A Lobisomem

Velho castelo, novo professor


À medida que as ferias passavam, eu ficava mais e mais ansiosa para o começo das aulas. Eu me sentia, de certa forma, como a Alice daquele conto trouxa. Eu tinha caído na toca de um coelho e o meu mundo estava do avesso. Voltar para Hogwarts parecia, àquela altura, a única coisa real, que realmente existia e que ia ser sempre igual.

Claro que antes de embarcar no trem puxado pela familiar locomotiva vermelha, eu precisei passar por mais uma transformaçãozinha no Hospital. O doutor Zimmer disse que queria analisar as minhas três primeiras luas cheias para conseguir estudar alguns parâmetros. Isso significava que, de alguma forma, eu teria que conseguir escapar de Hogwarts e ir para o Hospital na terceira quarta-feira de aula. Quando eu perguntei para ele como, a resposta foi insípida:

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- Não se preocupe com isso agora. Tudo está sendo arranjado e você ficará sabendo assim que estiver confirmado.

Aí eu precisei me despedir, porque mamãe entrou como uma fúria na sala para me levar para casa. Mais uma vez não deixaram sequer que ela ficasse no Hospital enquanto eu passava pela metamorfose.

Alguns dias depois eu estava sentada no banco marrom de uma das cabines do quinto carro do Expresso de Hogwarts. Agatha e Zoe estavam comigo, e todas nós esperávamos Paul. Felizmente, nossa cabine tinha uma vista privilegiada da cabine onde estava Kevin e seus amigos. Com sorte eu conseguiria vê-lo indo e vindo da reunião dos monitores.

- Oi, meninas! – Disse Paul, ofegante, assim que nos encontrou. – Quase perdi o trem.

Paul, assim como nós, estava indo para o terceiro ano. Ele era negro, alto e magro e eu dizia que ele era o próximo Ozwald Boateng, e ele sempre retrucava dizendo que preferia ser Will Smith, mesmo ele não sendo parecido com nenhum. Ele tinha o rosto simétrico e com traços bem definidos, os olhos castanhos muito escuros e aquele jeitão de quem sabe das coisas. Eu o tinha conhecido no primeiro ano, através de Zoe. Enquanto eu e Agatha fomos selecionadas para a Grifinória, Zoe foi para a Corvinal. Nenhuma surpresa, com aquela mente afiada, bela aparência e personalidade forte. De qualquer forma, lá ela conheceu Paul e ficou muito amiga dele. Nós o fagocitamos para o nosso ‘grupo’ logo em seguida.

- E aí, Paul? Como estava o Marrocos? – Eu perguntei.

- Lindo, nossa. – Ele falou, sentando na minha frente. Agatha e Zoe estavam entretidas em sua conversa e deram apenas um rápido oi para Paul. – Você iria adorar. Rabá é maravilhosa, sim, mas não se compara com Casablanca. Tinha tanta coisa por lá...

E ele começou. Quando Paul começava a falar, principalmente comigo, que sempre fui mais de ouvir, ele nunca terminava.

Eu não o interrompi. Poderia ter dito que sim, que eu adorei Rabá e Casablanca quando fui para o Marrocos, dois anos atrás com a mãe, mas resolvi deixá-lo falando. Ele continuou contando tudo que tinha feito por lá, e minha atenção estava divida entre o que ele falava e a janelinha da cabine, por onde, a qualquer momento, eu poderia ver o Kevin passando.

Kevin não passou pelo corredor e Paul não parou mais de falar. O trem continuou a viagem que pareceu durar séculos.

Hogwarts continuava sendo a mesma de sempre, um castelo de pedras duras e frias. Isso me confortou mais que qualquer coisa, e eu quase me senti um tanto culpada por ficar mais a vontade no dormitório da Grifinória que no meu próprio quarto em casa. O mundo voltou a parecer um lugar seguro, nem tudo tinha mudado.

Dizer isso, no entanto, também significa que algumas coisas mudaram. Logo no primeiro dia de aula, eu pude ver que mudanças não aconteceram só comigo. A professora Sanne não estava mais lecionando, então um novo professor precisou liderar a aula de Poções.

Poções era a minha matéria favorita. O conteúdo parecia tão simples quanto fazer uma receita de panquecas. Ainda melhor era o fato de a professora Sanne perceber isso e me dar crédito. Nos dois primeiros anos eu consegui uma boa parcela de pontos para a Casa por realizar as melhores poções da turma.

O novo professor se chamava Lara. Ele era albino, com assustadores olhos rosados e gigantescos cílios loiro-brancos. Por alguma razão, quando o vi pela primeira vez no Saguão Principal, senti que não gostava dele e que era correspondida. Sacudi a cabeça e tentei tirar esse pensamento, dizendo a mim mesma que ele deveria ser um ótimo profissional para ter sido contratado pela escola e que eu iria gostar das aulas de Poções tanto quanto eu gostava com a professora Sanne.

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Não é a toa que eu nunca ganhei na loteria.

Poções seria a primeira aula que teríamos naquele ano. O desastre começou quando eu não acordei.

- Liz... – Agatha tentou me sacudir de leve, sem resultados. – Liz. LIZ!

Acordei assustada com o grito dela.

- Agatha, que diabo está acontecen... – Num movimento cômico, eu tentei me virar e acabei caindo da cama.

- Liz! – Agatha exclamou, com aquela voz de quem não sabe se oferece ajuda ou cai na risada. – Está tudo bem?

- Ai... – Eu gemi. – Acho que eu estou bem...

- O que você tem? – Agatha acabou rejeitando a hipótese do riso e me ofereceu a mão para me ajudar a levantar.

- Que horas são? – Eu perguntei, voltando a ficar sonolenta depois do choque inicial.

- São quase oito horas e...

Antes que ela pudesse terminar a frase e dizer “você vai se atrasar” eu já tinha trocado de roupa e estava amarrando o cabelo em um rabo-de-cavalo.

- Que droga! O que aconteceu? E o meu despertador? Por que você não me acordou antes?

- Eu não acredito nisso! – Agatha reclamou.

Ainda terminando de arrumar a gravata, eu e ela descemos correndo para conseguir engolir algo de café-da-manhã antes da aula.

- Vocês estão atrasadas. – Disse Zoe assim que chegamos perto o bastante.

As mesas da Grifinória e da Corvinal ficavam lado a lado, então geralmente nós sentávamos uns de costas para os outros ou de lado para a comida, conversando entre as mordidas.

- A princesinha ali não conseguiu acordar. – Agatha disse. – Desligou o despertador enquanto dormia e eu precisei berrar no ouvido dela para conseguir alguma reação.

- Não amola. – Eu bufei depois de alguns goles de suco de abóbora.

- Qual a primeira aula de vocês? – Paul perguntou e eu pude perceber que tanto ele quanto Zoe já haviam terminado de tomar café.

- Poções, e depois Feitiços. E vocês? – Agatha respondeu enquanto eu atacava um croissant de presunto.

- História da Magia. – Ele deu de ombros. – Nós vamos poder continuar dormindo, pelo menos. Depois vamos ter Poções também.

Eu estiquei a minha mão para pegar um segundo croissant e, como uma imagem que vai perdendo contraste, ele desapareceu da mesa. O horário do café havia terminado e agora todos deveriam se dirigir para as salas de aula.

- O quê? Já? Não! Eles não podem fazer isso! – Eu choraminguei.

- Como se você fosse conseguir comer mais... – Agatha disse. – Vamos, temos que ir para a aula.

Com um olhar tristonho e faminto eu me despedi de Zoe e Paul enquanto Agatha me arrastava para as masmorras.

Felizmente chegamos à sala antes do professor. Escolhemos uma mesa na terceira fileira, perto o bastante para conseguir prestar atenção em cada palavra que o professor dissesse e longe o bastante para podermos conversar em voz baixa sem que ele nos ouvisse.

Eu enfiei a mão dentro da minha mochila para pegar os matérias que achava que fosse precisar. Estojo, um rolo de pergaminho, o meu livro... De alguma maneira, eu não conseguia encontrar meu livro. Virei todo o conteúdo da mochila em cima da mesa, e nada dele.

- Não! – Eu disse.

- O que foi agora, Liz? – Agatha sussurrou enquanto mais alunos entravam na sala.

- Eu esqueci o meu livro! – Sussurrei de volta, com um tom de pânico na voz.

- Grande coisa, usa junto comigo.

- Não dá! O meu livro tem todas as minhas anotações... Eu vou ficar perdida sem elas.

- O que você vai fazer? – Agatha perguntou.

Eu olhei para o corredor pela porta aberta. Não havia o menor sinal do professor.

- Eu vou buscar. – Eu disse enquanto me levantava silenciosamente. – Já volto.

- Liz! – Agatha segurou o meu braço. – Não vai dar tempo. Fica aqui.

- Não, eu volto rapidinho. – Me desvencilhei dela e sai da sala.

Corri o mais rápido que pude. Lembrei de uma velha passagem secreta que, de alguma forma, subia direto ao sétimo andar, onde ficava a torre da Grifinória. Entrei no dormitório e encontrei meu livro depois de dois minutos de procura, travessamente escondido embaixo da minha cama. Abracei o livro e fiz o percurso inverso. Esbarrei em alguém no caminho e gritei “Desculpa!” antes de fazer uma curva fechada.

Quando cheguei de volta às masmorras, o professor estava com a mão na maçaneta, abrindo a porta para entrar.

- E você, quem é? – Ele me perguntou com uma voz tão sem cor quanto o seu rosto.

- Eu... eu... – Ofeguei um pouco antes de conseguir ar o bastante para responder. – Eu sou Elizabeth Morgan, professor.

- A próxima vez que você chegar à sala depois de mim, Srta. Morgan – Ele falou o meu nome como se tivesse o gosto de vinagre. – Não só não a deixarei entrar como lhe darei uma detenção.

Meu coração ainda estava batendo acelerado depois da corrida, mas não só por esse motivo. O professor abriu a porta com um gesto teatral e deu espaço para que eu entrasse antes dele. A veste dele se inflou com o vento, como uma capa poderosa ou algo do tipo. Respirando pesado, eu voltei a sentar ao lado de Agatha, onde eu senti os olhos do professor me perfurando como agulhas de acupuntura.

Pelo bem da minha paixão pela matéria, fiz de tudo para gostar do professor no decorrer da aula. Tentei entender o método de ensino, mas o conteúdo parecia fluir muito devagar, sendo tão emocionante quanto assistir à grama crescer. Cada pergunta, cada ingrediente no meu caldeirão ou qualquer sopro da minha respiração parecia despertar uma de duas reações no professor. Ou ele me olhava por um ou dois segundos, com a expressão de que não entendia o que eu falava e continuava o conteúdo ou ele simplesmente me ignorava totalmente. Não sei dizer qual me deixava mais aturdida.

Depois de dois períodos nas masmorras e de todo o esforço possível para gostar do professor, eu finalmente desisti e abracei o ódio que ele me incutiu.

- O que foi aquilo? – Eu perguntei à Agatha quando já estávamos fora do alcance do professor. Eu precisava de alguém para confirmar a minha teoria que o professor Lara era, na verdade, um enviado do inferno.

- Aquilo o que? – Ela replicou.

- Você tá falando sério? – Eu perguntei, descrente. Não era possível que ela não tivesse reparado em nada. Sussurrei entre os dentes quando ela me olhou com uma expressão confusa. – O professor!

- Você só não gostou dele porque ele não ficou impressionado com a sua Poção de Memória... – Ela deu de ombros, ajeitando a alça da mochila no ombro. – Ele é legal, passa bem o conteúdo.

O meu queixo caiu. Eu não costumava ser insensata e criar picuinhas com qualquer professor que me olhasse torto. Eu era a aluna mediana e realista, que precisava estudar por horas a fio para passar na maioria das matérias. Menos uma, e aquele professor arrancou e mutilou qualquer gosto que eu teria pela matéria, exagerando no melodrama. Além de ignorada, eu havia sido visualmente fuzilada. A pior parte disso tudo foi a resposta da Agatha, quando eu expus isso à ela:

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- Nada a ver, isso é tudo coisa da sua cabeça, Liz.

Se desse para piorar, piorou quando Zoe e Paul nos encontraram no almoço, depois de uma cansativa aula de Feitiços com o idoso professor Filtrwick e seu jeito esganiçado de falar.

- Vocês já tiveram aula com o novo professor de Poções? - Zoe disse com a sua melhor voz animada. – Ele é o máximo.

Paul, pelo menos, teve o bom senso de ler a minha expressão incrédula e dizer que o professor nem era tão bom assim. Mas eu sabia que, no fundo, ele tinha adorado o professor e só dizia aquilo para fazer com que eu me sentisse melhor.

Com um suspiro derrotado, eu desisti de ter aliados para conspirar contra o professor e voltei a minha atenção para o purê de batatas com molho que estava no meu prato, querendo compensar um ralo café-da-manhã.