Eu acabei adormecendo no sofá depois de o Moacir ter me trazido um sanduíche. O almoço ainda não estava pronto, mas, pela hora, não seria mais almoço e sim uma janta. Quando acordei me descobri coberta por um cobertor e com a Titília do meu lado.

—Eu iria te acordar, mas fiquei com pena. Você dormia tão bem aí. –O Moacir disse.

—Agradeço pelo cobertor. Hoje está um pouco mais frio.

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—Não fui eu. Foi o Ricardo. Agradeça a ele.

Soltei um gemido baixo com a revelação. Tem como isso ficar mais constrangedor e estranho?

—Tem comida no fogão. Quer que esquente um pouco? –Ele perguntou, gentilmente.

—Agora não. Acho que vou tomar um banho primeiro. Tirar esse cheiro de hospital e colocar uma roupa mais confortável que esse vestido.

—Certo. Quando quiser é só falar que eu preparo algo para você.

—Obrigada.

Eu me levantei com dificuldade e busquei apoio nas muletas. Era um pouco estranho e tentei andar um pouco pela sala para me acostumar com aquilo e não cair mais. O Moacir me olhava segurando um riso.

—Que, Moacir?

—Está desfilando?

—Estou tentando me acostumar a controlar essas coisas antes de arriscar subir a escada.

—Você é meio dramática. Me dá essas muletas antes que morra empalada nessa escada.

Ele tirou as muletas de mim e me deu um ombro para apoiar na subida. Assim que chegamos ao meu quarto ele me deixou e desceu de volta para a sala. Eu cacei uma boa e velha calça de pijama e uma camisa confortável. Dane-se que uso isso de pijama. Não estou trabalhando para ter que me arrumar. De todas as formas estou indo depois para me acomodar em minha cama ou no sofá com um bom livro.

Amarrei um saco plástico no meu pé enfaixado para não molhar e comecei a pensar como poderia tomar banho me apoiando em um só pé ou com uma muleta de apoio. Não, sem chance de usar a muleta. Isso só iria me atrapalhar mais e eu não vou molhar esse treco que é de madeira e nem meu é. Agora fudeu! Como vou fazer para conseguir entrar na porcaria do chuveiro e não cair de cara no chão?

—Merda!

—Sofia, está bem? –O Animal gritou de fora. Acho que xinguei alto demais.

—Estou.

—Tem certeza?

—Não. Eu não quero passar alguns dias sem banho.

—Oi? Isso não está fazendo sentido para mim.

Eu fui até a porta e abri para ver ele. Não é muito agradável discutir com alguém e não olhar em sua cara.

—Eu disse que não seria muito agradável passar uns dias sem banho.

—E por que você passaria uns dias sem banho?

—Porque eu não faço a mínima ideia de como conseguirei me equilibrar em um pé só para usar o chuveiro.

—Use o banheiro do meu quarto.

Arregalei os olhos e até engoli em seco. Isso não pode ser o que eu acho que entendi, pode? Ele não está querendo se enfiar embaixo do chuveiro comigo, está?

—Seu banheiro? –Perguntei, assustada.

—Meu banheiro é adaptado. Não sei se já notou, mas ele tem corrimão de segurança e um banquinho retrátil para se sentar se não aguentar ficar em pé.

—Tem?

—Sofia, pelo amor de Deus, não vai me falar que nunca reparou nisso! Você limpa aquele box uma vez por semana.

Eu parei para lembrar e realmente o chuveiro dele tem um corrimão e um treco vermelho de plástico que fica na parede. Seria um banco?

—Acho que nunca parei para pensar nisso, pra ser sincera.

—Difícil acreditar vindo de você, mas vem cá que eu te mostro.

Ele esperou que eu o acompanhasse até seu quarto e abriu a porta para que eu entrasse. Me conduziu para o banheiro e mostrou como o banquinho funcionava e o corrimão que tinha ao lado oposto.

—Por que seu banheiro tem essas coisas? –Perguntei.

—Porque já precisei usar. Também tenho uma perna ruim. Não achou que eu teria um par de muletas em casa apenas para decoração, não é?

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—Achei estranho o par de muletas, mas designer costuma ser excêntrico em suas coleções. Ao menos é isso o que se vê nos filmes.

—Não eu.

—Posso usar o seu banheiro então?

—O tempo que precisar.

—Obrigada. Vou buscar minhas coisas no quarto e volto aqui.

—Tá ok. Fique o tempo que precisar. Estarei na biblioteca para te dar um pouco de privacidade.

Ele acenou com a cabeça e desceu pelas as escadas. Eu fui para o meu quarto, recolhi minhas coisas e fui para o banheiro dele. Me certifiquei duas vezes que tinha trancado a porta. Ainda não sei se é uma boa ideia, sei que posso cair e precisar de ajuda e isso só iria atrapalhar meu salvamento, mas se eu não morrer na queda, isso me dará tempo de me cobrir e evitar um constrangimento maior que tomar banho aqui.

Retirei minhas roupas com certa dificuldade e depois entrei mancando no chuveiro. O banheiro dele é mais espaçoso e isso é bom, tenho como me mexer. Liguei o chuveiro, fiz o teste, mas não me aguentei ficar em pé só com o corrimão de apoio. Puxei o banco e sentei, até que um pensamento maldito passou pela minha mente fértil e eu levantei xingando baixo.

—Merda, merda, merda, merda!

Eu fui saltitando e peguei uma toalha de rosto limpa e coloquei no banco antes de sentar-me novamente. Quantas vezes ele não deve ter ficado peladão, como estou agora, e se sentado nesse banco? Sabe-se lá Deus o que ele fez mais nesse banco e eu aqui, com minha bunda onde ele pode ter feito “coisas” não muito respeitáveis para se fazer em público. Idiota, devia ter forrado antes. Mamãe sempre me ensinou a forrar o vaso sanitário alheio e isso também devia valer para bancos de chuveiro alheios. Sei lá, vai que eu pegue uma micose, não que eu ache que ele tenha, ele parece limpinho, mas... Cruzes! Pensamento estranho.

Eu terminei meu banho, me enxuguei, sequei o meu cabelo e fui para o meu quarto. Não queria abusar e nem ficar mais tempo no quarto dele. No meu quarto terminei de me arrumar e joguei minhas roupas sujas num canto para depois eu lavar.

Sai e fui cambaleando para a escada. Eu queria descer e ir à biblioteca escolher um livro, mas eu acho que vou rolar e acabar quebrando o pescoço. Não sei como vou descer aqui com as muletas. Por que eu fui torcer a merda do meu tornozelo?

—Sofia, se quiser descer, peça ajuda. –O Animal falou, subindo.

—Eu preciso aprender uma hora.

—Precisa, mas não precisa cair para isso. Quer quebrar o pé agora?

—Não, mas também não quero ser um fardo.

—Você não é.

Ele retirou as muletas da minha mão e se abaixou um pouco para que eu apoiasse em seu ombro. Colocou a mão livre em minha cintura e me deu um apoio até lá embaixo onde me devolveu as muletas.

—Obrigada.

—Sem problema.

Ele se afastou para a cozinha e eu peguei um livro na biblioteca e voltei para a sala para ler no sofá. Eu tentei, pelo menos, mas não conseguia me concentrar com cada xingamento dele na cozinha e o barulho de coisas caindo. Larguei o livro na mesa e fui ver se ele estava quebrando tudo.

—O que está fazendo? –Perguntei.

—Tentando achar onde você guardou as coisas. –Resmungou.

—O que você quer?

—Minha panela média, milho, palmito, ervilha, azeitona.

—A panela está no armário de baixo, as outras coisas na despensa.

Ele fez uma cara não muito agradável, mas não falou nada. Se limitou a reunir os ingredientes na mesa.

—O que pretende fazer com isso? –Perguntei, apontando para as coisas.

—Empadão. O Moacir pode ser muito bom para várias coisas, mas a cozinha não é seu forte. Ainda estou com o macarrão dele grudado na boca até agora.

Eu não resisti e ri. Era verdade, o Moacir sempre deixava o macarrão cozinhar demais e aquilo ficava como um grude, uma cola.

—Você também poderia aproveitar que está de bobeira e desossar esse peito de frango. –Ele falou, colocando um prato com o peito do frango na mesa.

—Eu estou convalescendo. Achei que esse tempo seria para descansar.

—Você machucou o tornozelo e não as mãos.

Ele puxou a cadeira para mim me sentar e depois buscou um pufe com uma almofada para eu apoiar o pé machucado.

—Está no seu agrado ou também quer uma almofada para as costas? –Ele brincou.

—Não, isso está bom. Obrigada.

Ele deu um meio sorriso e voltou para a bancada da pia para fazer a massa. Para mim sobrou desossar o bicho.

—Você falou da comida do Moacir, mas você lá sabe cozinhar? –Provoquei.

—Melhor do que você. Seu último empadão ficou com a massa um pouco ressecada demais. –Respondeu, com um tom de riso.

—E você comeu tudo.

—Quando estamos com fome tudo fica bom.

—Menos o macarrão do Moacir. –Completei.

Ele deu uma verdadeira risada e concordou. Era tão bom e estranho o ver descontraído assim. Ele sempre fez piadinhas de mau gosto, mas nunca vi que ele realmente estivesse se divertindo, mas hoje estava diferente. Enquanto ficamos na cozinha conversávamos sobre livros e, às vezes, implicávamos um com o outro acerca dos nossos dotes culinários. Ao contrário das outras vezes, dessa vez foi sem ressentimentos, sem maldade. Apenas piadas com um tom de ironia que nos fazia rir.

—Agora é só esperar até dourar. –Ele falou depois de colocar o tabuleiro da empada no forno.

—Espero que fique bom. Eu estou com fome.

—Vai ficar.

Eu o olhei e ele me olhou de volta. O assunto morreu de repente e nós ficamos num silencio desconfortável. Eu sinceramente não sabia como continuar o assunto.

—Como está seu tornozelo? –Ele perguntou, após uns momentos.

—Está bem. Só dói quando eu mexo.

—Vai levar uns dias até desinchar e ainda vai ficar dolorido.

—Você já torceu o tornozelo?

—Já fiz pior que isso.

—Por isso seu banheiro é adaptado?

—Sim. Houve uma época que eu nem andava direito. Precisei daquilo e alguns meses de fisioterapia.

—O eu aconteceu?

—Algo que não gosto de lembrar. –Ele falou, desviando o olhar.

—Você está bem agora? –Perguntei, mudando o rumo da conversa.

—Acho que nunca vou ficar, mas aprendi a conviver.

Eu preferi não forçar mais para ele falar. Não queria destruir o clima bom que havia se formado e sugeri que ele ligasse o rádio. Ele me olhou, bufou um pouco, mas ligou. Zombou de mim por cantar mal, mas voltou a sorrir.

Depois de uns minutos o empadão ficou pronto e ele me serviu um pedaço e outro para ele antes de se sentar na cadeira de frente para mim. Eu fiquei olhando o pedaço de empada sem acreditar que foi ele que fez. Não iria dar meu braço a torcer, mas o cheiro era ótimo.

—Não vai comer? Eu não envenenei. –Ele brincou.

—Sem laxantes? –Brinquei.

—Sem laxantes.

—Vamos então.

Eu provei e, puta que pariu, o que esse cara colocou nisso? Tudo bem que comida quente geralmente é melhor, mas o recheio desse empadão é delicioso e sem contar com a massa fina.

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—Onde aprendeu a cozinhar assim?

—Tenho meus truques.

—Sério, onde aprendeu isso? Você não tem o jeito de quem cozinha.

—Minha mãe era cozinheira e meu pai não achava uma vergonha que um menino aprendesse a arte de se virar em um fogão.

Tá, perdi a conta de quantas vezes o meu queixo caiu só hoje. Ele agora vai falar da mãe? Dessa vez fiquei sem palavras. Não consigo imaginar ele criança e aprendendo a cozinhar com a mãe.

—Eu devia ter 9 ou 10 anos quando fiz meu primeiro empadão. Melhorei consideravelmente desde o primeiro. –Ele falou.

—Você precisa me passar essa receita. –Pedi.

—Não é nada de diferente. É a mesma que você usa.

—Por que então não fica igual?

—Por que eu cozinho melhor que você. –Se gabou, com um sorriso.

—Desse jeito não vai nem mais precisar que eu cozinhe.

—Ah, vou sim. Eu te pago para não ter que fazer isso, por isso, não se acostume.

O Moacir chegou do mercado esbravejando e carregado de bolsas, mas parou e colocou o sorriso de psicopata na cara ao nos ver.

-Vocês não me esperam não? –Ele brincou.

—Depois de você quase ter nos matado com o seu macarrão? Não. –O Ricardo brincou.

—As compras podem esperar. Não é todo dia que eu tenho o privilégio de comer a famosa empadão. –O Moacir falou, largando as bolsas na bancada e se sentando entre nós para pegar um pedaço de empada.

Eu e o Ricardo permanecemos calados a partir daquele ponto e o Moacir nos olhava com um risinho na cara. Queria que ele tivesse demorado mais no mercado.

Continua.