Anjo da Água

Capítulo 4


A fúria dominou o corpo daquela garota. Seu punho estava fechado de tal forma que suas unhas feriram sua pele e já era possível ver um rastro de sangue escorrendo pela pele branca da menina. Ela não conseguia pensar em mais nada além de seu irmão. O tempo, para aquela garota, passou a rastejar-se. Era possível ver e até mesmo contar a quantidade de flocos de neve que caiam no couro cabeludo de seu pequeno irmão enquanto ele estava sendo levado.

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O que ela iria fazer agora? Seu corpo franzino, seus braços fracos, e sua mão ferida não seriam capazes de derrotar aquele guerreiro que destruiu a sua família. O que poderia ser feito?

Desistir?

Permitir que todos os esforços dos seus pais fossem em vão? Negar todos aqueles fatos e procurar o vizinho mais próximo de sua casa para conseguir abrigo e alimento?

Não.

Mesmo com sua pouca idade e seu pouco discernimento do mundo, ela sabia que não deveria fazer isso. Seu irmão não poderia ser levado embora, seus pais falavam para ela que se ele fosse levado, correria um grande risco de não voltar mais, quando ela perguntava o motivo eles sempre falavam: “querida, são milhares de crianças, você acha que eles conseguirão entregar cada um para as suas respectivas famílias novamente? Muitos morrerão durante a viagem, outros serão trocados ou abandonados. É só observar, eles estão evitando trabalho ao levarem todos os possíveis prodígios, quando constatarem que seu irmão não é o prodígio, eles não terão muita preocupação em devolvê-los para nós, somente os sortudos retornarão para suas famílias”.

Se ele fosse, ele não voltaria, assim como os seus pais nunca mais vão voltar. Sachiel pensou.

— Solte o meu irmão! – Ela gritou com todas as suas forças.

A ira que a garota possuía teria se transformado em coragem e lhe deu forças para ao menos tentar evitar aquilo, como seus pais tentaram. À medida que ela pronunciava essas palavras, sua mão ferida ergueu-se com a palma aberta, indicando o sinal de pare. Foi o sinal mais sofrido que ela fez. Necessitou de muita força, parecia que sua mão pesava toneladas e por pouco não conseguiu movê-la.

Entretanto, tudo aconteceu muito rápido.

Ao mesmo tempo em que a garota movimentava sua mão, uma avalanche, por trás da menina, moveu-se em direção ao guerreiro e a seu irmão, bifurcando-se apenas ao entrar em contato com os pés da garota. Aquele amontoado de neve se formara em um milésimo de segundo e, mesmo assim, adquiriu uma velocidade impressionante.

Ao ver que a neve deslizava com uma enorme velocidade, o guerreiro percebeu que cada segundo seria decisivo para que sua vida e a de Joseph fossem poupados. Se aquele amontoado de neve os alcançasse, eles seriam arrastados pela força da avalanche e provavelmente ficariam presos debaixo da neve, o que os levariam a morte dura e cruel.

Ele passou a correr com toda velocidade que poderia atingir. Porém, ao analisar aquela situação, percebeu que seria extremamente difícil manter uma boa velocidade e ao mesmo tempo carregar aquele garoto. A altura que o alude atingia possivelmente chegava aos seus ombros, porém se o alcançasse, ele certamente iria escorregar.

Existiam apenas duas opções: soltar o garoto e garantir sua vida ou continuar lutando pela sua vida e pela vida daquele pequeno menino. Por isso, vendo seu iminente fim, ele tomou a atitude que mais lhe pareceu honrada e sensata a se fazer.

Com sua mão direita, o guerreiro fincou sua lança suja de sangue o mais alto que pode em uma árvore que possuía o tronco mais grosso. Puxou o menino para mais próximo de si e os manteve preso àquela árvore o maior tempo possível. Aquilo talvez não fosse suficiente para que eles pudessem sobreviver, mas ele queria provar para si que era capaz daquilo, ele não iria tirar mais uma vida, ele não era aquele monstro que se tornara. Os impulsos da besta não tomariam conta de seu corpo novamente, ele precisava se redimir do que teria feito aos pais daquele garoto.

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Ao se sentir seguro, ele olhou para a fonte da avalanche. Certamente aquele fenômeno não era natural, a neve deslizava em direção às chapadas, era oriundo do lado oposto de qualquer relevo que pudesse cria-lo. Portanto, se não foi obra da natureza, e nenhum damaso estava por perto, existia apenas uma explicação plausível, teria sido a menina ruiva que fez aquilo. Ele tentou se concentrar um pouco mais, o que era difícil, mas conseguiu ver uma silhueta pequena, distante dele, no meio da neve.

— Agora entendo, é uma garota – ele falou com o pouco de força que ainda lhe restara.

Sachiel estava cansada, seu corpo por pouco não seria capaz de se sustentar em pé. A cabeça da menina dava inúmeras voltas, seu nariz sangrava e todos os seus órgãos se remediam dentro de seu corpo, sua pele estava muito mais pálida do que o normal e latejava muito, principalmente seu braço. O que acabara de fazer sugou todas as forças que ela tinha.

O cenário ao seu redor não era diferente, estava extremamente destruído. Inúmeras árvores foram arrastadas pela neve, apenas as mais antigas, que tinham raízes mais profundas e troncos mais grossos suportaram a tal evento. O entardecer também estava mais fúnebre. Ele era diferente. Na verdade, tudo era diferente para Sachiel. Seu aniversário, que era para ser algo feliz, se tornou uma tragédia imensurável. Sua vida nunca mais seria a mesma.

Ela se perguntou o que fez de errado para merecer tal castigo dos deuses. Teria sido uma menina má? Ela não obedeceu a seus pais o suficiente? Talvez fosse aquele enorme desejo de sair de casa. É, com certeza foi aquilo, pensou a menina.

Tudo culpa dela.

Agora ela estava fora de casa, seus pais não iriam mais a impedir de sair para brincar na neve. Eles não iriam a proibir de mais nada. Ela estava livre para ficar até a hora que quisesse fazendo bonecos e anjos de neve. Aquele guerreiro iria embora com seu irmão e ela não precisaria mais dividir seus brinquedos com ele. Ele não iria mais colocar a culpa de suas travessuras nela. Ele não iria mais infernizá-la.

A cabeça da garota doía. Sua visão estava bastante turva e foi necessário mais concentração para ela discernir o vulto de uma mulher se aproximando. Seria a sua mãe viria para cuidar de sua mão ferida? Ela agora a levaria para casa e quando acordasse, parte desse pesadelo teria acabado. Se tivesse sorte, seu irmão estaria do seu lado brincando com os seus brinquedos e seu pai estaria na biblioteca lendo aqueles enormes livros.

Sachiel sentiu uma mão macia tocando sua testa e descendo até cobrir completamente seus olhos. Por um instante ela sentiu conforto, paz e até alegria. Aquilo finalmente iria acabar. Tudo voltaria ao normal. Ela finalmente poderia terminar o dia do seu aniversário com sua família lhe abraçando e dizendo que está tudo bem.

De repente, ela não sentia mais seu corpo que estava extremamente fraco, faminto, sedento e, sobretudo, temeroso. Seu coração que antes palpitava freneticamente, agora parecia seguir um ritmo calmo. A menina não se sustentava mais.

Caiu na neve desfalecida.

☾☾☾

— Está explicado o motivo de tanta demora em encontrar o último prodígio – falou o damaso do fogo.

— O que faremos agora? Essa é a primeira vez que um damaso nasce mulher – Jordi estava temeroso, aquela mudança provavelmente ainda reservaria muitas surpresas e dificuldades para os quatro.

— Iremos a tratar como qualquer outro prodígio, ser mulher não é doença ou algo incapacitante. Se os deuses quiseram assim, assim será. – Eurípedes respondeu.

☾☾☾

Sachiel ainda estava sonolenta. Os seus olhos, ainda fechados, lutaram para se abrirem e revelar o local em que ela estava, mas suas pálpebras pesavam toneladas. Quando finalmente os descerrou, sentiu sua cabeça girando, o que fez seu estômago embrulhar. Teve ânsia de vômito e aquilo a fez cerrar os olhos novamente, para, minutos depois, tentar novamente abri-los.

Mesmo com sua visão ainda turva, suas mãos trêmulas tentaram se apoiar no local em que estava deitada. Todo o seu corpo doía como se ela tivesse sido atropelada por uma manada de búfalos ou sido agredida por algum ladrão faminto. Seus ossos estremeceram e não resistiram ao seu peso, ela caiu na cama e passou um bom tempo naquela posição até se recompor novamente.

Ela sentia medo, angústia e agonia. Aos poucos sua memória trouxe as suas últimas lembranças, um pouco confusas, mas suficientes para saturá-la de cólera. Ela queria sua mãe, se tivesse forças, iria gritar para que aquela mulher adoentada viesse levá-la embora. Uma única lágrima desceu de seu globo ocular.

Ela estava sozinha, perdida e desamparada. Aquele local em que ela se encontrava não se parecia com nenhum lugar que ela teria visitado. Provavelmente, se alguém aparecesse, ela não conseguiria reconhecer a pessoa. Todos são desconhecidos neste local. Aqui ninguém seria capaz de consolá-la, ninguém se importaria com seu destino e muito menos com sua família destruída.

Seu pai morto.

Sua mãe morta.

Seu irmão... Pelos deuses, seu irmão!

No momento em que a garota pensou em seu pequenino irmão, por impulso, levantou-se. Assim que sentiu o chão frio tocando seus pés, seu corpo cedeu. Ela caiu novamente, mas dessa vez estava naquele chão desconhecido e o barulho de sua queda provavelmente foi alto o suficiente a ponto de alguém escutar.

Ninguém veio ajudá-la.

Ela sentia-se impotente, seus pais que lutaram tanto para salvá-los se decepcionariam se a vissem naquele estado. Provavelmente brigariam com ela e a deixariam de castigo por no mínimo um mês. Nada de brinquedos, jogos ou moleza. Pensou.

Entretanto, eles não estavam lá. O que ela deveria fazer? Orou para que os deuses a protegessem e a tirassem daquele local. Mas eles eram surdos para suas orações e nada fariam para ajudá-la. Eles a ignoravam e esqueceram-se da sua miséria. Talvez eles estivessem mortos da mesma forma que seus pais estavam. Pensou.

Após uns minutos naquele chão, a garota escutou a porta rangendo devagar. Ela conseguiu se sentar e apoiou suas costas na cama. Lentamente, um garoto mais alto que ela se aproximou. Ele tinha cabelo castanho claro, seus olhos eram da cor de chocolate, os mais apetitosos possíveis, e seu rosto parecia de um anjo, os traços ainda suaves de seu rosto o tornavam uma criança bastante formosa.

— Oi – o garoto falou, ele parecia estar apreensivo, temeroso, talvez tímido.

Sachiel não respondeu, ela fitou aqueles olhos curiosos, por um momento, a garota se esqueceu da realidade que a rodeava, fazia um bom tempo que ela não via nenhuma criança além de seu irmão. Seus pais não a deixavam sair por um bom tempo, sem dúvida nenhuma aquele momento a prendeu. Ao mesmo tempo, ela tentava entender o porquê daquele menino estar lá. Na verdade, ela não sabia onde ela estava ou o que fizeram com seu irmão.

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— Você fala? – Insistiu o garoto.

— On-de es-to-u? – As palavras precisaram ser expulsas de sua boca, definitivamente seu corpo não queria a obedecer.

— Você não sabe? Estamos no forte! – O garoto se entusiasmou ao falar a última frase e passou a caminhar pelo quarto que ela estava – aqui, você será treinada com todos os outros prodígios. Mas é estranho – ele parou e levou a mão ao queixo – você não é como os outros, você tem esses longos cabelos vermelhos, com certeza você é fraca, vai morrer na primeira batalha que enfrentar.

Sachiel respirou fundo, novamente ela estava irritada, aquelas palavras a magoaram, aquele menino certamente era hostil e desagradável. Ela desejava intensamente que ele fosse embora logo.

— Eu não vou para nenhuma batalha, minha mãe vai vir me buscar – falou a menina indignada, mas a voz novamente a traiu, pois saíra mais baixo do que ela realmente queria.

— Você tem uma mãe? – Perguntou o garoto que agora estava assustado.

— Mais é claro que eu tenho. Você acha que eu nasci de uma chocadeira? – A menina falou aborrecida e revirou os olhos, dessa vez sua voz encontrou um pouco mais de segurança.

— Alguns falam que você é uma ameaça.

Outro garoto entrou na sala bruscamente, ele era um pouco mais baixo que o primeiro, mas também era mais alto que aquela menina. Diferentemente daquele, esse que acabara de entrar era careca, tinha os olhos verdes e os lábios carnudos, ele estava segurando uma tesoura e alguns papiros, parecia que ele estava ocupado, mas parou os afazeres por conta daquela visita que Sachiel não apreciou.

— Andreas, o cabelo dessa prodígio é enorme! – falou o garoto careca.

Os dois começaram a sorrir e Sachiel não entendia o porquê daquele sorriso. Parecia haver malícia no olhar dos dois. A menina tentou se levantar novamente e aos poucos ficou em pé. Os dois garotos apenas a observaram com os braços cruzados, pernas um pouco abertas e a postura extremamente ereta.

— Meu nome é Uri – falou o garoto careca – e o seu, por acaso é cabeluda?

— Sachiel.

— Pois bem, Sachiel, nós viemos resolver um problema seu.

— Que problema? – Perguntou a menina.

— Excesso de pelos – Uri respondeu – essa sua enorme cabeleira chama muita atenção de todos, se ela continuar assim daqui algum tempo eles esquecerão que nós somos prodígios também.

Andreas puxou um banco que estava perto dos três e os garotos forçaram Sachiel a se sentar nele. Não foi muito difícil, pois a garota ainda procurava se equilibrar nas suas pernas frouxas.

Uri se posicionou por trás da cadeira e segurou o cabelo da menina o mais alto que pôde. Com poucos movimentos cortou o longo cabelo da garota próximo à raiz, algo que antes parecia enormes tochas acesas, agora seria mais uma fogueira extinta por culpa de uma chuva... ou de uma tesoura.

— Apesar de você ser uma garota, se quiser ficar aqui, terá que ser parecido conosco – Uri falou com um tom de sarcasmo.

Os dois começaram a sorrir e Uri soltou a trunfa de cabelo de Sachiel. Quando os cabelos tocaram as coxas da menina, ela teve um ataque histérico. Gritou o mais alto que pôde e suas mãos tentavam alcançar os dois garotos. Balbuciava “por que vocês fizeram isso?” várias vezes, mas nenhuma dessas palavras foi compreendida por aqueles meninos.

Eles olharam assustados para a garota, seguramente sabiam que aquilo que fizeram era errado, mas não resistiram a dar as boas vindas à nova prodígio. Entretanto, não mediram as consequências, pois eles não imaginavam que os gritos seriam tão altos. O que havia de tão importante em um cabelo? Ele iria crescer novamente!

Os dois saíram correndo e os gritos da menina continuavam ainda mais altos. Aos poucos, a menina foi se acalmando e agarrou seus cabelos ruivos. Ficou bastante tempo olhando o cabelo cortado em sua mão, o que ela teria feito de mal para os dois? E justo ela? Por que ela?

Alguns minutos se passaram e um homem de cabelos negros e encaracolados entrou na sala. Ele oferecia uma ótima sensação à garota, sua face transmitia afeição e seu corpo extremamente viril imprimia segurança. O homem se ajoelhou perto da garota e pegou os cabelos de sua mão. Olhou para os lados, mas não viu ninguém dentro do quarto.

— Não se preocupe, ele nascerá novamente.

Ao falar isso, ele sorriu espontaneamente e tocou o nariz da menina com a ponta de seu dedo indicador, ela também sorriu. Pegou-a no colo e caminhou lentamente enquanto a levava para a cozinha do forte. A princípio, ela sentiu medo, mas logo se acalmou quando viu um enorme prato de comida.

Outro garoto estava sentado à frente da menina. Ao vê-lo seu estômago embrulhou. Seu corpo estremeceu só em pensar o que esse menino faria a ela. Ele sorriu de lado e continuou comendo. A comida agradou o paladar das duas crianças que se entreolhavam, sopa de frango certamente era uma iguaria para os dois.

— Me falaram que você é uma garota – o menino falou.

Os olhos esverdeados do menino a fitavam por um pequeno intervalo de tempo, ao mesmo tempo, ele levava as mãos ao seu negro cabelo liso.

— Mas você é feia – ele sorriu – não sabe que meninas usam cabelos grandes?

A garota ficou em silêncio, ela não iria participar daquilo, o que iriam cortar agora? Seus dedos? O cabelo não era mais opção.

— Essa cor do seu cabelo é interessante, eu nunca tinha visto um cabelo da cor de fogo, eu amo fogo, serei o futuro damaso do fogo, sabia? Eu e o Uri.

A garota estremeceu quando ouviu o nome Uri, ela não gostava daquele garoto. Na verdade, ela não gostava de ninguém daquele local, mas gostava da comida.

— Você não é de falar muito, não é? Meu nome é Alec! – Ao falar isso, o menino estendeu a mão para ela.

Ela não correspondeu e ele fez uma careta de reprovação, olhou para o lado e viu Melchior observando os dois. Provavelmente ele estava os vigiando para evitar um novo incidente.

— Vamos, toque e aperte minha mão! Eu não irei beijar a sua, é nojento. Irei te tratar como um menino. Se você me responder, eu até poderei ensinar alguns truques que aprendi.

Ela continuou em silêncio.

— Vamos, garota, responda! – Alec agora gritava, mas logo percebeu que não deveria ter feito isso.

Melchior, como um cometa, aproximou-se da mesa furioso e falou:

— Alec, você não terminará a refeição. Por conta de sua má hospitalidade com a nova prodígio, você irá passar três dias de advertência, já para o seu quarto!

Alec levantou-se bruscamente e olhou de soslaio para a garota.

— Você me paga – disse ele.