Lorena

Depois de esconder o amuleto com os outros objetos, coloquei a tábua do assoalho de volta no lugar. Tentei disfarçar a diferença de altura dela para as outras com um pequeno empurrão. Depois, voltei a cama pro lugar, escondendo a falha no piso de madeira. Me levantei e troquei logo de roupa, para as roupas gastas e confortáveis que eu tinha usado mais cedo pra pegar mariscos, me sentindo aliviada. Chutei as novas para debaixo da cama. Esperava que, se Dorothea não as encontrasse, não me obrigaria a usar elas de novo até o próximo solstício. Isso se elas ainda servissem. Na mesma hora, um gato pulou para a janela, se equilibrando sobre a largura da parede, e miou para mim.

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Era Damon, meu gato de pelos brancos e manchados de preto. Seu olho azul tinha uma mancha preta ao redor, enquanto o esquerdo era dourado, e as pontas de três das suas patas tinham meias escuras. Seu corpo também era marcado por antigas cicatrizes de brigas contra outros gatos, cães e qualquer animal que o olhasse meio torto.

— Damon, você veio dormir em casa! — Acariciei sua bochecha.

Ele subiu pelo meu braço e se empoleirou sobre os meus ombros, sua posição favorita.

A tempestade que tinha se formado mais cedo estava chegando perto da ilha, e o vento estava feroz. A casa de Dorothea não era muito longe de um rochedo alto, onde as ondas costumavam se jogar, então eu dormia ouvindo o mar bem alto todas as noites. Mas naquela madrugada ele mais parecia rugir. Com certeza, estar em casa durante a noite era muito mais seco e quentinho, e Damon sabia disso. Mesmo sendo meio selvagem.

Havia vários gatos que vagavam pela ilha, desde que as pessoas eram capazes de se lembrar. Mas eles nunca se aproximavam muito de ninguém, não aceitavam comida, nem deixavam ninguém passar a mão neles. Menos Damon. Ele me seguia para todo lado na maior parte do tempo, e outras vezes desaparecia misteriosamente. Eu não me lembrava do motivo disso. Só sabia que, desde que tinha acordado depois do incêndio, sem nenhuma memória, o gato me acompanhava. Eu ainda me lembrava de Dorothea tentando me explicar que o nome do bicho era Damon, e que nós éramos amigos.

Cocei sua cabeça e me enfiei debaixo dos lençóis.

— Hora de dormir.

Damon miou e se aninhou sobre o meu cabelo, deitado no travesseiro.

Então, eu puxei Damien de debaixo da cama: era meu gato branco de pelúcia, com seu rabo meio chamuscado na ponta, que era um dos poucos objetos que tinha restado do meu passado. Ele estava encardido pelo tempo, mas principalmente pelas cinzas do incêndio. Assim como Damon, eu levava Damien comigo quase sempre que saia de casa para brincar... E dormia sempre ao lado dele.

Puxei as cobertas até o queixo e abracei o gato de pelúcia. De barriga cheia, não demorou pro sono me encontrar. O vento fazia as janelas sacudirem com força e, às vezes, baterem umas nas outras ou na parede. Pensei que deveria fechá-las, mas não consegui me mexer mais. Como se minha vontade não tivesse mais o poder de mexer meu corpo. Eu me lembro bem de, em algum momento entre estar acordada e dormindo, tudo ter se calado, — o mar, o vento, as janelas. Como se o mundo tivesse sido colocado numa caixinha. E me lembro de, com meus olhos meio fechados, ver uma névoa densa invadir meu quarto. Meus olhos estavam pesados e lutavam contra a minha vontade de acordar, por mais força que eu fizesse para me mexer. Pelos Espíritos, o que estava acontecendo?

Apesar disso, eu ainda era capaz de enxergar alguma coisa. E, como me deitava sempre virada para a janela, vi, através da névoa, alguém se empoleirar no peitoril e se inclinar para dentro. Era um vulto pequeno no centro na neblina densa. Eu mal dava conta de ver seus contornos, como se ele estivesse se dissolvendo, virando fumaça. Já seus olhos eu via com muita clareza: eles brilhavam, prateados como a cor da lua, como se tivesse uma chama por trás deles. Eles refletiam a luz mesmo no escuro, como os olhos de Damon.

O que quer que fosse, o vulto se debruçou sobre mim bem devagar. Estendeu suas mãos agitadas na minha direção, como se algo naquilo tudo o deixasse muito desconfortável, e começou a tatear minhas roupas, procurando os bolsos debaixo das cobertas. Quando encontrou o primeiro ele enfiou a mão, mas não tinha nada. Então, foi atrás do outro.

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O bolso em que antes eu tinha guardado meu precioso amuleto.

Queria gritar. Tentei me virar para olhar mais de perto quem era, quem estava querendo meu amuleto, mas meu corpo continuava sem se mexer, apesar do turbilhão na minha cabeça. Senti quando ele puxou, assustado, a mão para fora do outro bolso, também vazio. Agora eu podia vê-lo outra vez. Parecia estar atento a algo que eu não podia ver, até eu perceber que ele não estava prestando atenção em nada que via. Mas em algo que ele ouvia.

Não demorou pra eu também ouvir os passos leves subindo o corredor, vindo pro meu quarto. Provavelmente era Dorothea voltando do festival. O vulto olhou para mim, para a porta, e de volta para mim, esfregando suas mãos vazias. Então, quando a maçaneta girou, ele desapareceu rapidamente pela janela que tinha entrado, levando embora a névoa com ele.

Quando Dorothea chegou, avaliando o quarto com a luz fraca de uma lamparina, era como se o vulto jamais tivesse estado lá. Meu corpo petrificado parecia dormir, meus braços ainda estavam em volta de Damien – como todas as noites – e Damon nem tinha se mexido, como se não precisasse temer aquilo, nem seus estranhos olhos brilhantes.

A porta se fechou e ouvi os passos de Dorothea seguindo na direção de seu próprio quarto, levando a luz com ela. Finalmente meu corpo pareceu voltar a responder. Eu conseguia mexer meus dedos, depois minhas mãos, e por fim meus braços, que eu joguei por baixo do estrado da cama. Tateei o chão até achar a fresta no assoalho, onde enfiei meu dedo e puxei a tábua solta para cima, ainda com os braços tremendo, meio dormentes. Enfiei a mão no buraco e senti a pedra fria e polida que eu envolvi com as mãos. Puxei o amuleto para cima e o encarei, só para ter certeza de que era real. Por algum motivo, aquela coisa tinha me visto pegar o amuleto no templo e sabia onde eu tinha guardado ele antes de partir. Era difícil saber se de fato o Espírito— sim, aquele tinha que ser o Espírito que eu jurava que não existia de verdade – não ter encontrado o amuleto fora uma questão de sorte ou azar.

Depois disso, foi difícil voltar a dormir...

***

A noite de solstício era muito divertida, mas a manhã seguinte tinta sempre um gosto amargo para mim... Todos os anos eu esperava que, por ser a data certa, meus pais tentassem falar comigo. Não era incomum que, no solstício, pessoas contassem sobre ter sonhado com amigos ou parentes queridos que já haviam morrido. Às vezes, os sonhos envolviam conversas compridas, outras, apenas um sinal ou sensação calorosa e familiar. Mas, como nos anos anteriores, eu não recebera mensagem nenhuma. Nem um sonho, uma lembrança ou mesmo uma sensação. Nada. Cada solstício que se passava só me fazia acreditar menos nas tradições.

Por causa disso, as frutas tinham gosto de terra, o pão parecia um pedaço de esponja na minha boca, e a ideia de comer era deprimente. Pra falar a verdade, eu nem estava com fome, por mais que Dorothea insistisse para eu comer alguma coisa. Era sempre assim no dia seguinte ao solstício: um dia de luto. Quando amanhecia, e os espíritos partiam sem fazer contato, só restava saudade e o gosto amargo de que nada seria como antes. Nunca mais.

Mas, antes... Antes do quê? Desde o incêndio, era como se minha vida de antes não tivesse nem existido. Como se tudo tivesse começado quando Dorothea me encontrou, sem nem um machucado, muito longe de casa, e sem me lembrar de nada dos cinco primeiros anos da minha vida. No começo, quando fui morar com Dorothea, eu via imagens dos meus pais e a ouvia falar sobre eles, mas para mim eles não passavam de estranhos. Quando me perguntavam se eu sentia falta deles, eu dizia que sim, porque é o que esperam de você. Me olhavam torto se eu não dizia isso... Esperam que você ame seus pais, que fique de luto pela morte deles. Mas eu não sentia nada. Eu só me sentia culpada por ter esquecido das pessoas que deveriam ser as mais importantes da minha vida. Os adultos me julgavam por ter esquecido. Que absurdo, eles diziam, alguém esquecer sua própria família. Como se eu precisasse da ajuda deles pra sentir que me faltava um pedaço importante...

Com o tempo, eu aprendi a amar meus pais que tinham morrido. Ou as histórias sobre eles. Antes, eu podia ficar horas ouvindo falar sobre o meu passado, sobre minha família, construindo uma imagem mental do que eu tinha perdido. Como se pudesse tapar o buraco na minha cabeça apenas com essas palavras. Mas, agora, eu não tinha mais tanta certeza... Eu tinha me cansado de ouvir os outros contarem a minha história, e só pensava em ter minhas lembranças de volta. Mesmo sem saber se isso era possível... Eu só queria me lembrar.

Apesar de ainda gostar de ouvir histórias.

E, nesse dia de luto, mal se falava... O silêncio dominava. Mas ficar entre quatro paredes lamentando sabe-se lá o que eu perdera – e que eu não sabia – ia acabar me sufocando. Vesti minhas roupas mais quentes, coloquei o amuleto no bolso novamente – poderia dar uma olhada melhor nele sem Dorothea na minha cola, perguntado se eu tinha comido direito –, Damon pulou em meus ombros para me acompanhar, e saí. Era assim, ano após ano. Pelo menos Dorothea nunca questionava meus motivos: ela tinha seus fantasmas também, e seu luto de viúva para viver.

Agora, passando pelo meio da vila, eu só queria ser deixada em paz. Se pudesse caminhar sem encontrar ninguém, seria um sonho. Havia mais um motivo porque eu odiava aquele dia: era o dia em que eu tinha sobrevivido. O mesmo em que Dorothea tinha me encontrado, viva. Mesmo agora, depois de sete anos, as pessoas ainda me olhavam torto como se eu tivesse voltado dos mortos. Mal podia esperar pra ficar sozinha... Eles não gostavam de estar perto demais de mim, mas não se cansavam de me encarar.

Além do mais, eu não me parecia com eles. Enquanto os ilhéus tinham olhos verdes, cabelo castanho médio e a pele que costumava queimar no sol, eu tinha olhos e cabelos escuros ondulados, e a pele já morena, que não clareava nem escurecia mais. Assim como minha mãe fora, e minha avó antes dela. Eu me parecia, todos diziam, com o povo do Oeste, do continente. Pelo menos Ed tinha tentado transformar “Lóris” em um apelido divertido. Para os outros eu só parecia estrangeira, de fora.

Já Ed e Alice eram meus amigos desde antes de tudo, pelo que diziam. E continuavam sendo mesmo que eu não me lembrasse disso. Então, eles me conheciam o bastante para não virem me procurar hoje. Os dois sabiam que eu preferiria ficar quieta, na minha.

Assim que saí dos limites do povoado, percebi que minha respiração estava virando vapor. E, como prova maior de que o inverno estava chegando, minha nuca desprotegida – pois meu cabelo era curto e costumava ficar preso para trás – só continuava quentinha por causa do corpo de Damon, sobre meus ombros. Segui uma trilha fraca até o alto da ilha, uma região coberta de floresta. As copas das árvores filtravam a luz da manhã. Sentei-me numa pedra mais alta, me escondendo entre as folhas, mas ainda conseguia ter uma visão das praias e do mar cor de jade a perder de vista. Tirei o amuleto do bolso e comecei a analisa-lo.

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Tinha a forma de um animal, eu tinha certeza. Mas qual?

Eu não tive muito tempo para descobrir, porque logo ouvi uma voz muito fraca. Eu não sabia com certeza se estava longe demais ou se era apenas um sussurro. Primeiro, pensei que alguém estivesse me procurando. Talvez Dorothea, ou um de meus amigos. Mas, pensando bem, não se parecia com a voz de nenhum deles. Eu também não tinha ouvido nenhum barulho de gente andando por perto, como passos nas folhas secas.

— Oi?

Ninguém respondeu.

Mesmo assim, eu escondi o amuleto no bolso só para não correr o risco de ficar sem ele também. Se Ed e Alice tivessem contado pra ela...

A voz continuava a chegar até mim, mas misturada com o barulho das folhas, dos pássaros e dos insetos. Eu tinha que prestar atenção pra não a perder “de vista”. Ia detestar ser pega de surpresa por isso.

Me levantei, olhando ao redor. De onde ela estava vindo? Segui na direção do som, tentando não fazer barulho. Se fosse Dorothea, eu queria encontrar ela antes que ela me encontrasse. Se fosse mesmo ela, eu poderia até tentar esconder o amuleto debaixo das folhas secas e voltar para busca-lo depois. Segui até um lugar onde as árvores ficavam mais distantes umas das outras, e havia uma campina bem iluminada. Aqui, o chão estava coberto de ervas rasteiras e flores, ao invés de folhas secas. Pareciam as papoulas que Dorothea usava pra fazer remédios, só que completamente brancas.

No centro do campo havia um menino. Ele colhia as flores e as colocava nas dobras de suas roupas, como um bolso improvisado, na falta de lugar melhor. Ele não devia ser mais alto do que eu, mas tinha os cabelos brancos como os de um velho, cobertos por um capuz. Sua roupa era uma espécie túnica com um botão grande no ombro, e seu tecido acinzentado parecia macio e gostoso. Toda a barra da roupa era bordada com linha colorida, mas desbotada, formando desenhos, de um jeito que eu nunca tinha visto. Não era a roupa de um pescador, disso eu tinha certeza. Nada que soubéssemos fazer teria um acabamento tão... diferente. Ele não era daqui – o que era óbvio. Eu conhecia todas as outras crianças da ilha, e ele não era nenhuma delas. Eu me lembraria de alguém de cabelos e pele tão claros, num lugar onde todos uma hora ou outra se bronzeavam ao pescar em mar aberto.

Comecei a me aproximar quando pisei num galho seco que se partiu debaixo do meu pé. O som chamou a atenção do menino na mesma hora. Primeiro, ele apenas ficou parado, e bastante confuso. Assim como eu quando cheguei, ele devia ter pensado que estava completamente sozinho. Depois levantou seu rosto, me procurando. Quando me encontrou e me encarou, eu vi seus olhos que tinham estado escondidos pelo capuz. Eles eram grandes e brilhantes, e refletiam a luz do sol como espelhos prateados. O mesmo par de olhos que tinha invadido meu quarto na noite anterior. Mas gora eles não me assustavam mais. Dessa vez, eles pareciam algo real, de alguém real. E, mesmo assim, não dava para negar que aqueles olhos, que se pareciam muito com os de um animal – com pupilas estreitas e íris enormes – eram de um Espírito. Devia ser o Espírito do templo.

Quando me viu, o tecido que segurava escapou de suas mãos, e todas as flores caíram no chão. Ele não parecia assustado, como quando tinha ouvido Dorothea voltando para casa, mas parecia surpreso.

— Lorena...?

E então, quando percebeu que tinha me chamado pelo nome, ele cobriu a boca com as mãos.

— Você sabe meu nome?

Mas o Espírito não respondeu. Ele se desmanchou no ar, como uma espiral de fumaça branca, deixando todo o resto pra trás.

Fiquei imóvel por um momento, pensando no que tinha acabado de acontecer. O amuleto pesava no meu bolso. Talvez, só talvez, eu estivesse me sentindo um pouco mal por tê-lo roubado. Mas eu não tinha culpa, né? Eu nem sabia que o Espírito era de verdade. E agora me sentia mal também por ter assustado ele.

Andei com cuidado até o lugar onde o Espírito tinha estado. Se a campina fosse sagrada também, talvez eu não devesse estar pisando na grama, certo? Existia algo como flores sagradas? Mato sagrado? Pensar nisso estava me deixando maluca. Eu já tinha desrespeitado seu templo... Não precisava de mais um motivo para o Espírito me odiar. Encarei o montinho de papoulas que ele tinha deixado para trás, depois de desaparecer às pressas. Parecia... importante. Por quê mais um Espírito faria algo tão... mundano? Algo como colher flores? Espíritos não faziam remédio como Dorothea. Né?

Eu não tinha certeza de mais nada.

Só achava que lhe devia desculpas. Devia levar as flores de volta e pedir desculpas.

E, talvez, o Espírito não me amaldiçoasse por ter roubado sua preciosa oferenda.

Ah, eu estava tão ferrada...

Nas histórias antigas, os Espíritos costumavam se zangar por muito menos. E, nessas histórias, mortais atrevidos acabavam mortos. Ou pior...

Já pensou se Dorothea descobrisse como eu tinha desrespeitado os Espíritos? Ela ia me matar...

Sacudi minha cabeça. Não era a hora de perder a linha.

Me abaixei e Damon pulou de meus ombros, insatisfeito com toda minha agitação. Comecei a juntar todas as flores já colhidas e as guardei numa trouxa que improvisei com minhas roupas de frio. Não queria que elas acabassem amassadas, então tentei não apertar demais nem sacudir enquanto descia de volta para o povoado, que ficava no meio do caminho para a Praia Velha. Seria bem mais rápido se pudesse cortar por dentro do lugar, mas não queria correr o risco de alguém me ver e fofocar para Dorothea para onde eu estava indo, então tive que circular todas as casas por fora, para evitar olhares intrometidos.

Eu só torcia para que a maré ainda estivesse baixa, e o nível da água abaixo das escadarias do templo, senão seria impossível entrar. Consegui dar a volta na vila sem nenhum acidente, e só quando estava quase chegando percebi que Damon me seguia, bufando e torcendo sua cauda espetada pra cima. Gato mal-humorado.... Suspirei de alívio ao chegar aos rochedos da praia e ver que a maré ainda estava baixa o bastante para eu poder subir as escadas do templo. O mar já tinha engolido os primeiros degraus, o que não me dava muito tempo para chegar até lá. E significava que eu teria que me molhar. No fim, me arrisquei a descer as rochas, mesmo com apenas uma mão para me apoiar. Foi quando viu o mar que Damon me deixou para trás, chiando, e correu na direção oposta. Não sabia se era coisa de gato, mas ele nunca se aproximava demais da água. E, considerando o frio que fazia e o vento forte, eu também não deveria.

Andando entre as rochas, pisei em poças d’água algumas vezes, escorreguei outras, e agora minhas mãos e pés estavam molhados e gelados antes mesmo de eu chegar ao mar. Seria uma boa hora para descobrir o que raios eu tinha na cabeça e voltar para casa. Mas eu já estava chegando mesmo, e já estava molhada, então o que custava botar os pés na água e subir as escadas, né?

Logo eu estava na frente das portas altas do templo, das cabeças de tigre de metal com seus dentes arreganhados, mas, quanto a abri-las... Onde estava minha coragem toda de antes?

— Ei, garota, vai entrar ou não?

Dei um pulo de susto e soltei um grito agudo, olhando em todas as direções e quase jogando todas as flores pra cima.

— Q-quem falou?

— Eu!

Olhei para o meio das portas, aflita.

— E-eu?

— É, eu — respondeu a cabeça de tigre — Anda, não temos o dia todo.

— É, não temos o dia todo! — Continuou a outra cabeça, a da direita, que falava enrolado por causa do aro na boca — Se não bater, ninguém vai abrir a porta.

— E se não vai entrar, pode ir embora. Nosso mestre é muito ocupado...

— Espera, quem?

— Nosso mestre — as duas responderam juntas.

— Que... mestre?

Por que você quer saber? Devia sair correndo daí agora! As estátuas estão falando com você!

Elas me encararam, confusas, e depois se entreolharam acusadoramente.

— Vocês estão falando do Espírito do templo...?

Mas nenhum deles me ouviu

— Fecha a boca, você fala demais! — Acusou a da esquerda.

— Eu? Foi você quem deu com a língua nos dentes primeiro! — rebateu a da direita.

O outro abriu a boca e arregalou os olhos antes de falar:

— Você é tão insensível! Sabe que não posso mais morder minha língua desde que perdemos nossos corpos.

Perder os corpos?

Santuário, o Espírito tinha castigado eles também?! Tinha prendido os dois naquele lugar?

Dei um passo pra trás, sem me virar, pensando em sair dali de fininho.

— Quietos! — Esbravejou uma voz fina de dentro do templo.

Logo as portas se abriram devagar, apenas um pouquinho. Mas o bastante para eu ver os enormes olhos prateados atrás delas.

— Por favor, entre. Não ligue para as aldrabas... Eles... Um e Dois costumam... discutir muito um com o outro. A culpa não é sua.

As estátuas – aldrabas, me corrigi –, que agora tinham nome, resmungaram uma para a outra. Mas, apesar de suas caras feias, me deixaram entrar.

Quando abri a porta, com o coração acelerado, não havia mais ninguém lá.

— Olá?

Procurei em todas as direções, mas o salão escuro parecia vazio, como da última vez.

Eu me lembro de quando havia pessoas aqui, e oferendas, e preces, e incensos..., uma voz ancestral soou na minha cabeça, como se fosse meu próprio pensamento. Levei as mãos à cabeça, como se pudesse impedir as palavras de invadi-la. Eu gostava do cheiro dos incensos, confessou.

De dentro das sombras, em um canto, eu vi seus olhos prateados cintilando na escuridão, me encarando. Olhos pesados, solitários, eu reconhecia. A mesma solidão que, às vezes, eu via no espelho.

— Oi... — Ele disse.

A voz que veio das sombras era jovem – diferente da que soara da minha mente, apesar de terem o mesmo timbre – e um pouco trêmula, insegura. Soava ainda mais assustada que eu.

— Oi — respondi.

— Não ligue para aqueles dois — repetiu. — Eles normalmente falam mais que escutam. Não era para terem assustado você...

Ele deu um passo para a luz e se revelou, mas ainda deixou uma certa distância entre nós. Fiquei quieta, encarando o mesmo menino de cabelos brancos que me encontrara na floresta. E que, por algum motivo que eu desconhecia, sabia o meu nome. Um Espírito que se parecia com um menino...

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— Ninguém aqui está acostumado a... receber visitas. As pessoas não se aproximam daqui por vontade própria há muitos, muitos anos. Acho que você entende...

— Sim.

É, eu conhecia as histórias.

— O que é isso?

Ele apontou, ainda distante, o bolsão de tecido que eu tinha feito com as minhas roupas.

Ah, é, já estava quase me esquecendo de porque estava aqui...

— E-eu vim te devolver isso.

Abri o tecido, mostrando pra ele. O Espírito finalmente se aproximou para ver o que havia lá dentro.

— Você foi embora e deixou as flores para trás... — Completei.

Ele estremeceu quando o lembrei de sua escapulida, sem conseguir disfarçar seu desconforto.

Empurrei a trouxa nas mãos deles quando me cansei de esperar que ele a pegasse.

— Toma. Elas parecem ser importantes.

Ele olhou das flores para mim, sem saber o que dizer, e se afastou muito rapidamente, com os ombros tensos. Levou as flores e se abaixou para deixa-las no pé do altar. Fez todo o caminho em silêncio e meio encurvado, como se na verdade carregasse saco de areia pesado, e não um punhado de flores.

Apesar do momento que parecia... estranho, eu não consegui mais conter minha curiosidade:

— Como você sabe meu nome? — Perguntei.

E ele se levantou num pulo, parecendo uma criança assustada outra vez. Sua túnica escorregava dos seus ombros toda vez que ele fazia um movimento mais brusco, e se arrastava no chão quando ele andava. Com certeza era grande demais para uma criança de doze anos, como eu. Ele a puxou de volta, desajeitado, mas a outra manga escorregou logo depois.

O Espírito resmungou algo que não entendi.

— O quê?

— Eu não devia ter dito aquilo... — Ele repetiu.

— Como você sabe o meu nome? — Disse mais alto.

Ele puxou uma mecha do cabelo da nuca.

— Eu sei o nome de todo mundo.

— Todo mundo?

— Sim, mas... — Ele puxou a manga de sua túnica para cima e me encarou quanto levantei uma sobrancelha. — Não! Não do jeito que está pensando.

Levei as mãos até minha cabeça de novo, cobrindo minhas orelhas.

— Você sabe o que estou pensando também?!

— N-não!

Ele começou a andar em círculos, olhando para os próprios pés.

— Eu não posso ler mentes, está bem? Não posso fazer isso — explicou.

— Mas você pode falar dentro da minha cabeça.

O Espírito cruzou os braços.

— Não é a mesma coisa.

Eu o encarei, ainda desconfiada, mas eu sabia que bons mentirosos não ficavam tão nervosos quando questionados. Pelo contrário, ele só parecia sincero demais. Devia estar tentando evitar que algo mais escapasse sem querer, como aconteceu com meu nome.

No fundo, eu me sentia um pouco decepcionada. Primeiro, ele não era nem de longe o Espírito furioso que eu tinha imaginado. Na verdade, nem mesmo parecia alguém poderoso. E muito menos parecia alguém que iria me punir por ter roubado uma oferenda de seu altar. É, roubado, eu admito... Segundo, ao ouvi-lo dizer meu nome, por um instante pensei que ele devia ter me conhecido antes. Talvez pudesse me dizer coisas sobre o meu passado que eu ainda não sabia. E que também não me lembrava. Talvez pudesse me mostrar quem eu costumava ser antes do incêndio...

Na verdade, talvez decepcionada podia não ser a palavra certa. Ele não era o que eu esperava. Tudo bem... Mas parecia ser alguém amigável. Alguém que devia conhecer muitas, mas muitas histórias mesmo.

Comecei a imaginar novas perguntas para lhe fazer.

— Você... vai sempre no bosque?

— Eu costumo estar em vários lugares, mas também estou sempre aqui.

Levantei uma sobrancelha. Ele me encarou de volta como se o que tinha dito não fosse nenhum mistério, então decidi mudar de assunto.

— E o que você está fazendo nesse templo abandonado?

Ele se sentou no chão diante de mim, e puxou minhas roupas para que eu me sentasse também.

— Essa é a minha casa.

— Jura?!

Ele fez que sim.

— Então é mesmo você.

— Eu?

Estendi minhas mãos abertas, apontando pra ele.

— Você é o Espírito desse templo.

— Sim.

Por mais inesperado que fosse tudo o que ele dizia, o Espírito respondia minhas perguntas como se não fosse nada demais.

Eu sorri, o que o pegou de surpresa. Mas ele não demorou a recuperar a seriedade de antes, quando ele tinha se mantido afastado de mim, nas sombras. Apesar de responder minhas perguntas com muita educação, e um pouco rápido demais, ele deixava as mãos coladas ao corpo e evitava me olhar nos olhos por muito tempo. Parecia ter medo de me ter tão por perto.

Mesmo assim, estendi-lhe a mão e disse:

— Você parece legal. O que acha de começarmos outra vez? Eu sou Lorena, você sabe. E quem é você?

Ele não apertou minha mão. Parecia não saber nem como deveria reagir. Mas disse, sem vacilar e sem expressão, como se tivesse ensaiado essa resposta na frente do espelho:

— Eu sou a Morte.

Esperei algo mais, mas ele não disse nada.

— Mas esse é o seu nome? — Meu braço ainda estava levantado, então sacudi os dedos para chamar sua atenção. — Morte?

O Espírito piscou, em silêncio.

— Meu... nome?

Eu fiz que sim.

— Você... quer saber o meu nome.

— Você tem um, né? Todo mundo tem um nome.

— Sim.

— E...?

Já estava ficando impaciente, sem entender toda aquela surpresa com uma pergunta tão simples. Talvez ficar trancado num templo sozinho por tanto tempo o tenha feito esquecer de como falar com as pessoas.

— Byakko — ele disse devagar e se atrapalhando um pouco, como se não estivesse acostumado a dizer o próprio nome. Depois, repetiu-o, abrindo bem a boca em cada sílaba. — Meu nome é Byakko.

Então, finalmente, ele estendeu a mão para mim, ainda um pouco resistente. Eu a peguei. Apesar de parecer que ele não entendia o motivo de dar as mãos, seu aperto era firme, e sua pele era fria como o vento.

Sorri.

— É um prazer conhecer você.

Byakko olhou nossas mãos dadas por um longo segundo, depois olhou em meus olhos por mais tempo ainda. Sua boca se mexeu um pouco e ele quase sorriu de volta.

— Já... Já está na hora de você ir para casa.

Byakko se levantou do chão e me levantei também.

Ele me empurrou através do salão de orações todo, e abriu as portas para eu poder sair.

Ao lado delas, Byakko era tão pequeno quanto eu...

Antes que ele as fechasse, falei:

— Espera! Você vai estar aqui amanhã, mesmo?

Ele me encarou pelo espaço entre as portas, se escondendo.

— Eu sempre estou aqui.

— Então eu venho visitar — Afirmei, ignorando completamente o fato de não ter sido convidada. — Até logo!

Comecei a voltar pelo caminho de pedra quando ouvi chamarem meu nome. Olhei para trás, para o templo, pensando que devia ser Byakko me chamando. O vulto que eu tinha visto no solstício estava lá, sobre o teto de tartaruga, mas logo desapareceu como fumaça – ou névoa – contra a luz do sol que fazia meus olhos arderem. Então, ouvi meu nome outra vez:

— Lorena!

Ed e Alice estavam no alto da subida cheia de pedras.

— Dorothea está procurando por você — Alice gritou quando me viu. — Se ela te vir aqui, você vai estar encrencada!

Corri na direção deles. Ed me estendeu a mão e me ajudou a subir até onde eles estavam.

— Vem, Lóris. Ela está preocupada. Disse que você saiu de casa sem comer direito e que devia ir almoçar.

— Aff... Eu estava sem fome.

— A gente sabe — Alice balançou os ombros. — Vem.

O vento frio me fez tremer. Pus as mãos nos bolsos pra deixa-las quentinhas. Foi quando senti, lá no fundo, meus dedos tocarem o amuleto que eu tinha me esquecido de devolver.

Ed encarou minhas roupas, procurando alguma coisa.

— Por que você está vestida assim nesse frio? Vai ficar doente sem nenhum agasalho assim.

— Ah, é, meu casaco! — Disse, olhando de volta para o templo. — Eu esqueci...

— Você pega quando voltar pra casa — Alice completou, achando que eu tinha esquecido ele na casa de Dorothea.

— É... eu pego de volta depois.

Disse mais para mim mesma, e não pra eles, pensando também no amuleto. Não faria mal ficar com ele por um tempo. Eu poderia devolvê-lo quando voltasse pra buscar minha roupa...

— Vamos.

Puxei os dois comigo, e fomos para a casa de Dorothea.

***

— Onde você foi? — Dorothea quis saber assim que eu voltei, acompanhada por Ed e Alice. — Quando eu cheguei na cozinha, depois de arrumar os quartos, você já tinha sumido! Saiu sem comer nada além de uma mordida de pão murcho...

Fechei a porta atrás de mim cautelosamente.

— Me desculpe... Só precisava de um tempo sozinha.

No mesmo instante, sua careta amoleceu. Para Dorothea, conversar comigo sobre a morte dos meus pais era um assunto delicado. Quase sempre ela se esquivava ou engasgava com as palavras, como naquela vez em que Ed perguntou para a mãe de onde vinham os bebês.

Como esperado, ela logo mudou de assunto.

Ela olhou pra fora pela janela da cozinha. Ed e Alice tinham ficado lá, nos observado.

— Você está com fome? Eu fiz aquela sopa que você adora. E vocês? — Perguntou aos meus amigos.

Alice balançou sua cabeça.

— Ah, não. Também temos que voltar para casa.

— Dia de ficar com a família... Só fomos te procurar porque Dorothea perguntou se você tava com a gente — Ed acrescentou. Depois, acenou pra mim. — Tchau, Lóris.

E os dois foram embora.

Dorothea foi até o caldeirão no fogão e serviu seu ensopado para mim primeiro, e depois para si mesma. Este ainda era um dia para comer em silêncio, e assim foi. Engoli a comida sem nem sentir o gosto. Queria logo ir para o quarto e ela não me questionou nem impediu. Lá, levantei a tábua solta do assoalho sob a cama e peguei um caderno de capa surrada entre os meus tesouros. Folheei um monte de páginas cobertas com a minha letra, até encontrar um punhado de folhas em branco. Apoiei o caderno nas minhas pernas cruzadas e, finalmente sozinha, tirei o amuleto de meu bolso, observando-o.

Ia escrever sobre ele, mas outra coisa não me saía da cabeça.

Então, no alto da página eu escrevi:

Byakko.