Os dias passaram rapidamente. Cerca de uma semana e minha mãe não melhorava, como também não noticiei a família da minha esposa. Medo dos julgamentos, talvez...

Recordo o amanhecer nublado de 26 de setembro, o dia da visita da enfermeira e, por planejada coincidência, um dia para a seleção dos empregados. Desiludido, levantei, embora o meu corpo não quisesse. A angústia em minha alma resplandecia em meu rosto inchado pelas lágrimas involuntárias sobre como tudo parecia perdido. Entretanto, religiosamente, eu rezava noite após noite para que minha querida esposa não estivesse morta.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Passei o batom, a base, aquela maquiagem. Minha amiga monitorava, explicando que logo eu teria que fazer tudo sozinho. Gradativamente, restavam apenas os olhos avermelhados. Eu desaparecia lentamente em frente à cândida penteadeira de formas antigas. Bochechas coradas, maçãs afinadas, eram os olhos que mais me surpreendiam. Apesar de não ser nada forçado, ficou indescritivelmente diferente de mim. Eu perguntava “Onde estava Jorge?”. Não estando aqui, sucumbiu ao sofrimento, certamente.

As esquinas ficavam distantes, enquanto o carro se distanciava sem orientação. Sonolento, evitei dormir, temendo desconstruir o reboco responsável por ocultar minha identidade. Algumas horas na estrada e reconheci a antiga mangueira que indicava o quanto estávamos perto.

Apreensivo, somente na noite do funeral de meu pai, eu atravessei os altos portões esculpidos com anjos daquele peculiar lugar.

Cumprimentado a minha amiga, percebi o estimo no olhar do motorista, enquanto segurava a porta gentilmente para que pudéssemos descer. Desprezível. Forçando o sorriso, tentei demonstrar simpatia, embora minha expressão denunciasse o nojo pelo velho senhor.

Próximo à entrada, irregularmente estacionado naquele jardim, estava o carro vermelho de Eduardo. Eu não queria acreditar, todavia havia memorizado a placa para encontrá-lo quando nos perdíamos no estacionamento do shopping. Ele poderia ter emprestado ou abandonado para trás. Ele não esteve em minha casa e não sequestrou Oríntia, pois residia no Sul do Caribe.

Notando minha apreensão, minha amiga segurou meu pulso, induzindo-me a continuar. Broqueando entredentes, fitava-me de esguelha, apesar de seguir “naturalmente”:

— Não estrague tudo!

— Ele está aqui... – Retruquei, desfilhando daquele punho firme enlaçando ao meu pulso, embora não quisesse machucá-la ou demonstrar ingratidão.

— Sendo assim, ela também, não?

Ansioso, segui contra minha vontade. Recolhendo o casaco marrom depositado sobre meus ombros, quando entrei na velha mansão barroca, a desconfiança do pequeno empregado era evidente. Eu não tinha traços tão femininos, era tudo culpa daquele excesso de maquiagem. No entanto, eu também não detinha músculos definidos e nem nada tão másculo.

Neste momento, ainda não havia descoberto o motivo que levou a minha esposa me escolher. Eu não era atraente, talentoso, decidido, nem tinha qualquer característica que justificasse um amor, paixão ou algo equivalente.

Subindo à escadaria circular, sentada a poltrona tricotando, encontramos a senhora no primeiro quarto à esquerda onde o piso ainda era frisos de canela unidos pelo óleo de baleia.

Cumprimentou-nos sem levantar, somente repousando os materiais sobre uma mesa do lado esquerdo do seu assento. Emília, já acostumada, tirou os materiais para medir a pressão, diabete e outros exames rotineiros. Tateando a mesinha, esta pegou os óculos, levando-os ao rosto olhando diretamente para mim:

— Que menina adorável!

— Minha prima, senhora Ivanhoé. – Apresentou-me naquela inata felicidade cotidiana.

— Sente-se em algum lugar, por favor, jovenzinha. – Seguindo a recomendação, sentei em uma das grandes cadeiras brancas daquele cômodo circular mobiliado de móveis antigos. As sirenes de diversos telefones eram incansáveis, ainda assim, os moradores daquela moradia pareciam desfrutar como se fosse canto de passarinhos.

— E como estão as coisas, senhora? – Perguntou minha colega, tentando encontrar uma brecha para o meu caso.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Minha filha, - Suspirou a idosa, encarando o aparelho preto, cujo velcro era envolvido ao seu braço para verificar a pressão. – Estes dias, Eduardo deu abrigo a uma colega de infância e ta sendo um problema, pois eles sempre brigaram e não compreendo porque ele a trouxe para morar nesta mansão.

— Então o Eduardo está por aqui?

— Sim. – Suspirou pesadamente antes de continuar. - Chegou tem uma semana, mas já tem a passagem de ida comprada. Todavia, parece que aconteceram imprevistos... Além do falecimento da nossa governanta, uma moça tão jovem, bonita, dedicada... Preciso encontrar alguém logo para substituí-la, mas não acho que conseguirei. - Olhando para minha direção, continuou de forma brusca. – Você trabalha ou só depende dos outros?

— Trabalho sim. – Respondi, sem graça, sendo surpreendido enquanto distraidamente buscava algum indício de algo. Nada tão calmo. Rostos apreensivos e atentos a qualquer movimento. E o telefone permanecia de modo insistente, respirando por contados minutos.

— É uma pena. Tenho a impressão que está casa ficaria ótima em suas mãos...

— Não, obrigado. – Continuei, desculpando-me.

— Acredito que seria uma grande oportunidade se você participasse da seleção amanhã, afinal, aquele emprego te paga tão mau. – Disse minha amiga, aproveitando a situação. Contudo, eu não queria permanecer ali, aquilo estava tão errado de tantas formas. Eu apenas ambicionava fugir rapidamente.

— Como sabe da seleção de amanhã? – Interrompeu um pouco chateada, mantendo a calma voz rouca. - Não divulgamos. Não queremos outros loucos vagando por estes corredores, causando devastação de vidas.

— Foi... Senhora, eu não estou envolvida com “aquilo”. Uma tragédia, eu admito. Contudo... – Baixando o olhar para o monitor, então realmente algo acontecia por ali, certamente relacionado ao sequestro da minha amada. Como não poderia perguntar, uma investigação poderia ser bem sucedida tendo a lembrança do crime tão recente. O telefone parava de tocar, certamente, retornaria em seis minutos exatos como das outras cinco vezes. Arriscando o olhar para fitá-la, repreendeu tendo o cenho franzido como uma mãe preocupada. – Eu não acho que você deveria retornar ao álcool.

— Então foi ele? O moleque...? – Revirando os olhos, batia a ponta dos dedos ansiosos contra o braço da cadeira como obrigada a concordar. – É... Acho que a jovem Emília tem idéias sensatas. – Retornando a visão para mim, prosseguiu. – Poderíamos te pagar o dobro.

As duas voltaram a papear numa amena discussão. “Moleque”. “Ele”?. Seria o garoto da entrada? Preocupado, meu coração palpitava em desespero ao ouvir os pesados passos contra o solo do corredor. Temia o aparecimento do meu amigo. Então, realmente minha esposa estava aqui? Apesar da dor de cabeça, era meu dever aproveitar as poucas horas da consulta e resgatá-la.

Tinha vergonha da saia que trajava e aquela maquiagem me fazia querer espirrar. Não! Não. Respirando fundo e portando o mais delicado sorriso forçado, pedi carinhosamente:

— Eu gostaria de ir ao banheiro... Poderia me retirar por um momento?

— Claro, minha querida. Fica ao final do corredor.

Minha amiga permanecia com a pequena maleta, utilizando a aparelhagem para examinar a adorável idosa. Imediatamente, arrisquei-me pela extensa residência.

Muitas portas de madeira em cada corredor e, para a minha surpresa, nenhuma estava trancada ou interditada por qualquer empecilho. Comecei a espionar o conteúdo, sendo todos quartos vazios e mobiliados. Onde estaria o banheiro? Onde estaria Oríntia?

Aquela peruca apertava meu crânio e o espartilho dificultava minha respiração. Contudo, o rosto da minha amada me concedia a força necessária para prosseguir naquela desconhecida floresta em que todos eram meus predadores.

Não sei se foi sorte, porém a mansão barroca aparentava ter muitos poucos empregados. Os grandes móveis imóveis, provavelmente acumulados por algumas gerações, pareciam ter vida e me observar, condenando-me por aquela invasão.

Subindo outra escadaria, comecei a encontrar carrinhos de brinquedos pelo chão. O primeiro foi um que lembrava uma Ferrari vermelha como meu rosto corado, por reconhecer que a desagradável presença do meu amigo se aproximava.

Eu não queria encontrá-lo. Ainda não era o momento. Contudo... Minha esposa poderia está ao seu lado para o meu desespero. Poderia está em seu quarto como a minha colega de faculdade havia explicado mais cedo. A quantidade de brinquedos aumentava na proporção do meu cuidado para não tropeçar.

Outro extenso corredor com 14 portas paralelas em pares de sete assim como o anterior. Eu só gostaria de encontrá-la e fugir dali rapidamente. Ela deveria está trêmula e assustada que choraria ao meu peito agradecendo eternamente.

Havia um cheiro delicioso me seduzindo. Resolvi segui-lo e me assustei com a conversa vinda de um dos quartos.

— Para matá-lo, devemos imobilizá-lo para depois quebrar seu pescoço rapidamente. Depois deixamos de cabeça para baixo para o sangue escorrer e só assim arrancamos a cabeça fora. Lógico que faça isto distante, pois imagine como seus filhos ficarão tristes?

— Não, ele não tem filhos. – Respondeu um homem através de um confortável riso, divertindo-se com a situação. – É apenas outro jovem sonhador que não significa nada para o mundo.

— Ah, e aquela moça enfurecida que vagava pela mansão?

— Ori... Espere...