Era uma quarta-feira ensolarada. Passava das três da tarde. Um forte vento quente vinha do norte, trazendo a poeira das estradas de terra batida tão pisadas por lifings. O sol escondia-se de tempos em tempos, escurecendo repentinamente aquele quarto circular de pedra rústica. Aqueles que permaneciam dentro dele, para esconder-se do sol, conversavam em tom doentio, apático, já faria cerca de uma hora. Três humanos vestidos com seus típicos trajes negros, mantos que iam até o chão. Em outras ocasiões também usariam uma máscara prateada, mas naquele momento não era necessário nem confortável com o calor. Mais outras quatro pessoas dividiam as duas redes presas na parede por um gancho. As sete presenças ainda se recuperavam do susto do dia anterior.

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- Quem luta amanhã? – Hebel cortou o assunto que circulava em torno da escola.

- Uma dupla do Reino da Noite contra uma do Reino do Fogo. – respondeu Belthor pensativo.

- Conhece algum deles? – quis saber Sabrina, apenas para continuar o assunto.

- A do reino de Sorah é a atual recordista em velocidade. – pronunciou-se Lia com o olhar vago.

- Quer dizer que… - Nicka pensou alguns segundos achando o que ia falar demasiado estúpido, porém como única possibilidade. – Correm mais?

- Quer dizer que mataram o adversário mais rápido do que qualquer outro concorrente. Foram três ou quatro segundos. Se não me engano.

- O adversário deles devia ser muito fraco. – imaginou Mirian.

- Pelo contrário. – negou Íris. – era o comandante geral do reino Antigo. Um dos mais fortes guerreiros do território de Dart. A repercussão foi grande no reino de Sorah e chegou a haver uma invasão massiva de cerca de dois mil soldados do reino Antigo no reino da Noite.

Belthor cruzou os braços e se encostou perto da porta.

- Mas claro que mais de mil e quinhentos morreram logo que pisaram no gelo do território de Sorah. O restante foi exterminado por um exercito liderado pelo mesmo lifing que matou o tal comandante.

Lia suspirou.

- E pensar que o rei do reino Antigo está no mesmo quarto que a rainha do Reino da Noite, aguardando à mais de dez horas por sua recuperação…

- Mas o que afinal aconteceu com ela? O que aconteceu ontem? Ela e Dart… não sei, estavam estranhos durante a luta… - lembrou-se Hebel.

- Aconteceu que eles são detentores do poder mais próximo de um mayle que existe na terra. O poder do rei herdeiro. Apenas a família real possui a habilidade dos níveis que os dois atingiram, caracterizados por pequenas mudanças físicas. Em Sorah, a cor dos olhos muda quando atinge o primeiro nível, do âmbar natural para um vermelho escarlate. Além da sua personalidade se tornar mais emotiva, feroz. Acontece quando ela aumenta muito rapidamente a quantidade de poder que se permite usar, causando uma pequena explosão, que a torna mais forte do que deveria ser se aumentasse o poder mais devagar O segundo nível é identificado pelos olhos verde vivo e o jeito racional, séria, estratégica. Ocorre quando ela efetivamente usa tudo o que se permite usar. E o terceiro e último nível, para atingi-lo, Sorah precisava se forçar a aumentar a energia usada acima da que se permite, para gerar uma grande explosão e lhe permitir usar toda sua força livremente. Mas essa força toda não cabe dentro dela, então ela se solidifica e forma a armadura que viram. Sorah ainda não controla esse nível, então ela vira uma fera selvagem e a energia é instável. Com Dart é quase a mesma coisa. Com a diferença de que no primeiro nível ele ganha um tipo de tatuagem no rosto, no segundo, as tatuagens se tornam negras. E finalmente, no terceiro, a energia se materializa em forma de quatro asas negras e seu cabelo fica comprido e prateado. Mas toda essa energia é menor que a de Sorah, então ele consegue controlá-la tranquilamente.

- E… como os demais lifings que viram não descobriram que eles são rei e rainha?

- Esse poder tem sido confundido com uma mera habilidade desde seu descobrimento… - lamentou Lia.

- E por que Sorah está desacordada até agora? – estranhou Mirian após toda a conversa que não tinha lhe esclarecido sua mais importante dúvida.

- Digamos que fica mais fácil atingir cada um dos níveis quando se está com ódio, perdendo. Dessa forma os efeitos são quase nulos. No entanto, ela forçou o terceiro nível. Vocês viram Dart segurá-la pelo pescoço para fazê-la atingir o segundo e evitar que ela sofresse depois na recuperação. Jamais imaginaria que Sorah se forçaria a atingir uma força que ainda não controla.

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- Mas ele também forçou terceiro nível… e está acordado lá com ela desde ontem.

- Nicka, Dart controla com perfeição o terceiro nível. Mesmo forçando, os efeitos não são tão fortes quanto em Sorah. Ele está sofrendo, não tenha a menor dúvida. Mas neste momento, sua dor não é o suficiente para fazê-lo sair do lado de Sorah.

Sabrina lembrou-se de tempos atrás, quase um ano, durante seu treinamento com Flértis. Forçara a sair uma quantidade de energia pequena, mas no outro dia, a dor que conhecera era insuportável. Ainda não sentira dor e sensação pior que aquela. Contou isso aos guerreiros. Hebel, que dos jovens era o único que não presenciara a cena, ouviu com atenção.

- É quase isso. – Explicou Íris. – Mas aumentado pelo menos umas cem vezes… incluída à capacidade dos lifings de suportar a dor. Provavelmente um humano morreria em pouco tempo… mas tenho certeza de que em algumas horas Sorah estará bem de novo.

Sabrina engoliu em seco. Os demais, com exceção dos guerreiros, Entreolharam-se. O quarto afundou num profundo silêncio enquanto o sol se escondia atrás de outra nuvem, deixando-o num to escuro e sombrio.

Alguns andares acima daquele em que apenas humanos conversavam, havia um aposento em especial, com dois lifings, sendo um deles já ex-participante do torneio. O outro, uma mulher, vitoriosa, porém, deitada, desacordada. Por sua face escorriam gotas frias de suor, apesar de sua pele queimar em febre. Alguns hematomas pelos braços faziam o rapaz, ajoelhado ao lado da rede em que ela estava deitada, sentir-se culpado por seu sofrimento. Ele os causara.

Sorah murmurava palavras sem nexo. Seus lábios tremiam e seus punhos se mantinham fortemente fechados. Tanto que já escorriam gotas de sangue da palma de suas mãos. Seu corpo volta e meia arqueava para trás e para frente. Às vezes gritava.

Os olhos de Dart mantinham-se abertos e atentos, apenas de preocupação, pois não dormira naquela noite. Ficara ao lado da lifing o tempo todo.

E não sairia jamais.

Foi apenas por volta das sete da noite que as tormentas no corpo de Sorah cessaram. E às oito ela abriu os olhos vagarosamente, tendo como primeira visão o rosto preocupado e ansioso de Dart.

Viu que estava no próprio quarto, na torre. Pôs as mãos sobre os olhos e perguntou que horas eram. Dart murmurou alguma coisa e a abraçou forte. Em seguida a olhou nos olhos, num sorriso cansado e sonolento. Alguns segundos depois, caiu para trás, dormindo pesadamente.

Assim que amanheceu Sorah e Dart estavam juntos aos demais no quarto de Mirian e Nicka. Sabrina olhou entristecida aos dois lifings chegando ao mesmo tempo. Mas sua atenção fora desviada para o barulho de multidões que se tornava cada vez mais alto. Havia platéia maior que das outras vezes para assistir a esta luta. Talvez pelo fato de um dos lutadores ser aquele que obteve recorde em velocidade para matar. Até iriam ver a luta, se dez minutos de conversa não tivessem sido o suficiente para que os gritos dos lifings, indicando a morte de um lutador, não fossem ouvidos interrompendo o assunto.

Alguns monstros já saíam do estádio quando Sabrina olhou pela janela. A luta já havia acabado.

Depois do som de multidões saindo do estádio, chegou aos ouvidos dos presentes naquele quarto, o som parecido com o de uma torcida organizada, cantando frases em língua lifing. Dart foi o primeiro a ir à janela. Indicou aos outros que eram habitantes e lutadores do reino do Noite comemorando.

Dart deu passagem e Sorah foi até a janela. Viu, além dos lifings de seu território, uma porção chegando ao longe, todos empunhando espadas e lanças.

- Uma regra será quebrada hoje. – suspirou Sorah voltando-se para sentar-se na rede.

- O que quer dizer? – estranhou Belthor.

- Essa parte do território lifing é o único local de paz nessa parte da Ilha… São proibidas batalhas não autorizadas. Na verdade, essa regra é a única coisa que os reis concordam mutuamente. E bem… Um grupo enorme do reino Antigo está vindo aí lutar contra os do meu reino. – respondeu com naturalidade.

Dart virou-se bruscamente para olhar a janela e confirmou o que fora dito. Belthor foi o próximo, e em seguida, todos os outros por simples curiosidade.

- E o que acontece se essa regra for quebrada? – perguntou Hebel em tom sombrio.

- Não sei… considerando-se que quem está cuidando de tudo no meu reino seja Hantsu, irmão de Gaulis… ele provavelmente vai esperar uma decisão dos outros reis… No reino antigo quem está cuidando das coisas é o irmão mais novo de Dart… ele está, provavelmente, sendo guiado pela mãe por ser mais experiente… ela irá evitar ao máximo uma guerra, mas entrará com tudo se ela começar. Já o rei do território de Fogo fará tudo para que a guerra tenha início. Minha conclusão é de que o rei do território de Fogo declarará Guerra, a do reino antigo não poderá evitar e o do meu reino aceitará.

- Isso quer dizer que vai estourar uma guerra entre os três reinos? – assustou-se Sabrina.

- Não propriamente. – respondeu Dart de braços cruzados – Já há uma guerra entre os reinos há mais de quinze mil anos. Mas devido às diferenças extremas de climas, os soldados não podem invadir território alheio sem morrerem para isso. Alguns têm sido treinados no território humano, mas não há como fazer um lifing de gelo, treinado no território humano, suportar por muito tempo o calor do reino do Fogo. É preciso uma boa razão para combate.

- E a quebra da regra que proíbe lutas não autorizadas no território neutro é uma boa razão, presumo eu. – arriscou Belthor.

Sorah afirmou com a cabeça e deitou-se apoiada nas próprias mãos, ouvido de longe, o som dos guerreiros lifings de Dart vindo em direção aos seus. Belthor ficou olhando à janela o inevitável. Logo, cerca de cinqüenta guerreiros de cada lado se chocaram em violenta luta.

Belthor permanecia assistindo confusão lá em baixo, vendo os seres que mais despreza destruindo uns aos outros.

Em determinado momento seu rosto empalideceu-se e o corpo perdeu completamente as forças, fazendo-a cair pra trás.

No momento seguinte uma enorme luz preencheu o quarto.

Sorah deu um pulo e correu até a janela. Foi a primeira a chegar, pois todos os outros fizeram o mesmo instintivamente. No entanto uma mão a puxou para trás e tomou seu lugar. Era Belthor. Mas este não olhou imediatamente para fora. Permaneceu alguns segundos olhando para Sorah, preocupado consigo mesmo, com o peito subindo e descendo rapidamente. Tinha expressão de medo.

Olhou para fora e negou com a cabeça, incrédulo. Não deixava que ninguém mais visse o que ocorria.

Lá em baixo, a visão era pouca. Uma enorme nuvem de terra havia subido com o ataque. Parecia ter estourado um enorme balão de sangue pois respingos vinham até o andar em que estavam. O chão, manchado de vermelho, tinha corpos espalhados num raio de dez metros. Nenhuma criatura viva. Nenhuma criatura inteira. Os que sofreram menos danos tinham cabeça e membros decepados. Apenas um vulto irrompia no meio da poeira que baixava lentamente. Dava pra ver que tinha cabelos compridos e usava grandes vestes pomposas. Uma enorme energia emanava da criatura.

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Sorah empurrou Belthor com o máximo de força que pode. Assim que teve seu lugar na janela, sua visão foi parar no vulto.

Sua cabeça latejou de ódio e atormentações.

“Quem…? Quem é esse que venho aparecer agora…? Quem é esse que me trás felicidade e ódio? Por que agora…? Por que ele tem que aparecer AGORA!?”

- Belthor… - murmurou – quem é esse lifing?

- Você não sabe? – Belthor pareceu aliviado.

- Diga quem é ele. – disse entre os dentes cerrados.

Belthor arrumou qualquer forma de não lhe dizer a verdade.

- É o tal que é recordista de velocidade.

A resposta frustrou seus pensamentos como se lhe dissessem que jamais saberá quem é aquela criatura de verdade. E a necessidade, a vontade, o desejo de saber quem é ele lhe atormentava e castigava a cada segundo.

Dart estava assustado com o que ocorrera até ali. Estava ao lado de Sorah observando seus olhares. Nunca a vira daquele jeito. Queria ampará-la mas não sabia como. Se pudesse ler seus pensamentos veria que eles estavam pregados naquela criatura misteriosa.

Sorah só saiu dali quando o lifing deu a volta e desapareceu no meio da mata, deixando um cenário de carnificina para trás.

***

Dentro de um dia toda a inquietação de duas humanas transformar-se-ia em poder. Passada a inexperiência, o nervoso e o medo viraram ansiedades. O sangue corria quente, esperando por receber finalmente a carga extra de adrenalina tão comum nas lutas pelas quais se apaixonaram. Quem olhasse para seus rostos inocentes jamais imaginaria a força que carregam Nicka e Mirian.

Hebel andava mais próximo destas duas nos últimos dias. O fato de agora estar dormindo no quarto delas por não fazer mais parte daquele torneio era a razão dada. No entanto vem mostrando certa atração instintiva pela dupla. Mas ficava difícil dizer por qual das duas exatamente tinha essa atração ou se era apenas “coisa de Sabrina”, como dizia Mirian.

A resposta não tardou.

No dia seguinte, Sabrina subiu as escadas da “masmorra” e chegou ao quarto de Mirian e Nicka. Estavam os três conversando vivamente, rindo ás vezes. A humana ainda sentiu uma ponta de inveja pela felicidade dos humanos. Em seu quarto, habitado por Dart e Sorah, o que pairava era quase sempre uma aura de trevas doentia. Esse era o motivo pelo qual passava a maior parte do tempo com os três, quando os dois lifings saíam rotineiramente para treinar. Mesmo assim, sentia-se tão melhor ao lado de Dart do que de qualquer outro ser.

Já fazia uma semana que não iam à escola. Os guerreiros, e também seus professores, pareciam ter se esquecido do detalhe. Preferiam não lembrá-los. Afinal, havia muito mais coisas pra se preocupar do que a nota de ciências. O destino da humanidade, por exemplo.

Os rostos dos três viraram-se instintivamente quando Sabrina abriu a porta sem bater. Hebel deu-lhe um sorriso bobo, Nicka e Mirian acenaram em tom de licença. A humana à porta recusou o convite para entrar e disse-lhes em tom de discurso:

- É melhor treinarem um pouco. A luta de vocês é amanhã.

Nicka animou-se imediatamente.

- Tem razão. Mal posso esperar por essa luta.

- Se depois dessa, nossa próxima luta não fosse contra Nely e Nacknar, eu juro que estaria mais animada. – suspirou Mirian levantando-se.

Sabrina deu passagem e fechou a porta do quarto, quando todos os três já haviam saído. Em seguida os acompanhou.

Desceram as escadas em silêncio. A “masmorra” ficava mais vazia a cada dia que passava. Mais e mais lutadores eram mortos ou perdiam suas lutas, sendo obrigados a deixar o local.

Um grupo de lifings carniceiros já havia devorado completamente todos os corpos deixados no chão. A terra já encobria quase toda a que havia sido manchada de sangue. Era quase impossível dizer que ali tinha sido cenário para tamanho massacre.

- Por que não fazemos duplas para treinar? – sugeriu Hebel sorrindo – Se vocês forem treinar juntas terão revezar… mas se eu ou Sabrina treinar com vocês, podem se dedicar ao próprio treinamento, já que nós não vamos lutar.

Nicka sorriu aceitando a sugestão. Mirian passou direto para o lado de Sabrina.

- Não entenda mal, Hebel, mas da última vez que treinei com você, quase me matou. – explicou Mirian com feição de desculpas.

- Tudo bem. – aceitou Hebel num eterno sorriso.

As duplas se separaram. Mirian pediu para treinar perto de riacho, enquanto Nicka e Hebel adentraram na floresta.

Não era, de forma alguma, confortável ao humano, andar no meio do mato. Nem muito menos treinar naquele lugar. A densidade das árvores era grande e impedia livre locomoção. No entanto era bom estar ali com Nicka. Tantas vezes esteve sozinho, tendo perdido pai, mãe e irmãos ainda na infância, pois estes foram levados ao reino do Fogo servir de escravos. Hoje já estavam, com certeza, mortos. Nenhum humano comum sobrevive mais de um mês trabalhando sob o sol daquele reino. Mas na época que eles foram levados nenhum lifing havia pensado nisso. Hoje buscavam humanos mais fortes, que pudessem resistir mais, e evitar que precisassem estar sempre procurando por trabalhadores. Quem sabe se já não soubesse disso na época, a família e o vilarejo de Hebel não tivesse sido completamente destruída.

Já faria meia hora que os dois humanos treinavam juntos. Nicka, suada e um tanto cansada, desferia socos contra as palmas da mão de Hebel. Este permanecia sorrindo como sempre. Não tinham dito nada até o momento. Continuavam em um silêncio que não incomodava. Não era preciso dizer nada.

Na verdade, era sim.

Nicka começou a desferir fortes chutes, saltando, apoiando-se nas árvores para atacar por cima, e Hebel era obrigado a se defender da forma que podia.

Mas permanecia sorrindo.

- Nicka, posso fazer uma pergunta?

- Claro. – consentiu, sem parar de atacar.

- Quer se casar comigo?

A menina, pega de surpresa pela pergunta no meio de um salto, caiu no chão de mau jeito. Ajudada pelo rapaz, logo estava de pé.

- Você já me perguntou isso antes, Hebel.

Ele sorriu, afirmando.

- Eu sei. Mas dessa vez é sério.

O tom de voz que ele usou foi quase tão de brincadeira que ela duvidou que fosse realmente sério. Ele mal conteve o riso.

- Vamos voltar a treinar, não temos muito tempo.

Hebel tirou o sorriso da face.

- É sério mesmo.

Nicka o olhou nos olhos, desafiando-o a rir. Mas ele continuava sério. Talvez fosse a primeira vez que o via sem rir ou sorrir.

- Não pode estar falando sério. – desacreditou Nicka.

- É, eu sei… É difícil de acreditar. – ele riu novamente – É que eu sempre levei tudo isso na brincadeira, e nunca me importei muito. Então o fato de eu saber que te amava não me abalou nem fez muito significado. Talvez por isso eu não consiga fazer você acreditar que te amo.

Nicka sentiu como se uma água gelada fosse derramada sobre suas costas. Convivendo com Flértis a vida toda, não tinha, nem nunca teve um único pretendente. Isso nunca a abalou nem muito menos se lembrava do fato. Fora criada para defender a Lágrima desde criança. As palavras daquele jovem rapaz, sorrindo como se tudo não passasse de uma brincadeira eram únicas e inéditas em sua vida.

- Hebel… como pode dizer uma coisa dessas dessa maneira?

- Não sei… é que eu não sei dizer de outra forma. Isso atrapalha não é?

- Não tem como acreditar… não posso entregar minha vida a você.

O garoto baixou a cabeça fingindo um sorriso.

- É claro… não sei no que estava pensando… devo provar meu amor antes de qualquer coisa.

Nicka não imaginava que ele ainda insistiria. Achou que tinha dito algo de forma errada, que ainda dava esperanças a ele.

- Não… Hebel… você é mais novo que eu… É… irresponsável… e ainda por cima pede pra se casar com todas as garotas que encontra…

Hebel podia vê-la esvair-se de suas mãos, perdendo-a pouco a pouco.

- Tudo bem… - mentiu sem conseguir fingir o sorriso.

Nicka sentiu uma enorme dor no coração, uma ponta de arrependimento. Não suportava mais olhar pra ele e ver aquele olhar triste. Deu-lhe as costas e, indo embora, Hebel lhe chamou novamente. Ela parou para escutar sem se virar

- Não vou mentir… é a primeira vez que me sinto mal ao ser recusado. Também é a primeira e única vez que falava sério.

A dor em seu coração aumentou junto aos batimentos do mesmo. Foi embora sem lhe olhar novamente. Não queria ver aquele rostinho de garoto com a feição entristecida. Caminhou a passos largos em direção ao riacho onde, Mirian e Sabrina treinavam. Com a sensação de que seu peito seria esmagado por culpa.

Na metade do caminho, lágrimas começaram a escorrer. E quando encontrou as duas amigas desatou em choro.

- O que aconteceu? – assustou-se Sabrina.

- Com certeza o Hebel quase a matou. Foi assim comigo da última vez.

- Pra ela chorar assim só se ela tivesse o matado, Mirian. – irritou-se Sabrina.

Nicka não conseguia, apesar de tentar falar entre os soluços. Com pressa, Mirian leu seus pensamentos, impaciente em saber o que tinha ocorrido. Logo em seguida, levou as mãos à boca, incrédula. Sabrina quis matá-la com os instantes que houve entre o tempo daquela expressão de espanto até ela começar a falar.

- Hebel pediu ela em casamento.

Sabrina não pareceu surpresa. O rapaz já havia feito isso com todas.

- Grande coisa.

- Mas dessa vez foi sério. Ele se declarou pra ela. E ficou triste quando ela recusou.

- Mas porque exatamente você está chorando? – perguntou Sabrina, dirigindo-se diretamente à Nicka.

- Por que eu não sei mais se queria recusar!