Capítulo 009

Aprendiz (Parte 5)

Kayan encarou Viktor por um momento antes de responder ao seu comentário.

– Não temos nada a acertar, Viktor. Temos nossas diferenças, então o melhor que podemos fazer é manter distância um do outro.

– Pois para mim pareceu que você estava me desafiando e não lhe negarei um duelo.

Sem qualquer aviso, o Smalter conjurou um feitiço jinn para formar uma grande corrente de ar contra o trio. A reação de Kayan foi rápida e instintiva e ele tocou o solo a sua frente enquanto conjurava um clayn. Uma barreira de terra e de rochas se ergueu do solo e protegeu-os contra a poderosa ventania que ameaçava lança-los para trás com violência.

– Fiquem aqui! Vou para-lo!

– Espere, Kayan, não vá!

Os protestos de Sarah foram em vão, uma vez que o Atreius já estava se lançando para o duelo contra seu rival. Ele utilizava um feitiço crisis, que fazia com que sua aura se tornasse vermelha e uma esfera de fogo se formasse em frente a sua mão estendida. Ele apontou a mão para seu oponente e uma rajada incandescente saltou contra ele.

Viktor reagiu de acordo com a situação e conjurou um potente jato de água contra as chamas de seu oponente. Ambos os feitiços se colidiram no ar e uma grande nuvem de vapor se ergueu no ar acompanhando do chiado característico da água se evaporando com o calor do fogo.

O Smalter, então, agitou seu braço em uma meia lua que ia da altura da sua cintura até mais alto que sua cabeça paralelamente ao seu corpo. Ao utilizar aquele movimento com o jinn, ele criou uma lâmina de ar que se movia em grande velocidade.

Kayan esquivou-se da primeira investida, mas a segunda veio logo em seguida e ele não seria capaz de se mover tão rápido, mesmo com o auxilio de sua aura. O que ele fez foi concentrar sua aura em seu ombro esquerdo, que seria o local a receber o impacto do feitiço.

Gotas escarlate permearam o ar quando um corte extenso, embora pouco profundo, se abriu no ombro do rapaz. Sarah gritou ao ver o amigo se ferir. Os dentes do Atreius estavam apertados uns contra os outros enquanto ele sentia uma grande fúria misturada a dor.

Ele estendeu a mão na frente do corpo e pequenas chamas se formaram em cada um de seus dedos. Mas aquelas chamas eram diferentes das anteriores, pois sua coloração não era alaranjada ou avermelhada e sim completamente negras.

Antes que ele pudesse completar seu feitiço, porém, uma barreira de aura surgiu entre os dois rapazes, empurrando-os um pouco para trás e encerrando aquele curto duelo. Kayan recuperou um pouco de sua razão e encerrou o feitiço antes mesmo de completa-lo.

Quando eles procuraram quem havia os parado, perceberam que se tratava do mestre Jean Bearn, que se aproximava de ambos com o braço estendido para que a barreira se mantivesse em pé.

– Vocês dois sabem que duelos são proibidos para os aprendizes, não sabem?

– Mestre, o Kayan não teve culpa, foi o Viktor quem provocou o duelo e ele apenas estava se defendendo.

– Isso pode até ser verdade, senhorita Harppon, mas isto não muda o fato de que ambos estavam duelando em local não permitido.

O Smalter esboçou algum argumento, mas desistiu antes mesmo de emitir qualquer som. Sabia que de nada lhe adiantaria. Kayan, por sua vez, aceitaria a punição que lhe fosse designada e esperava que isso não significasse sua expulsão.

– Pegarei leve com vocês desta vez. Terão que fazer um trabalho bem chato durante todo este dia e apenas os liberarei a noite. Espero que isto lhes sirva de lição. Viktor, direto para minha sala e nem tente fugir, pois o encontrarei. Kayan, vamos tratar disso, mas é melhor que um mago branco o faça para não deixar cicatriz.

Sem ter muito o que fazer, Sarah e Mathen resolveram voltar para o salão dos aprendizes para a guardar o retorno do amigo. Kayan, por sua vez, caminhava lado a lado do mestre.

– Sabe os efeitos do que pretendia fazer, não é? – perguntou-lhe o mestre.

O Atreius olhou-o surpreso e não respondeu, apenas acenou afirmativamente com a cabeça.

– Não se preocupe, não direi à ninguém. Apenas espero que isto não volte a se repetir.

E aquilo colocou um ponto final no assunto.

* * *

No final da noite, entediados e cansados, ambos os garotos foram liberados de suas punições. Kayan rumou diretamente para o salão dos aprendizes, onde encontrou seus dois amigos lhe esperando.

– Como está seu braço? – perguntou-lhe Sarah, com alguma preocupação na voz.

– Está ótimo – movimentou o braço para provar o que dizia. – Fui tratado pela mestra de magia branca, então curou rapidinho com um ressin.

Constatando que o amigo estava bem, Mathen partiu para a próxima indagação.

– E qual foi sua punição?

– Tivemos que organizar um monte de pergaminhos antigos. Mas a pior parte foi ter que passar esse tempo todo com o Viktor.

– Com certeza a pior parte. Também não suporto aquele cara.

O Atreius, então, rumou para um sofá grande a afastado da maioria dos aprendizes. Seus amigos o seguiram e cada qual sentou-se em um dos lados do sofá, deixando-o entre eles.

– Kayan, qual era o feitiço que você ia conjurar se não fosse interrompido pelo mestre Jean Bearn? – indagou-lhe Sarah.

Kayan ficou visivelmente incomodado com a questão, tanto que se passaram alguns segundos antes que ele a respondesse.

– Seria um crisis.

– Não seria não! – contrapôs Sarah, um pouco exaltada. – Ele tinha uma coloração um pouco diferente, meio escura. Você também viu, não viu Mathen?

Meio sem jeito por ter sido colocado naquela situação, o Muscort tentou uma evasiva.

– Não tenho muita certeza do que eu vi. Tudo se passou muito rápido.

Ela encarou-o com um olhar de desaprovação e logo voltou novamente sua atenção para o Atreius.

– Conte-nos, Kayan, qual seria aquele feitiço?

– Eu já disse, seria um crisis – respondeu calmamente.

– Você não vai me enganar, Kayan. Eu sei bem o que eu vi e não era um crisis!

A garota chegou até mesmo a se levantar e a ficar de frente para o amigo enquanto fazia a acusação. Já cansado devido ao castigo, Kayan perdeu a calma que ele mantinha até então.

– Já disse que seria um crisis! – quase gritou. – Quem estava duelando, afinal, você ou eu?

– Se não quer falar, não fale!

Contrariada, Sarah saiu da frente do rapaz e rumou para as escadas que conduziriam até os dormitórios. Aborrecido e emburrado, Kayan limitou-se a afundar em seu sofá enquanto cruzava os braços. Teria permanecido daquela maneira até o fim da noite caso Mathen não tentasse mudar de assunto e animá-lo novamente.

* * *

O início do próximo ciclo foi um pouco tumultuado. Muitos aprendizes fitavam Kayan nos corredores e sussurravam alguma coisa que ele não era capaz de discernir. O rapaz tentou ignorar o que as pessoas faziam; estava ficando bom nisso.

Durante a parte da tarde, enquanto ele estava na aula prática de controle do fogo, Thays Cyren foi conversar com ele. Ela era uma garota muito bonita. Tinha uma baixa estatura e um corpo desenvolvido para sua idade. Seus cabelos eram do mesmo tom dos de seu primo Sakuro e eram lisos, estendendo-se até seu pescoço. Ela costumava sempre mexer neles, enrolando-os nos dedos, mania que Kayan considerava como um certo charme.

– Isso aqui está fácil demais, não é? – comentou.

– Realmente. O básico não tem desafio nenhum.

O casal ficou um ao lado do outro enquanto observavam o restante dos aprendizes. Algumas amigas da garota praticavam os exercícios ali perto, mas o Atreius percebeu que elas também mantinham atenção aos dois.

– Soube o que aconteceu entre você e o Viktor.

– Acho que todos os aprendizes já sabem – disse Kayan com certo desânimo.

– Ele tem espalhado que te venceu, mas sei que essa não é a verdade.

O que Thays disse deixou o rapaz um pouco irritado e ainda com mais raiva de seu rival. Apesar disso, ele disfarçou e manteve o mesmo tom de voz.

– Ele apenas tem a boca maior que a própria capacidade. Nunca conseguiria me vencer em um duelo justo.

– Não queria que vocês dois brigassem. Também tenho muita amizade com ele e queria que vocês dois se dessem bem.

– Sinto muito, mas isso vai ser impossível. Nunca seremos amigos. Pior, nunca conseguiremos nos aturar – respondeu com convicção. – E acho que você deveria tomar cuidado com o Viktor. Ele pode ser perigoso.

Thays sorriu quando ouviu o comentário do amigo. Em seguida, fez o seu próprio:

– Ele disse exatamente a mesma coisa sobre você. Tudo bem, continuarei gostando de vocês dois igualmente.

A Cyren, então, esticou-se, ficando sobre as pontas dos pés para conseguir beijar o rosto do Atreius. O rapaz ficou um pouco encabulado e seu rosto recebeu tons levemente enrubescidos. Em seguida, a garota juntou-se às amigas, que riam da situação em que o rapaz se encontrava. Nervoso, ele tentou disfarçar enquanto praticava o feitiço de fogo.

* * *

Após a aula da noite, Kayan planejava passar algum tempo com seus amigos antes de se deitar. Entretanto, enquanto descia as escadas para chegar à sala de estar dos alunos, deparou-se com uma figura que ele conhecia muito bem: o mestre de cabelos cor de fogo. Spaak aguardava-o em frente à entrada e alguns aprendizes observavam-no tentando ser discretos, embora não conseguissem disfarçar a surpresa de ver um mestre parado na escadaria.

– Boa noite, Kayan – cumprimentou o rapaz que descia a escada.

– Boa noite, Spaak, não esperava vê-lo tão cedo.

– Se quiser que eu o deixe em paz eu vou embora.

–Não foi o que eu quis dizer – tentou justificar-se.

O mestre riu da atitude do rapaz.

– Estava brincando. Esta noite eu vou te levar pra um local interessante dentro do castelo. Você quer vir?

– Pensei que não tivesse permissão pra sair da área dos aprendizes.

– Sozinho não, mas estará comigo, não tem problema.

Confiando no amigo, Kayan seguiu enquanto ele atravessava a sala de estar dos aprendizes, que estava pouco movimentada aquela noite. Ele não perguntou aonde Spaak pretendia ir até que eles atravessaram o corredor e chegaram à entrada do castelo.

– Iremos para a taverna do castelo – respondeu o mestre. – É um lugar muito aconchegante e bem frequentado pelos magos daqui, se bem que hoje deve estar meio parado.

A dupla caminhou pelo castelo durante alguns minutos. Eles passavam por vários corredores largos e espaçosos, mas todos no andar térreo do local. Havia várias portas e todos os ambientes eram finamente ornamentados, o que dava um ar nobre à sede da Ordem de Drugstrein. Por fim, eles chegaram de frente a uma porta de madeira onde havia algo grafado em letras dourada: O Centauro Dirvash.

– Quem inaugurou esta taverna foi um centauro e, quando ele morreu, deram o nome dele para o local, como uma forma de homenagem – Spaak explicou-lhe.

– Existem centauros morando aqui? – Kayan indagou, curioso.

– Na verdade, não. Ele foi a única exceção que abrimos para um ser de outra raça. Pelo que sei, ele foi expulso do próprio clã e um granmestre o abrigou pela amizade que tinham, mas isso já faz mais de mil anos.

Assim que a curiosidade do Atreius foi saciada, o mestre abriu a porta e os dois entraram no recinto. O ambiente realmente era agradável. Em uma das paredes havia muitas janelas, embora elas estivessem encobertas por cortinas. Havia, também, uma outra porta nesta mesma parede. Um grande balcão de madeira se estendia ao lado oposto da entrada e nele muitas garrafas eram exibidas; atrás dele havia outra porta, que Kayan imaginou dar acesso a uma cozinha ou despensa. O local era iluminado fracamente por lâmpadas mágicas de baixa intensidade e um pequeno grupo de músicos se apresentava em um palco que ficava a pouco mais que vinte centímetros do restante do piso.

A taverna era permeada por muitas mesas. Algumas delas ficavam paralelas a uma das paredes ou próximas a colunas quadradas que tinham um metro quadrado de base; estas eram completadas por poltronas fixas e de aparência muito confortável. No meio do salão ficavam as diversas outras mesas e cadeiras mais simples, porém, todas possuíam estofados. Kayan reparou nas pessoas que estavam ocupando os lugares, embora não fossem muitas. A maioria era composta por simples magos, mas ele reparou que alguns possuíam o brasão de mestre, além das notáveis capas com as quais se trajavam.

Acompanhando Spaak, o jovem aprendiz seguiu até um dos locais mais confortáveis e próximos a um canto. Foi então que ele reparou nas várias pessoas que andavam pelo ambiente atendendo aos pedidos. Chegou à conclusão de que o número de pessoas que não sabiam utilizar magia devia ser tão grande quanto o de magos para manter a Ordem em pleno funcionamento.

Uma moça de cabelos castanhos e encaracolados aproximou-se dos dois. Ela vestia-se com um vestido de tons azuis, que era o uniforme feminino da taverna.

– Olá, Spaak, vejo que trouxe um aprendiz com você hoje. Ainda bem que não é uma garota – ela parecia ter certa intimidade com o mestre.

– Como se eu fosse tentar algo com uma criança, não é Reb? Este é o Kayan.

– Muito prazer, sou Rebecca. Digam-me o que desejam para beber.

Após isso, Kayan pediu um vinho e Spaak uma garrafa de hidromel. A moça, então, começou a afastar-se deles para pegar o que haviam pedido. Antes disso, porém, o Firyn a segurou pelo braço e disse-lhe algo em seu ouvido que a deixou corada.

– Então essa é sua namorada? – perguntou Kayan, tendo em mente que grande parte dos criados do castelo aderiam a cultura dos magos de liberdade de relacionamentos.

– Não, Kayan, esta não é minha namorada, estamos apenas saindo juntos. Fico feliz que as pessoas que vivem na ordem acabem incorporando nossos costumes. E você, já esta de olho em alguma aprendiz?

– Nã... Não exatamente – foi o que respondeu, mas não pôde deixar de pensar em como gostava de passar seu tempo com Sarah e como Thays era bonita e lhe chamava atenção.

Eles continuaram com sua conversa enquanto aguardavam as bebidas que haviam pedido. Assim que elas chegaram, Spaak iniciou o assunto que queria esclarecer com o Atreius.

– Eu fiquei sabendo sobre o ocorrido entre você e o Viktor há alguns dias e gostaria que você me esclarecesse como tudo aconteceu.

O ânimo de Kayan caiu assim que escutou o que o mestre lhe disse. Ele deixou que uma expressão séria lhe tomasse o rosto antes de responder.

– Também vai me dar sermão?

Spaak, então, riu da expressão do aprendiz. Em seguida, fez com que ele abrandasse a tensão com a próxima frase que disse.

– Acho que você já deve ter recebido uma boa quantidade deles. Apenas quero saber o que houve, já que não fiquei sabendo motivos e detalhes.

O rapaz, então, relaxou enquanto tomava o vinho que acabara de lhe ser servido. Após isso, disse o que pensava.

– O Viktor é um babaca muito metido e, por algum motivo, decidiu que queria um duelo contra mim.

– Por algum motivo? Será que você não sabe mesmo qual é esse motivo? – provocou Spaak.

– Tá certo, tá certo. Digamos que nós não fomos um com a cara do outro e eu andei discutindo com ele. Mas isso não justifica ele ter vindo pra cima de mim.

O Firyn fez uma pausa enquanto degustava sua bebida e observava uma das mais belas taberneiras passando ao lado da mesa. A seguir, denotou sua opinião sobre o assunto.

– Vocês dois são aprendizes muito promissores e serão excelentes magos. Talvez por isso essa rivalidade tenha aparecido. Quando vocês forem mais velhos pode ser que comecem a se dar bem e se tornem bons amigos. Por enquanto, apenas evite entrar em conflitos com ele, está bem?

– Bons amigos? O Viktor e eu? Sem chances!

Spaak riu do comentário do amigo e, em seguida, mudou o assunto para outra coisa mais simples. Kayan teria que acordar cedo na manhã seguinte, mas não incomodou-se em conversar até tarde da noite. Afinal de contas, ele e o mestre estavam desenvolvendo fortes laços de amizade e o rapaz encontrava nele um exemplo a seguir em sua carreira como mago de Drugstrein.