balançou a cabeça em negação.

— E eu tô bem feliz porque falei que o suco é cortesia — retrucou. — Você me paga dez, e eu ainda vou te devolver os dez centavos.

— Não! — Ri, mas ele não me deu opção.

— Sim! Mas você tem que voltar — brincou.

— Eu volto — prometi. — E trago mais gente pra gastar, também.

Talvez os seres humanos não sejam tão ruins. Um homem que eu nem conhecia foi tão gentil comigo sem qualquer segunda intenção — a não ser, é claro, que eu fosse lá outra vez, o que eu com certeza vou fazer.

É bom sair um pouco da rotina, caminhar sem rumo por aí. Se eu não tivesse feito isso, não teria encontrado aquele lugar e teria um motivo a menos pra sorrir hoje.

Mais tarde, caminhei até a praça e mandei uma mensagem para Luke avisando que voltaria logo. Ele está sempre em casa agora. Tenho medo de que tenha trancado a faculdade só pra ficar comigo; eu nunca me perdoaria por isso.

Além do mais, é mais fácil escrever pra ele do que pra minha mãe, que daria um jeito de rastrear meu celular e me buscaria na hora.

Me fez bem sentir o sol no rosto e ficar só ali, sem necessariamente fazer alguma coisa. Por um momento, eu era só uma menina comum brisando na praça, o que foi legal.

De repente, me lembrei de Will e de como ele não queria voltar ao lugar que mais gostava em Paris porque sabia que seria diferente; sabia que todas as lembranças boas seriam substituídas por sua frustração com a própria vida. Foi aí que prometi a mim mesma que, a partir do momento em que ELA começasse a me afetar, não voltaria mais à lanchonete de mais cedo.

Acho que precisava mesmo pensar nessas coisas. Não foi um dia muito alegre ou agitado, mas foi necessário.

Me perdoe se essa parte foi menos animada que o habitual, é só uma das vezes em que a realidade me obriga a enfrentá-la. Certo, agora eu soei menos animada ainda, mas é necessário.

Aqui quem fala é a Helena, câmbio e desligo.