A Mensageira

Capítulo 4 - O Acidente


Acho que dormi. Acordei com a louca da Elisa gritando:

–Thiago! Olha o caminhão! Sai! Desvia! Pra esquerda! Pra esquerda!

Thiago jogou todo o carro para o acostamento, na esquerda. Só vi um caminhão vermelho vivo passar á toda a velocidade, ao meu lado direito.

Tudo aconteceu muito rápido. Entre os gritos da Elisa e meu desespero, só percebi uma coisa: O CAMINHÃO HAVIA ARRANCADO A PARTE DIREITA DO CARRO, OU SEJA, ELISA E JAKE DEVERIAM ESTAR MORTOS.

Ouvi uma voz ao fundo. Só podia ser de Thiago. Não entendi o que ele disse, mas respondi:

–Estou aqui. Estou aqui! Eu... Eu... Estou bem... Aq...

Então uma escuridão me envolveu.


Acordei em um local estranho e escuro. Não havia luz em canto algum. O acidente... Eu morri! Mas não é assim que deveria ser! Onde está a escada até o paraíso? As sombras para o inferno? Os anjos de auréola? Os capetinhas? Não está certo! Calma, Ellie. Calma.

–Helena Carter Carvalho? –Escutei uma voz masculina me chamar.

–Sim. Onde estou? –Minha cabeça doía.

–Em um paradoxo. Sim, eu acho que é este o nome que vocês dão para isso. Você está entre o mundo dos mortos e o seu.

–Não. Thiago, Jake, Elisa... Onde estão?

–Jake e Elisa morreram.

Antes que eu perguntasse qualquer coisa, a criatura encostou suas mãos em mim. Um choque atravessou meu corpo.

–Ellie! Ellie! Acorda! –Thiago estava me segurando. Seus braços grandes e fortes estavam ao redor dos meus ombros e da minha cintura.

–Thiago... Onde estão os outros?

–Calma. Tudo vai ficar bem. –Notei que o rosto dele estava vermelho. Ele estava prendendo o choro.

Ele me carregou e foi andando pela estrada.

–Pode me soltar, Thiago. Eu consigo andar. Você deve estar muito cansado. –Tentei me desvencilhar da gaiola que seus braços formaram á minha volta. Ele não cedeu.

–Vou te levar para sua casa.

–Não! Tudo menos a minha casa. –Imagina se meus pais me vissem naquele estado? Eu não quero preocupá-los. –Para onde você vai?

–Para um lugar no qual você não é bem vinda.

Que grosso! Empurrei seu peito, talvez com um pouco de força em demasia. Thiago tombou para trás.

–Como...? Como você fez isso?

Não dei tempo para que ele se recuperasse, saí correndo. Eu nunca iria para o hotel. E se o Thiago não podia me ajudar, não havia razão para permanecer com ele. Olhai para trás. Nem sinal dele, ou de seu corpo. Ah, lá está ele. Correndo atrás de mim. Acelerei minha corrida.

–Ellie! Espera!

–Por que eu deveria? Para você ser um pouco mais deselegante comigo?

Ele me alcançou e me parou.

–Como você correu assim?

–Eu não sou uma foca. Eu tenho pés. –Ele me olhou como se EU fosse a retardada, não ele. Quem perguntou como se corre não fui eu!

–Ellie, você correu á mais de oitenta quilômetros por hora.

–Há! Essa foi boa. Se eu corri á mais de oitenta quilômetros, por que você me alcançou? –Ele realmente acha que eu caio nesse papo!

–Porque eu corri á mais de cem. –Ele pensou por alguns míseros segundos. –Me mostra sua pélvis ou seu cóccix.

Que cara tarado! E inoportuno!

–Por que eu faria uma coisa dessas?

–Para eu ver sua marca. Anda logo.

–Marca? Pirou, Thiago?

Ele perdeu a paciência e levantou meu vestido. Abusado! Atirado! Queria dar um soco no rosto dele, mas vi algo. Uma marca em minha pélvis. Uma estrela de cinco pontas. Eu conheço essa marca, é a união entre os quatro elementos (água, terra, fogo e ar) e o mundo dos espíritos.

–Não pode ser. Ellie, você foi á algum lugar depois do acidente? –Ele esperou, mas eu não respondi. –Mesmo que pareça um sonho, me fale. –A mente de Thiago parecia trabalhar á mil.

–Sim. Um homem me disse que Jake e Elisa morreram, e tocou em mim. Um choque me atravessou e eu acordei.

Thiago pareceu pensar um pouco.

–Mudei de idéia. Você é bem vinda no lugar aonde vou.

Notei que Thiago ainda não havia abaixado meu vestido e tirei suas mãos da minha cintura. Como ele adivinhou que eu tinha uma tatuagem ali? Deve ser porque aquele era o único lugar possível, uma vez que esse vestido não cobre nada mais do meu corpo direito.


Thiago me levou á uma mansão nos arredores de uma das zonas mais chiques de Sydney. Era grande, e me lembrou a mansão do Charles Xavier em X-Men. Tinha um ar do século XIX, com pintura clara e janelas alongadas. Eu já falei que eu contei quatro andares? Parecia uma propriedade realmente grande. Além de, obviamente, estar lotada de adolescentes desacompanhados de pais ou maiores de idade. Isso é ilegal, não é?

–Ellie, anda logo. Eu quero entrar antes de amanhecer. –Thiago me puxou.

–Quantas horas?

–Cinco da manhã. –Thiago parecia impaciente.

–Tá. Fala sério! Se são cinco horas, por que tantos adolescentes estão acordados? –Ele realmente acha que me engana com essa conversa fiada.

–Eles são caçadores noturnos. Podem ficar acordados. –Ele fala como se fosse a coisa mais normal do mundo. Falou no mesmo tom em que se diz aos seus pais: “Eu lavei meu cabelo com xampu e condicionador, sim.”

–O que?

–Ellie, depois eu te explico. Vem. –Ele perdeu a paciência e me puxou de vez para a casa grande.

Eu fui direto á um elevador (é, uma casa centenária tinha um elevador) que em levou ao último andar. Eu vi apenas portas altas. Comparado ao que eu vi do primeiro andar, este parecia ter um ar mais... Caro. Parece que, quem quer que fosse a elite desse “clã de vampiros”, vivia aqui. Eu fui empurrada até a porta do que me parecia ser o Drácula do clã.


–Vem, Ellie. –Thiago me puxou.

Eu notei que o quarto tinha uma decoração clássica, muito mais clássica do que o resto da casa. Mas também notei alguns aparelhos que pareciam como os dos meus pais. Meus pais.

–Helena Carter? Aproxime-se. –A voz vinha do fundo do quarto. Será que era um oráculo? Um velho quase definhando? Uma criatura amputada? Para minha total decepção, um senhor de uns quarenta anos se aproximou. Ele estava em... Ótima forma. Ótima mesmo. Seus olhos azuis eram encantadores. –É um prazer conhecê-la, finalmente.

–Finalmente? –Uma voz que não era a minha perguntou. Thiago.

–É ela mesma. –O velho ficou em silêncio um tempo, me avaliando. Eu me senti enrubescer profundamente. Malditas bochechas. –Thiago, você se lembra de uma história que eu lhes contava para dormirem? Uma guerreira, capaz de viajar entre os mundos...

A Mensageira. –Disse ele, com os olhos perdidos.

–Essa mesma. Lembra-se de que ela era sua heroína? Você brincava que um dia iria até...

–É. Eu me lembro. O que eu tenho a ver com isso tudo, tio?

–Eu quero que você treine a Ellie. Ela pode ser algo como a sucessora de Mensageira. A partir de agora você será guia, segurança e instrutor dela, meu sobrinho. O quarto dela será o de número um, logo ao lado do seu. – Mais um minuto de um constrangedor silêncio se passou. Os dois pareciam saber o que se seguiria, mas eu estava perdida. –Mas... Estou confuso. Você me pediu permissão para folgar hoje, dizendo que sairia com Jake. O que aconteceu?

Thiago ficou em silêncio. E o “titio” dele entendeu.

–Ellie, espere lá fora, por favor.


Os dois saíram depois de intermináveis trinta minutos. Thiago estava com os olhos um pouco vermelhos, por isso presumi que ele chorou agora há pouco.

–Thiago, leve Ellie para o quarto dela. –O tio se aproximou. –Será um grande prazer treiná-la, Ellie.

Eu estava confusa. E minha família? O que será que aconteceria com nossa relação? Eu devo poder sair quando eu quiser. Nota mental: perguntar isso ao Thiago depois.

Thiago já estava muito á minha frente, sem perceber que eu não o havia seguido. Resolvi apertar o passo e, em um segundo, estava com ele.

–Venha. Logo á direita. –Ele andou mais um pouco e parou em frente á quatro portas gigantes. Uma tinha o nome “Lizzie” e o outro “Will”. Um dos quartos do meio tinha seu próprio nome gravado na porta. Mas havia um sem qualquer nome. Foi justamente para esse que Thiago me empurrou.

Eu entrei sem hesitar e me deparei com o maior e mais perfeito quarto que eu já havia visto. Paredes em branco, exceto por uma única com um mosaico florido e delicado. Uma cama grande King Size adornava metade de uma parede, com uma roupa de cama luxuosa. Havia também uma estante com vários livros, uma mesa de estudos com algumas modernidades, um lustre de cristal, um aparelho de som moderno, uma varanda que ocupava todo o espaço de uma parede (com cadeiras, mesa e espreguiçadeiras) e duas portas fechadas á direita, que mais tarde eu descobriria ser um closet com estantes de sapatos, manequins completos e móveis giratórios para roupa, bolsas e acessórios (além de uma penteadeira); e um banheiro com banheira e um espelho de corpo inteiro.

Eu deveria estar muito boquiaberta, porque depois de algum tempo Thiago me retirou de meus devaneios.

–Esse é o seu quarto. Você pode alterar o que quiser. Sinta-se honrada, apenas os Quatro Grandes, além dos Poderosos e do Diretor, têm um quarto assim. –Melhor fingir que eu entendi alguma coisa disso, depois eu pergunto.

–Você tem certeza de que esse é o meu quarto? –Ele assentiu. –E minhas coisas? Tudo está no hotel. Como eu vou buscá-las?

–Você não vai. –Levei uns segundos para processar tudo aquilo.

–Como assim? E meus pais? Eu vou vê-los, não vou?

A resposta me atingiu como ferro em brasa:

–Não.

Acho que meus joelhos fraquejaram e eu caí no carpete felpudo, porque, em uma questão de segundos, Thiago já pôs seus braços ao meu redor, e me aninhou.

O que isso significava? Eu seria uma espécie de párea? Eu não veria mais meus pais? Não. Isso nunca.

–Eu quero ir para minha casa agora. –Sussurrei em meio aos soluços do choro.

–Isso não será possível. Uma vez dentro, não se pode sair. –As mãos de Thiago me acariciavam.

–Não! Eu quero a minha casa, meus pais e meus irmãos! –Até das pestes eu sentia falta.

–Você estará colocando-os em perigo a partir de agora.

–Como assim? –Por que, além de me sentir sozinha, ele precisava me fazer sentir burra?

–Você acabou de receber seus dons. A partir de agora, os monstros vão te farejar á uma boa distância. Você quer por sua família em risco?

A segurança da minha família ou a nossa união? Eu não tenho dúvidas. União.

–Se eu tenho mesmo esses poderes, eu posso muito bem defender á quem eu amo. Eu VOU ficar com as pessoas que mais me amam neste mundo, e não será você a me impedir. –Sequei minhas lágrimas e me levantei. Thiago me seguiu.

–Infelizmente, eu serei obrigado á fazê-lo. Nós não temos contato com humanos, apenas os protegemos. E você está indo contra dois dos principais mandamentos.

Ele parecia determinado, mas eu estava em igual condição. Meu punho já estava fechado, eu já estava contando. 1, 2, 3... Mas Thiago não parecia nada além de relaxado. Tentei acertar minha mão em seu rosto, mas ele a segurou.

–Não me obrigue á te deter, Ellie.

–Não me obrigue á te bater, Thiago. –Tentei chutá-lo, mas em uma fração de segundo ele me imobilizou e me virou de costas para ele, sussurrando em meu ouvido.

–Ellie, não lute. Eu não quero te bater ou te machucar de qualquer forma. Relaxe. –Seu tom era suplicante.

Não valia a pena lutar contra ele. Eu só me cansaria e perderia. Por outro lado, se eu fingir me conformar, ele vai embora e eu posso sair á vontade.

Relaxei.

–Isso mesmo, boa garota. –Ele soltou seus braços dominantes e me permitiu sair. O que nenhum de nós esperava era que eu me desequilibrasse e precisasse da ajuda dele. Pela segunda vez em dez minutos. –Cuidado, Ellie.

Ele me desceu cuidadosamente no carpete (eu já disse que esse carpete era felpudo?) e se assentou. Ele não deveria ir embora agora?

–Thiago, sem querem ser rude, mas não é hora de dormir? –Simulei um bocejo fajuto. –Estou meio cansada e quero privacidade.

Ele soltou uma risada.

–Eu não nasci ontem. Quem me garante que você não vai tentar fugir?

Droga. Eu não poderia garantir, uma vez que esses eram exatamente os meus planos. Eu hesitei e ele percebeu.

–Foi o que eu pensei. Espere um segundo como uma boa menina, que eu já volto com um colchão e uma coberta. Arrume-se para dormir.

Ele vai dormir aqui? Não tive tempo de verbalizar minha dúvida, porque ele saiu. Isso me dava pouco tempo, então eu pulei para fora do quarto pela janela e fui em direção ao portão pelo qual entrei. Eu pulei mesmo de uma janela do quarto andar? Não tive tempo de pensar, porque em segundos uma coisa tomou minha mente: Minha Família.