A Lenda da Raposa de Higanbana

28: Os honoráveis convidados.


Gintsune permaneceu por tanto tempo ali curvado e imóvel sobre o corpo da raposa de higanbana, abraçando-a, que Yukari chegou a pensar que ele não voltaria mais a se mexer, uma nova e triste estátua de raposa para substituir a destruída, até que tocou suavemente em seu ombro.

—Gintsune. — chamou o mais delicada que pôde. — Nós precisamos ir agora.

E, após lançar-lhe um olhar distante e vazio como se sequer fosse capaz de reconhecê-la, ele acenou vagamente com a cabeça e começou a levantar-se bem devagar, enquanto segurava a raposa em seus braços com todo o cuidado do mundo, e Yukari ainda chegou a retirar seu haori e pô-lo sobre ela, cobrindo-a parcialmente, antes de se porem a andar em silêncio.

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Higanbana era uma cidadezinha pequena e quieta, e nada era realmente distante ali, mas naquela noite aquele breve caminhada da praça até a pousada pareceu muito, muito longa.

Yukari olhava para Gintsune caminhando lentamente ao seu lado, mancando com a perna esquerda e sabia que aquela não era a hora de falar, mas não pôde se conter mesmo assim:

—Você libertou a raposa de Higanbana.

Ele confirmou com a cabeça.

E então se manteve em silêncio por tanto tempo que Yukari achou que não responderia mais nada, até que o ouviu murmurar:

—Aquele exterminador sempre esteve atrás de mim.

Ela assentiu.

—Você já me contou isso.

A cabeça da raposa repousava inerte sobre seu ombro, com a respiração saindo em suaves baforadas que se condensava diante de seu longo focinho, Gintsune ajeitou-a melhor em seus braços, Yukari não havia percebido como a madrugada esfriara até aquele momento, ela abraçou-se e fez o melhor que pôde para não começar a tremer.

—Eu sei que assumiu os crimes, admitindo ter devorado todas aquelas garotas… — ele disse lentamente, com seu cansaço transparecendo em cada palavra. — Mas ela jamais faria isso.

Yukari engoliu em seco.

—E como você sabe disso? — apesar do frio, sentiu uma gota de suor descer-lhe lentamente pela lateral do pescoço.

Gintsune parou, apertando sofregamente o corpo da raposa contra si, enquanto se curvava sobre ela, antes de confessar em voz baixa:

—Ela é minha irmã.

Aquela informação levou tanto tempo para ser processada no cérebro de Yukari que, quando ela deu por si, Gintsune e sua irmã já iam longe, quase desaparecendo no final da rua.

—Me desculpa por tê-la assustado antes. — ele lhe disse quando ela os alcançou novamente.

Yukari balançou a cabeça, parando ao pé da colina da pousada Shibuya.

—Eu achei que você fosse se matar.

Confessou olhando rapidamente para seu braço parcialmente queimado e começando a subir as escadas, mas Gintsune não a seguiu e, parando, Yukari olhou para trás, Gintsune estava parado na rua, olhando perdidamente à volta, como se nem soubesse onde estava.

—Ela vai precisar de um lugar seguro para ficar enquanto se recupera. — comentou mais para si mesmo do que para ela — O melhor seria guardá-la em um objeto, mas considerando tudo o que passou, isso com certeza não seria bom… mamãe sempre dizia que o melhor lugar para se recuperar é em um corpo humano, mas se tratando da irmã, isso seria bastante perigoso, ela já está esgotada e manter essa forma física só vai retardar ainda mais a sua recuperação, se eu ao menos pudesse tirá-la do plano físico, mas aquelas coisas asquerosas são irritantes demais, acho que vou ter que encontrar uma toca onde possamos…

—E por que não o meu quarto? — Arregalando os olhos, Yukari cobriu a boca quando se deu conta do que acabara de falar.

Gintsune lhe lançou um olhar esgotado.

—Seu quarto seria arriscado demais Yukari, eu não tenho condição alguma agora de criar ilusões, truques ou armadilhas.

—Eu tranco a porta. — afirmou ainda surpresa consigo mesma, mas nem por isso se deteve: — E lá não teria que lidar com nenhum animal selvagem.

—Yukari. — ele voltou a suspirar, mas ela sustentou seu olhar e ele estava cansado demais para discutir — Tudo bem, nunca gostei de dormir no meio do mato mesmo.

E assim acompanhou-a, quase se arrastando, escadas acima.

*.*.*.*

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Agarrando suas saias firmemente, Mayu virou correndo desesperadamente os sinuosos corredores daquele castelo e, sentindo o coração martelar-lhe na garganta, olhava para trás por cima dos ombros a cada quatro ou cinco passos, mas aquelas roupas perfumadas tão longas e pesadas e aqueles cabelos oleados tão compridos não eram feitos para correr, e logo ela viu-se tropeçando e caindo, gritando surpresa quando o chão ergueu-se para encontrá-la… quando um par de braços a amparou gentilmente.

—Honorável esposa! — Kanji exclamou surpreso pondo-a de volta sobre seus próprios pés, a volta deles, meia dúzia de seus pequenos ajudantes, que mal lhe chegavam à altura dos joelhos, os cercavam com os braços carregados de pergaminhos. — Onde esteve?! Botan está louca procurando-a, sabia?

Claro que sim, afinal lhe custou muito trabalho conseguir despistá-la.

Mayu sabia que eles deviam ter ido embora daquele lugar no dia em que chegaram, nunca deviam ter concordado em seguir aquela nure-onna para início de conversa… não que ela tenha lhes dado muitas opções.

No momento em que concluiu que eles cinco poderiam ser os “tão aguardados convidados de seu mestre” ela se impusera como sua escolta e os guiara pelo rio até o porto de uma grande cidade, onde gritou que os convidados do mestre haviam chegado e mandou chamar por uma carruagem, sem sequer parecer escutar quando Satoshi garantiu que só poderia estar havendo um engano ali, e logo os cinco viram-se cercados por youkais em festa que os retiraram de seu pequeno barco e, praticamente carregando-os, os atiraram no interior de uma gissha sem boi algum para puxá-la.

—O que está acontecendo? — Akihiko sussurrou sobressaltado quando o veículo se colocou em movimento.

—Eu não sei querido. — Mayu respondeu-lhe cautelosamente enquanto embalava o pequeno Akio, tentado não transparecer o quão assustada estava também, embora soubesse que isso era inútil perante os sentidos apurados de seus meninos.

—Eles estavam dizendo que somos aguardados pelo mestre deles. — relembrou Akira enquanto tentava espiar o lado de fora — Será possível que Gintsune-Sama também governa aqui?

—Impossível. — retrucou Satoshi espiando a cidade junto com o filho — Veja como aqui todos são tranquilos e organizados, não tem nada haver com aquela bagunça da qual aquele cretino se apossou e onde tínhamos vivido até…

De repente ele recuou, puxando o primogênito consigo bruscamente, e instantes depois as cortinas da carruagem foram puxadas para o lado e uma dúzia de youkais em quimonos coloridos os recebeu.

—Honoráveis convidados, sejam bem vindos, sejam muito bem vindos! — o youkai que os liderava, um homem de feições muito magras e cabelos lisos e vermelhos escovados para trás, vestidos em roupas formais negras, os saudou — Sua chegada era aguardada.

Mayu pigarreou.

—Perdoe-nos, mas só pode estar havendo um engano.

—Não há engano algum. — o porta-voz retrucou afável — Lamentavelmente o mestre precisou ausentar-se, mas eu sou Kanji, o intendente deste castelo e ele deixou-nos instruções específicas para sermos bastante atenciosos com nossos honoráveis convidados.

E estendeu-lhe a mão para ajudá-la a descer, a qual Mayu aceitou hesitante.

—Certamente vocês estão cansados da viagem, o que acham de um banho antes do jantar? — ele ofereceu solícito.

Ainda sem entender muito bem o que estava acontecendo ou o que fazer, eles acabaram aceitando e, cercados pela criadagem, o seguiram, enquanto Kanji os guiava com um caminhar de passos miúdos e ombros encurvados, esfregando as mãos de maneira constante e tomando cuidado para que sua cabeça nunca se elevasse acima da cabeça do casal.

—A dama pode usar essa casa de banhos. — indicou com uma mesura acompanhada de seu constante esfregar de mãos — Quanto aos senhores, podem usar…

—Somos uma família. — Satoshi declarou firmemente, enlaçando-lhe a cintura e puxando-a para junto a si — Ficaremos juntos.

As mãos de Kanji apertaram-se brevemente uma contra a outra.

—Oh claro, é evidente. — concordou com uma série de rápidas mesuras

A um sinal seu, uma dupla de servos adiantou-se para recolher as armas dos garotos, mas quando eles recuaram e agarraram os cabos de suas espadas demonstraram-se muito mais propensos a sacá-las do que a entregá-las pacificamente, os youkais afastaram-se assustados.

Kanji apertou as mãos mais uma vez antes de engolir em seco e, com mais uma de suas mesuras, indicar a casa de banhos.

O cômodo era um lugar comprido e com teto baixo, cujas paredes estavam todas cobertas por detalhadas pinturas de montanhas e quedas d’águas que quase pareciam se mover de verdade, não… que estavam se movendo de verdade, estava quente e tomado pelo vapor, e havia fileiras de bancos baixos de madeira de ambos os lados e duas imensas banheiras quadradas na altura do chão ao fundo, cada uma capaz de comportar pelo menos dez pessoas confortavelmente.

De joelhos, curvadas diante deles estavam uma dupla de mulheres de cabelos negros e peles pálidas, com quimonos brancos tão encharcados que se tornavam semitransparentes e colados aos seus corpos.

—Sejam bem vindos, honoráveis convidados, estamos aqui para servi-los. — disseram em conjunto, erguendo-se.

Mas ambas passaram por Mayu praticamente ignorando sua presença ali, como se sequer existisse, e se dirigiram diretamente a seus filhos e marido.

—Devem estar tão cansados, honoráveis convidados, deixe-nos ajudá-los a relaxarem…

Diziam com vozes suaves e inebriantes, desarmando-os sem receberem quase nenhuma resistência, enquanto deslizavam as mãos por seus ombros e tórax, e desamarravam os nós de suas hakamas… quando Mayu percebeu o que se passava ali, ela jogou Akio nos braços de Satoshi sem penar duas vezes e expulsou aos três de lá, mesmo sob protestos, e então, ao virar-se para encarar novamente as Ame-onna, lembrou-se de mais um último aviso e voltou a virar-se para gritar-lhes:

—E não deixem que nenhuma mulher os sirvam!

Muitas horas pareceram passar enquanto Mayu era incansavelmente banhada, limpa, perfumada, penteada e vestida, por diversas moças que alvoroçaram ao seu redor, até finalmente ser acompanhada por um espírito das flores de nome Botan — que proclamou orgulhosamente ter recebido a grande honra de servir como dama de companhia para a honorável esposa — ao salão de banquetes… e se deparou mais uma vez com seu marido e filhos recebendo bastante atenção.

Três belas mulheres penduravam-se junto a Satoshi, servindo-lhe saquê e tentando dar-lhe de comer na boca.

—Ouçam… eu realmente posso comer sozinho, vocês não têm que… — dizia virando o rosto e afastando-se de um pedaço de peixe que lhe era oferecido.

—Mas o mestre nos disse para sermos bastante atenciosas com nossos convidados… — uma delas ronronou quase ao seu ouvido, levando a taça de saquê aos seus lábios.

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Eram bakenekos, todas elas.

Pigarreando desconcertado ele afastou a taça de saquê.

—Sim, eu entendo, mas…

—Oh, você está tão tenso, seus ombros estão tão duros, eu posso lhe fazer uma massagem…

Propôs uma segunda gata, ajoelhando-se às suas costas, e Satoshi quase virou a bandeja diante de si quando se sobressaltou ao sentir as mãos dela em seus ombros.

Elas não pouparam nem mesmo aos meninos, pois Akihiko não se via em uma situação muito melhor que a do pai com outras duas o cercando:

—Você tem asas tão lindas…

Uma delas comentou acariciando suas penas.

—Sim. Obrigado. — ele agradeceu completamente vermelho e visivelmente sem saber o que fazer.

—Ora vamos. — riu a segunda garota que o servia, inclinando-se ainda mais para perto e erguendo-lhe o queixo com a ponta dos dedos — Estamos aqui para cuidar deles e não para admirá-los…

Ela estava tão próxima que quando sorriu de lado, o menino reagiu afastando-se ainda mais vermelho, mas isso só serviu para fazê-lo chocar-se com a garota que tocava suas asas, fazendo-as rirem.

Somente Akira, segurando Akio firmemente nos braços, é que parecia estar lidando melhor com a situação: sua expressão era tão irritada e sua aura tão obscura que mesmo as duas garotas designadas para servi-lo tinham dificuldade em se aproximarem, mantendo a bandeja de comida praticamente como uma barreira entre elas e o menino ao invés de se pendurarem a ele como suas amigas estavam fazendo deliberadamente.

—É tão nobre e corajoso de sua parte tomar conta de seu irmãozinho dessa forma… — uma delas comentou em tom amável, mas hesitante — Se quiser eu posso segurá-lo enquanto você aproveita sua refeição…

Mas o olhar mortal de Akira e a forma como ele se agarrou obstinadamente ao bebê a fez recuar engolindo em seco.

—Então talvez eu possa ajudá-lo…

A segunda garota fez menção de tentar dar-lhe de comer na boca, mas Akira afastou sua mão bruscamente com uma tapa.

—Posso me alimentar sozinho. — declarou ranzinza.

Sua acompanhante Botan ofegou ultrajada ao ver aquela cena.

—Não posso acreditar que Kanji-san enviou justo essas sete para servi-los! — exclamou arregalando os olhos, e então se virando para Mayu afirmou: — A senhora precisa fazer algo!

Estreitando os olhos, Mayu caminhou a passos firmes para o interior do salão.

—O que está acontecendo aqui? — exigiu saber.

—Mamãe! — Akihiko exclamou visivelmente aliviado.

Enquanto que Satoshi lhe lançou o mesmo olhar de desespero e súplica que sempre fazia quando Gintsune, muitas vezes enquanto bêbado, agarrava-se a ele com um corpo feminino e Mayu limitava-se a dar risadas — com a diferença de que agora ela não estava rindo nenhum pouco e ele aparentemente se recusava a afastar e esbravejar contra aquelas garotas da mesma forma que fazia contra seu irmão raposa.

Já as garotas não se acanharam, tendo ainda a ousadia de agarrarem-se ainda mais firmemente a seu marido.

—É a honorável esposa, chegamos a pensar que não viria mais, sabe? — uma delas disse esfregando sua bochecha a de Satoshi, que arregalou os olhos.

—Queiram perdoar-me pelo atraso. — disse gelidamente.

Uma das gatas ainda teve a ousadia de sorrir-lhe debochadamente.

—De forma alguma, minha senhora. — seus braços estavam rodeando o pescoço de Satoshi — Nós tratamos de servir muito bem aos honoráveis convidados.

—Ah sim? — sua sobrancelha ergueu-se elegantemente. — Pois o que estou vendo é que vocês estão tocando e pendurando-se deliberadamente ao meu marido, e pondo meus filhos em um ponto ultrajante de claro desconforto, e de minha parte vejo isso como uma extrema falta de respeito não só para com minha pessoa como também com eles, e também uma forma vergonhosa de se comportar, que se refletirá de forma desonrosa em seu mestre que tão generosamente recebeu-nos como hóspedes. — as mulheres puseram-se rígidas com suas palavras, deixando suas caudas felinas escaparem com os pelos todos eriçados, e Mayu olhou duramente cada uma delas antes de ordenar: — Deixe-nos agora.

Quando as gatas retornaram às suas formas animais e fugiram, passando por Botan e seu sorriso vitorioso na saída, Mayu tomou seu assento no lugar vazio à direita de Satoshi e finalmente permitiu aos seus ombros relaxarem, nunca havia se dirigido assim a ninguém, nem mesmo quando era a filha de um grande senhor, e sua mãe e sua ama viviam constantemente a repreendê-la por ser sempre “compassível demais” com os criados, “não têm que lhes pedir favores, só ordenar que cumpram suas funções, eles sequer são pessoas!” diziam-lhe.

—Eu…

Satoshi tentou falar algo, mas Mayu deu-lhe as costas, virando-se para seu primogênito e estendendo os braços a ele.

—Obrigada querido, mas pode passar-me o bebê agora, tenho certeza de que ele está faminto.

Ao seu lado Satoshi suspirou pesadamente, pensando em como seu primogênito realmente tinha a quem puxar o mau gênio em alguns momentos...

Pouco depois Kanji trouxe novamente às sete gatas e, com um olhar severo, obrigou-as a se curvarem e implorarem por perdão pelo seu comportamento vergonhoso, e então anunciou que estaria jantando com eles naquela noite — e assim poderia vigiá-las durante o resto da refeição para certificar-se de que se comportariam de maneira adequada.

Mas as ordens no castelo continuavam a ser que todos fosse bastante atenciosos e hospitaleiros com os honoráveis convidados, mas eles eram hospitaleiros demais e pelos dez dias seguintes Satoshi e os garotos foram constantemente assediados e perseguidos por servas solicitas ansiosas em atender e agradar a qualquer uma de suas vontades, enquanto Mayu passou a ter cada passo seu seguido, sendo impedida de fazer qualquer coisa sozinha, desde vestir-se até mesmo comer, eles a tratavam como uma relíquia, ficavam olhando-a — às vezes boquiabertos — por onde quer que ela passasse, alguns queriam tocar as pontas de seus dedos dos pés e orelhas por alguma razão, e haviam também aqueles que sempre murmuravam à sua passagem, chamavam-na “honorável esposa”, mas quando achavam que não podiam ser ouvidos alguns diziam “a furiosa esposa” e comparavam-na com uma hannya, chegando ao ponto de ela começar a cogitar sentir falta de quando os youkais queriam simplesmente devorá-los, mas sempre que perguntava à respeito do retorno do misterioso mestre daquele castelo, recebia a vaga resposta de que ele “retornaria em breve”, o que, considerando a pouca noção de tempo, comum aos youkais, poderia significar tanto alguns poucos dias quanto mais de um ano.

E nunca lhe era dito quem ou o que ele era.

—Há algo que eu possa fazer pela honorável esposa? — Kanji perguntou solícito e ansioso para agradar, acompanhado de seu constante esfregar de mãos. — Talvez queira apreciar um pouco de música e dança? Ou quem sabe prefira tocar? Há algum instrumento que seja de sua preferência? Ou compor poesia ou…

—Não! — ergueu as mãos, sentindo-se alarmada, mas logo pigarreou tentando recompor-se — Digo… estou procurando meu marido e filhos, você os viu?

Não os via desde cedo de manhã, mesmo que, no primeiro dia, relutaram até mesmo para deixá-la tomar banho sozinha.

—Certamente senhora. O honorável marido foi à cidade junto a Misaki e Ni Juu Hachi, e os meninos estão no campo de treinamento.

—Misaki? — repetiu — É uma mulher?

—Não! De forma alguma, honorável esposa! Misaki é um dos nossos guardas mais antigos. — ele respondeu apressadamente — Há… mais alguma coisa em que eu possa ajudar?

Mayu mordeu o lábio inferior.

—Você… disse campo de treinamento?

Akira e Akihiko estavam lutando simultaneamente contra um jovem de cabelos castanhos espetados que possuía uma grossa e peluda cauda marrom e empunhava uma kusari-gama, mas quando Akihiko saltou para atacá-lo, ele acabou por avistar a mãe chegando ao campo, carregando sua naginata consigo e trajando as mesmas hakamas e kosode de algodão grosseiro que o pai lhe dera para usar durante a maior parte da jornada deles.

—Mamãe?!

A distração acabou por cobrar seu preço, e logo ele sentiu um pé plantar-se no meio de seu peito e arremessá-lo para longe.

—Não se distraia! — O rapaz de cabelos espetados repreendeu virando-se para aparar com a corrente de sua arma o golpe de bastão que veio de Akira.

—Para você é fácil falar. — Akihiko reclamou erguendo-se sobre um cotovelo enquanto massageava o peito com a mão. — Não foi a sua mãe que apareceu armada de repente.

—Isso não é desculpa! — ele enrolou a corrente habilmente em volta do bastão de Akira ao mesmo tempo em que lhe dava uma rasteira, derrubando-o e simultaneamente tomando a arma de suas mãos. — E com essa são 11 a 3, há! Mas que tipo de treinamento recebem na Vila Tengu?! — Vangloriou-se logo antes de guardar sua foice e curvar-se perante Mayu — Cara senhora, é uma honra estar diante… ah!

Gritou de repente quando Akira entrelaçou as pernas em um de seus tornozelos e o derrubou no chão, girando e invertendo as posições até estar sentado sobre suas pernas, torcendo-lhe o tornozelo dolorosamente para trás, até que o jovem estivesse grunhindo e socando o chão.

—Chega! — socou o chão outras duas vezes. — Chega! Chega!

Por fim Akira largou-o e levantou-se vitorioso.

—Agora são 11 contra 4! — declarou.

Eles já estavam confortáveis àquele ponto ali.

O jovem instrutor levantou-se com uma carranca.

—Essa não valeu, a luta já havia acabado e eu estava ocupado cumprimentando a honorável esposa. — reclamou.

—Isso não é desculpa. — Akihiko proclamou sorridente, logo antes de correr até a mãe — Mamãe, o que está fazendo aqui? — olhou-a dos pés a cabeça — Empunhando sua naginata e vestida dessa forma…

—Também quero começar a treinar. — revelou sorridente.

Seu filho do meio ficou tão incrédulo que cambaleou dois passos para trás.

—A senhora treinar? Mas…

—Seu pai se propôs a me treinar uma vez há muito tempo. — explicou — Mas então Gintsune o convenceu de que eu era frágil demais para isso e ele nunca mais me deixou erguer uma lâmina novamente.

—Mamãe… — Akihiko chamou-a cuidadosamente. — A senhora é humana… os seus ossos se quebram facilmente…

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—E não se concertam tão facilmente. — Akira completou.

—Oras, calem-se os dois! — impacientou-se o jovem instrutor, com sua cauda agitando-se violentamente de um lado para o outro — Porque eu já estou cansado de surrá-los.

—Surrar-nos? — Akira ecoou com uma careta — Eu acabei de…

Mas o outro já nem estava mais o ouvindo.

—E não pensem vocês que eu não sei como lidar com humanos. — afirmou, embora ele próprio parecesse jovem demais para ter vivido na época em que havia humanos, mas como sempre tudo relacionado ao tempo, incluindo idades, em relação aos youkais era complicado e incerto, ele podia ter séculos de vida tanto quanto apenas algumas meras semanas. — Por isso sumam da minha vista de uma vez enquanto avalio a perícia da senhora.

—De jeito…!

Akira já estava pronto para protestar quando Mayu os chamou:

—Meninos, vão se sentar. Agora.

Akihiko ainda ficou parado onde estava por mais um tempo, olhando-os hesitante antes de seu irmão mais velho agarrar-lhe o braço e, com expressão fechada, o arrastar para longe, em direção a uma roliça noppera-bo, sentada sob a sombra de uma árvore, embalando o pequeno Akio nos braços, ela era uma das damas de companhia que lhe fora designada, mas Mayu nem sequer a havia visto chegar, elas eram realmente rápidas em lhe rastrear, não é mesmo?

—Muito bem senhora. — o jovem instrutor chamou-lhe a atenção de volta, segurando em cada mão um dos bastões empunhados pelos filhos de Mayu anteriormente — Primeiro começaremos com o mais simples, apenas alguns exercícios de aquecimento, com movimentos de ataque e defesa.

Ele estendeu-lhe um dos bastões.

Aquela altura ainda era início de tarde, mas o treino só pôde se estender por pouco mais de três quartos de uma hora, pois logo o céu começou a fechar-se, anunciando a torrente que já estava por cair.

Assim, quando Satoshi retornou ao castelo completamente encharcado já próximo ao cair da noite, ele encontrou-a de volta ao quarto, na companhia de Botan e da mulher sem rosto, já vestida em roupas de dormir terminando de arrumar Akio, enquanto uma mulher de longos cabelos brancos, usando roupas vermelhas e uma máscara branca, penteava-lhe os cabelos.

—O honorável marido está de volta. — anunciou a mulher de cabelos brancos por trás de sua máscara impassível, embora cada uma de suas palavras sempre parecesse carregada de petulância.

Aquela mulher…

Desde o dia em que haviam chegado ao castelo, três mulheres foram designadas para atenderem Mayu como suas criadas e acompanhantes, uma delas, um espírito das flores de nome Botan, seguia cada um dos passos dela durante todo o dia, como uma sombra ansiosa em agradá-la, já a segunda, uma noppera-bo, parecia ter se auto intitulado como ama seca oficial de Akio e passava a maior parte do tempo a carregá-lo de um lado para o outro, ambas assumindo orgulhosamente por inúmeras vezes — na verdade Botan era quem falava, mas a noppera-bo sempre concordava efusivamente com a cabeça — que, no momento em que o mestre anunciara que eles receberiam convidados, haviam implorado para, caso houvesse uma mulher entre eles, terem o favor de servi-la.

Já a terceira seria sua criada de quarto… mas aquela mulher...

Ela fora apresentada a eles quando Kanji se propusera a lhes mostrar suas acomodações.

—Esse será o quarto da honorável esposa. — indicou enquanto um servo abria-lhe a porta.

A mulher de cabelos brancos os aguardava lá dentro com as pontas dos dedos encostando-se e o rosto rente ao chão de tatame.

—Espero que meu quarto seja de seu agrado, minha senhora. — disse educadamente… até erguer o rosto e vê-la.

Daí não disse mais nada por quase um minuto inteiro, seu rosto estava inteiramente coberto por uma máscara branca com lábios vermelhos pintados e espaço somente para os olhos serem vistos, dois poços de escuridão, havia flores vermelhas pintadas ao lado esquerdo, duas acima da pálpebra, linhas finas e negras ondulavam aos seus redores, representando seus galhos e seguia até o final na lateral da testa, outra flor maior estava pintada na bochecha, também rodeada com linhas negras e curvas, ao lado direito da máscara havia uma faixa ondulada, pintada em vermelho com bordas negras, começando desde o meio da lateral da testa e descendo até o final da bochecha, onde dava uma volta e terminava pouco antes da têmpora, era uma peça toda pintada e decorada com a clara intenção de transmitir tranquilidade e não deixar nada transparecer, mas Satoshi e os garotos foram perfeitamente capazes de escutar o acelerar de seu coração, tal como o ruído que suas unhas fizeram ao arranhar o tatame quando suas mãos se contraíram ao fazer menção de cerrar os punhos, e então o som seco que fez ao engolir.

Quando ela voltou a falar, tudo o que dizia soava com um tom mal disfarçado de desdém e petulância:

—Que belo rosto tem a senhora, será uma honra servir a alguém com um rosto tão precioso.

Satoshi não gostou do tom daquela mulher, e justamente por isso se recusou a dormir no quarto contínuo e insistiu a dividir o quarto com sua esposa, algo pelo que ela ficou extremamente vexada, pois seria vergonhoso demais ambos dormirem juntos enquanto alguém os assistia, mas foi impossível demover essa ideia dele, de forma que foi assim que as coisas ficaram, e mesmo os garotos se recusaram a dormir no quarto lhes foi designado a princípio, pois ele estava alocado em outro pavilhão, e insistiram em se acomodarem no quarto contínuo ao dos pais.

—Você com certeza já está bem confortável aqui, para passar o dia inteiro fora dessa forma sem sequer dizer-me uma palavra. — Mayu comentou com um tom de voz preocupantemente tranquilo, sem lhe dirigir o olhar.

Satoshi avançou um passo adentro, fechando a porta de correr atrás de si, um acompanhante também lhe havia sido designado — Ni Juu Hachi, um dos pequenos assistentes de Kanji — bem como a Akira e Akihiko — Juu Ni e Kiyuu, respectivamente, outros dois assistentes de Kanji — mas somente as damas de Mayu tinham permissão para adentrar aquele quarto, os meninos tinham um makuragaeshi como seu próprio criado de quarto.

—Eu sei, mas foi algo de última hora. — explicou-se — Passei todos esses dias vasculhando o castelo de cima a baixo e nem sinal de uma raposa, então quando soube que um dos guardas estava indo á cidade, me propus a acompanhá-lo… mas nunca me passou pela cabeça que ficaríamos o dia inteiro fora.

—O honorável marido anda a caçar raposas com medo de que uma esteja à espreita esperando por uma chance de roubar sua preciosa esposa? — A mulher de cabelos brancos perguntou com tom quase de deboche enquanto amarrava uma fita branca frouxamente aos cabelos de Mayu.

Satoshi semicerrou os olhos com desconfiança, mas então Mayu soltou um longo suspiro, ela estava olhando para as pegadas úmidas deixadas por ele no tatame.

—Você está encharcado. — reclamou, recolhendo Akio aos seus braços — Senhoras poderiam nos deixar, por favor?

Botam e a noppera-bo curvaram-se e retiraram-se silenciosamente, mas a mulher de cabelos brancos limitou-se a recolher-se de volta ao seu espelho de mão, preso a um suporte ali perto, mas não sem antes soltar mais um de seus comentários insolentes:

—Uma dama que pede “por favor” é como a lótus que se perdeu em meio ao lodo.

Como sempre Mayu não deu a menor indicação de dar qualquer atenção aos comentários da mulher de cabelos brancos e tranquilamente esticou a mão em direção ao espelho, tirando-o de seu suporte e o deitando com a face voltada para o chão, só então Satoshi começou a despir-se até que suas roupas jazessem em uma pilha molhada no chão, e ele começasse a vestir uma muda de roupas secas.

—Mas então, você encontrou alguma raposa?

Mayu perguntou-lhe afastando a parte superior da roupa de dormir para o lado, para amamentar Akio.

Ela não acreditava de forma alguma que Gintsune pudesse estar naquela região, pois se esse fosse o caso, ele certamente viria correndo e saltaria sobre Satoshi no instante em que sentisse a presença dele ali, e também havia a visão da deusa oni, a raposa já não estava mais naquele mundo, mas também sabia que seu marido era a criatura mais teimosa do mundo, então sabia que de nada adiantava tentar dizer isso a ele.

Quando Satoshi suspirou consternado, ele já deu a esposa uma boa idéia do tipo de resposta que daria antes mesmo de dizer qualquer coisa:

—Não há raposas na cidade tal como não há no castelo, a população é em sua maioria de youkais pequenos, frágeis e pacíficos, exatamente como aqueles dois que nos deram o barco, esse é um lugar bastante diferente em todos os aspectos daquele de onde viemos. — sentou-se no chão com as pernas cruzadas, puxou sua camisa da pilha molhada e começou a esfregá-la na cabeça para tirar o excesso de água dos cabelos.

Se ao menos aquele maldito não tivesse levado seu chapéu...

—E ninguém sabia nada sobre raposa alguma?

—Oh sabiam. — ele arremessou a camisa de volta para a pilha molhada — Ouvi muitas histórias hoje, parece que há uma raposa roubando viajantes a leste daqui, ou são duas raposas vivendo próxima a nascente do rio, a dois dias de caminhada para o norte, ou é um bando inteiro, que prega peças pela região e a noite se reúnem debaixo de um velho carvalho para beber e festejar, um kappa jurou-me que pensou estar se afogando uns dias atrás, ele não a viu, mas tem certeza que foi uma raposa.

Todas aquelas histórias pareciam fazer jus a Gintsune… e a maioria das raposas, na verdade.

—Então há raposas na região? — perguntou incerta.

Satoshi sacudiu os ombros de forma desanimada.

—Quem pode saber? Em algum momento começou a parecer-me que estavam contando-me histórias de raposas só para me agradarem.

Mayu achou graça daquilo, a sua maneira Satoshi também estava tendo problemas com toda a adulação daquele lugar.

—O que pretende fazer? — perguntou-lhe afastando Akio do peito e arrumando suas roupas de volta ao lugar — Acha que já é hora de seguirmos?

Satoshi hesitou.

—Acho que seria grosseiro irmos antes de nos encontramos apropriadamente com o mestre do castelo que tão generosamente nos recebeu. — ele lançou um olhar de relance ao espelho ainda deitado no chão, Mayu havia se esquecido de desvirá-lo, a verdade é que todos eles estavam bastante curiosos para saber que tipo de mestre governava aquele castelo e como ele sabia que eles viriam, ou que tipo de engano havia se passado ali — E embora eu não ache que eles tentariam realmente nos prender por aqui, também acho que eles tentariam retardar a nossa partida o quanto pudessem. Eu falei com Kanji, ele me disse que o mestre nunca se demora, e mesmo nos períodos mais longos, nunca se afasta por mais se trinta e três dias. — deu de ombros — E como podemos saber quantos dias antes de nossa chegada ele saiu?

Mayu apoiou Akio sobre o ombro esquerdo e começou a bater-lhe levemente nas costas, tomando cuidado com suas asas.

—Botam me disse que ele voou dois dias antes de nossa chegada. — comentou.

De repente as sobrancelhas de Satoshi arquearam-se.

—Mas o que aconteceu com seu pulso?!

Pegando-lhe a mão direita ele a puxou para si, erguendo-lhe a manga e revelando a pequena mancha roxa demarcada contra a pele clara.

—Eu avisei-a que ele se daria conta de sua pequena travessura. — O sussurro abafado ecoou do espelho ali perto.

Arregalando os olhos, Mayu puxou rapidamente a mão de volta e desviou o olhar.

—Não foi travessura alguma. E eu ia lhe contar... — afirmou nervosamente — É só que hoje eu... — umedeceu os lábios — Comecei a treinar.

—Treinar? — repetiu incrédulo — De que jeito?!

—Com pedaços de pau. — A resposta abafada veio novamente do espelho e Satoshi pegou-o rapidamente, aquela era uma peça refinada também, com formato oval, a moldura era forjada e modelada detalhadamente em ferro branco e ornamentado com detalhes de outro vermelho e granadas esmagadas no formato de flores, a superfície espelhada ondulou como as águas de um lago, até que o reflexo dele desaparecesse e fosse substituído pela imagem da máscara branca da mulher de cabelos brancos. Ela seguiu falando: — A honorável esposa pode nos lembrar a imagem de uma sofisticada dama humana, apesar destas sobrancelhas negras e dentes brancos, mas ela sempre foi inquieta demais para satisfazer-se em somente estar cercada de poesias e canções, por isso hoje pegou um pedaço de pau e foi treinar junto aos filhos.

Aquilo deixou Satoshi em um estado frenético, “como aquilo havia acontecido?”, “onde estavam os garotos para deixar aquilo acontecer?!”, “ela por acaso havia esquecido o quão facilmente seus ossos podiam se quebrar?”, “se não era nada demais então por que estava roxo?”, “havia mais algum ferimento que ela tivesse “se esquecido” de contar a ele?!”, “então me deixe ver, tire as roupas!”.

A essa altura ele parecia ter se esquecido completamente da tsukumogami cujo espelho continuava em sua mão, e Mayu estava absolutamente vexada e indignada e a ponto de mandá-lo voltar voando para a vila tengu quando Botan e a noppera-bo retornaram junto com outro criado trazendo chá, para perguntar se gostariam que o jantar fosse servido a eles no salão ou ali mesmo em seus aposentos.

Aquilo encerrou o assunto… até a manhã seguinte, quando ele insistiu em levar suas reclamações também ao jovem instrutor de esgrima.

—Foi apenas um pequeno hematoma, eu disse que poderia lamber para ela, se ela quisesse! — Ele defendeu-se.

Era senso comum que youkais tinham uma regeneração muito mais rápida que a dos humanos, porém a saliva de muitos deles — pelo menos aqueles que não eram venenosos — tinha efeitos cicatrizantes em humanos… mas toda moeda tem dois lados, pois para muitos o sangue humano poderia se tornar perigosamente viciante, de forma que Satoshi nunca se atreveu a tentar curar algum dos pequenos cortes, queimaduras ou hematomas rotineiros de Mayu. Mas ainda assim ouvir a sugestão de outro youkai oferecer-se para curar algum machucado de sua esposa...

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—Vá arrumar sua própria esposa para lamber! — Satoshi reclamou com os olhos arregalados de indignação.

O comentário fez Mayu emitir um fino grito de constrangimento e seu rosto ficou tão vermelho que ela viu-se obrigada a escondê-lo entre as mãos.

Mas nenhum deles prestou-lhe qualquer atenção, mesmo sendo ela o pivô da discussão.

—Não pense que eu não sei como lidar com humanos! — O rapaz eriçou-se.

Satoshi semicerrou os olhos.

—Alguma vez já conviveu com algum humano antes dela?

O rapaz virou a cara com expressão fechada.

—Não desde que tenho idade o suficiente para me lembrar. — admitiu contrariado.

—Então como pode afirmar com tanta convicção que... — Satoshi parou e franziu o cenho.

Ele estava tão acostumado a conviver com a delicada fragrância de Mayu envolvendo-o e com o cheiro de seus filhos que, embora aquilo pudesse revelar-se gritante de tão óbvio para a maioria dos youkais, quase lhe passou despercebido, certamente o mesmo havia se passado com seus filhos.

—Você… é um meio youkai?

—Minha mãe era uma kamaitachi sim, e nunca conheci meu pai, mas ele certamente foi humano. — bufou mal humorado — Pode ser que ela o tenha matado, ela mesma nunca soube me dizer com certeza, naquela época ela era meio selvagem então era um costume seu dormir com homens humanos para roubá-los e matá-los na sequência.

Um meio youkai, assim como seus filhos, Satoshi quedou-se quieto observando-o com atenção.

—Não sou o único meio youkai da região, muitos fracos e rejeitados se reuniram ao redor do mestre. — O instrutor declarou com expressão mal humorada e incomodada — Pode ser verdade que os humanos desapareceram antes que eu tivesse metade da idade do seu pirralho mais novo, mas eu ainda carrego o sangue de um deles em mim, sei bem o que é ser perseguido e ter que lutar contra seres mais forte pela sobrevivência, e não há nessas terras espadachim mais habilidoso. — declarou sem nenhuma humildade — Portanto nunca irá arranjar instrutor melhor que eu para sua frágil esposa.

Pego desprevenido, Satoshi viu-se sem palavras para retrucar e acabou por relutantemente “dar sua permissão”, mesmo porque, segundo ele próprio, se tentasse proibir isso só serviria para acordar em alguma manhã e descobrir sua esposa treinando arremesso de grampos sozinha.

Mas daquele dia em diante se recusou a arredar o pé do campo de treinamento.

Temporariamente esquecido de sua “caça a raposas", ele permanecia sentado com Akio junto aos acompanhantes, assistindo o treinamento da esposa e dos filhos e algumas vezes até se intrometia a sacar sua espada ou pegar um bastão para enfrentar aos meninos, e logo se tornaram atração principal do castelo, todos os dias vários habitantes do castelo se reuniam em volta do campo de treinamento, para o completo aborrecimento do instrutor que gritava e os ameaçava para irem cuidar das próprias vidas… mas a plateia apenas continuou a aumentar dia após dia.

No quinto dia Botan se animou a participar também e insistiu em ensinar arco e flecha, mas enquanto Satoshi e os meninos possuíam alguma familiaridade com as armas, assim como era próprio dos tengus — na verdade mais do que apenas “alguma familiaridade” no caso de Satoshi, que afirmava ser capaz de acertar uma uva a cem metros de distância em pleno voo —, mas Mayu foi completamente incapaz de sequer dobrá-lo, até que ao fim Botan pediu-lhe mil desculpas ao mesmo tempo em que lhe prometia um arco mais leve — embora Mayu tenha lhe garantido que não havia necessidade.

—Você precisa ir mais devagar. — Satoshi reclamou avaliando carrancudo as bolhas e ferimentos em suas mãos submersas na bacia com uma infusão de ervas.

—Eu só preciso me acostumar. — Mayu afirmou calmamente, tirando as mãos da infusão e aceitando o tecido que a mulher sem rosto lhe estendia para começar a secá-las. — Está tudo bem.

Mas Satoshi não concordava, no passado as mãos de Mayu haviam sido macias e delicadas, os séculos vivendo sem as regalias de sua vida humana havia tornado-as ásperas, no entanto aos olhos de Satoshi elas ainda lhe pareciam finas e delicadas e lhe incomodava imensamente vê-las, inchadas, machucadas e calejadas daquela forma, e não era apenas isso, pois desde que começara com aquela loucura, ela já conseguira mais um par de hematomas e, pelo menos, meia dúzia de pequenos arranhões aqui e ali.

—Não acha que já está fazendo demais? — insistiu — Você não precisa fazer isso, eu e os meninos sempre estaremos aqui por você.

—São só algumas pequenas escoriações. — Mayu suspirou impaciente — Você e Gintsune conseguiram coisa muito pior naquela vez que se enfiaram em troncos e se jogaram daquela cascata “só de curtição”.

Satoshi praguejou mentalmente, aquele marau, quantas histórias de sua juventude ele havia contado para Mayu pelas suas costas?!

—Isso é aquilo são coisas bem diferentes. — resmungou contrariado — Ele e eu somos youkais, um rim perfurado, algumas costelas fraturadas e ossos expostos ou deslocados não...

—E até onde eu saiba nenhum humano morreu por causa de algumas bolhas nas mãos. — Mayu o interrompeu girando os olhos.

Satoshi suspirou impaciente.

—Senhoras. Será que poderiam deixe-nos? — pediu.

Botan e a Noppera-bo recolheram a bacia, as ervas e toalhas, e fizeram uma mesura antes de começarem a se retirar, mas quando a ungaikyo simplesmente retornou para dentro de seu espelho, ele chamou-as de volta e entregou o objeto a Botan para que o levassem consigo também.

Enfim sozinhos, Satoshi estendeu as mãos para Mayu.

—Me deixe ver. — pediu.

Os lábios de Mayu se apertaram brevemente.

—Eu já disse, não precisa se preocupar.

—Só… deixe-me ver. Por favor?

Mayu suspirou.

—Tudo bem. — concordou pondo suas mãos sobre as dele, com as palmas voltadas para cima.

As mãos dela sem dúvida haviam sido bem maltratadas, mas não havia sinal de sangue em canto algum… e Satoshi jamais seria capaz de fazer mal algum a Mayu, então certamente ficaria tudo bem. Sim, ficaria tudo bem. Não teria problema algum.

Ele inclinou-se para frente e beijou a palma da mão direita de sua esposa.

—O que está fazendo? — perguntou surpresa.

—Sh. — ele murmurou beijando a palma da outra mão.

Os lábios de Mayu ficaram entreabertos, porém ela não disse mais nenhuma palavra enquanto o marido beijava-lhe as palmas das mãos sucessivas vezes, e quando terminou com elas, subiu um pouco a manga de sua yukata e beijou também o pequeno hematoma em seu delicado pulso, quando a soltou, suas mãos estavam como novas.

Mayu virou-as lentamente de um lado para o outro diante dos olhos com admiração.

—Obrigada.

Satoshi esfregou a nuca por um momento.

—Eu vou curar também o resto de seus machucados, então me deixe vê-los. — pediu, e então após apertar a mandíbula por um momento completou: — Mas não vá tendo ideias, isso só é para pequenos ferimentos, alguns beijinhos não vão adiantar para ossos quebrados. Entendeu?

Ela riu de leve, cobrindo os lábios com a ponta dos dedos.

—Tudo bem, eu vou tomar cuidado. — prometeu, mas o rosto de Satoshi estava sério. — O que foi?

Ele segurou-lhe o queixo e se aproximou para olhá-la mais de perto, virando-lhe o rosto levemente de um lado para o outro, e passando o polegar levemente ao longo de seu lábio inferior.

—Quando foi que machucou o lábio?

—O que? — Mayu tateou o lábio inferior — Não, eu não…

Calou-se quando os lábios de Satoshi pousaram-se suavemente sobre os seus, afastando-se um momento mais tarde, embora ainda tenha mantido suas testas encostadas.

—Seu travesso. — ela sussurrou sorrindo.

—O que quer dizer? — perguntou inocentemente rodeando-lhe a cintura com as mãos, mas não conseguia conter o riso em sua voz — Eu só estou tratando dos machucados de minha linda esposa…

Murmurou com voz rouca, arrastando lentamente a ponta do nariz por seu rosto, até mordiscar-lhe o lóbulo da orelha e então aspirar o perfume em seu pescoço e, rindo, Mayu passou as mãos por seus ombros e entrelaçou-as atrás de seu pescoço, puxando-o mais para si.

Ninguém estranhou os ferimentos de Mayu estarem completamente curados na manhã seguinte, na verdade eles sempre pareciam muito mais intrigados quando os machucados ainda amanheciam ali, seres humanos não eram vistos naquelas terras há muito tempo… e para falar a verdade youkais nunca foram bem familiarizados com a biologia humana para inicio de conversa, mesmo quando ambas as raças conviviam.

—Honorável esposa, venha se refrescar, nós trouxemos água, chá e dangos.

Botan a convidou enquanto embalava Akio nos braços e a noppera-bo servia, em uma rara ocasião de “troca de papéis”, Satoshi estava ali também, inclinado sobre um par de pergaminhos junto a Ni Juu Hachi, Juu Ni, e Kiyuu, todos tão concentrados que mal reparavam no que acontecia ao redor.

—Obrigada Botan. — agradeceu sentando-se junto à youkai e aceitando um copo de água que a noppera-bo lhe entregava, e então arqueou as sobrancelhas ao ver o longo e cruel pino metálico com uma ponta afiada em uma das extremidades e uma aranha negra na outra que seu filho segurava — Mas o que é isso que ele tem?!

—É o meu kanzashi, senhora. — Botan sorriu orgulhosa — Certa vez briguei com uma joro-gumo por um tecido belíssimo que ambas queríamos, no fim a jogo-gumo perfurou minha mão com o kanzashi que trazia no cabelo e fugiu com o tecido enquanto eu estava com a mão grudada no balcão, mas ao menos ganhei um belo grampo de cabelo, não é?

—E você achou que essa arma seria um bom brinquedo para o meu filho nascido na última primavera? — riu incrédula observando o filho colocar a aranha metálica na boca.

—Nunca se é cedo demais para começar a treinar, minha senhora. — Botan argumentou solenemente.

Mayu riu passando a mão pelos cabelos e então se voltando para Satoshi.

—O que você acha meu honorável marido, talvez já seja a hora de esculpirmos a primeira espada de madeira para nosso filho?

Mas Satoshi estava tão concentrado nos pergaminhos que não deu o menor sinal de ter lhe escutado, Mayu tocou-lhe o braço, fazendo-o erguer a cabeça repentinamente.

—Hã? O que? — ele piscou ao vê-la ali, e então olhou para o campo de treinamento onde seus filhos lutavam simultaneamente contra o meio kamaitachi — Mas você não estava treinando um segundo atrás?

Perguntou confuso.

—Eu fiz uma pausa. — ela tomou um gole de água — E estou aqui falando com você há meia hora.

As orelhas de Satoshi se tornaram vermelhas.

—Eu sinto muito, eu não…

—Tudo bem, eu só estou brincando. — Mayu segurou sua mão — E então, o que você está estudando com tanto afinco?

—São os mapas da região, honorável esposa. — Kiyuu respondeu-lhe — Estamos marcando todos os lugares de aparições de raposas, segundo os relatos.

Ni Juu Hachi apontou e Juu Ni retirou as mãos das mangas e usou um pincel para marcar mais um círculo em um ponto do mapa, Kanji tinha ao todo cinqüenta ajudantes, todos muito pequenos, usando os mesmo tipos de roupas e máscaras, distinguíveis para Mayu somente pelos números pintados em suas testas.

—Raposas, eu acho que as invejo um pouco. — Botan suspirou olhando melancólica para os mapas. — Aos Tanukis e os Nekos também, todos eles podem ter o corpo que quiserem, independe daquele com o qual nasceram.

Mayu a olhou por alguns instantes, inclinando a cabeça levemente de lado.

—Botan o que…?

Alguém gritou.

Uma das criadas do castelo, que estava na plateia do treino daquele dia, estava apontando para o céu, ela cobriu a boca e gritou euforicamente mais uma vez, outros se juntaram a ela, apontando para o céu, gritando e falando, todos simultaneamente.

—O mestre! — diziam — O mestre retornou!

Quando Mayu e Satoshi ergueram os olhos, eles viram distante no céu um traço de luz que ondulava como uma imensa serpente, ziguezagueando pelas espessas nuvens de miasma, o clamor da multidão estava se tornando cada vez mais alto agora, como se não somente o castelo, mas toda a cidade estivesse em polvorosa, ainda assim de alguma forma os rapazes no campo seguiam alheios ao que acontecia ao seu redor, e seguiam concentrados unicamente em sua batalha: empunhando a foice com a mão direita, e girando a corrente em um círculo amplo com a esquerda, o instrutor mantinha ambos os seus alunos afastados.

Mas repentinamente saltando para frente Akira atacou-o, a corrente do meio kamaitachi enroscou-se em seu bastão e ele puxou-o em sua direção, arrancando-o de suas mãos, antes que o instrutor pudesse se livrar do bastão, Akihiko golpeou-lhe no estômago, fazendo-o largar a foice e levar a mão direita ao estômago ao curvar-se para frente, sem ar.

Atacando-o por trás Akira acertou-lhe a nuca com o cotovelo, deixando-o de quatro com um grunhido.

Baixando os olhos momentaneamente para a cena, um dos criados do castelo emitiu um som estrangulado e ajoelhou-se também, seguiu-se um efeito de onda no qual um após o outro começou a se ajoelhar, incluindo Mayu e Satoshi, até que somente os dois garotos estivessem de pé no centro de tudo, confusos, eles acreditaram por um segundo que tudo aquilo era para eles, até que Akihiko agarrou o braço do irmão e apontou o céu, e então os dois também se ajoelharam.

Foi o inicio do caos.

O retorno do mestre ao seu castelo mergulhou todos em um frenesi acelerado de youkais correndo sem parar, de repente tudo o que se dizia era “por que ele nunca avisa quando vai retornar?”, “o castelo não está pronto”, “levem os honoráveis convidados para o quarto!”, “temos que começar os preparativos para o banquete!”, “chamem Kanji-dono para…!”, e em meio aquele turbilhão os cinco foram levados de volta aos seus quartos e ali deixados.

Somente a mulher de cabelos brancos, no quarto de Mayu e Satoshi, parecia permanecer imperturbável.

—O castelo volta á vida sempre que o mestre retorna, ele é a alma e a essência desse lugar. — comentou calmamente, descascando algumas tangerinas em um prato, era tarde da noite, mas com toda a comoção o jantar parecia ter sido esquecido de ser servido — Também era assim no meu antigo lar, eu acho.

—Seu antigo lar? — Akihiko perguntou empurrando a porta de correr do quarto adjacente, ele trazia Akio consigo, amarrado junto ao peito, Mayu esperava que o bebê não estivesse mais com aquele kanzashi de ferro… não seria agradável se ele perfurasse o peito do irmão. — Onde você morava?

—Na casa de um grande senhor. — ela deu de ombros — Eu era o espelho de sua filha, uma bela dama cuja cor favorita era o vermelho, ouvi dizer.

—Ouviu dizer? — Akira repetiu também adentrando o quarto — Ela não era sua proprietária? Não a conheceu?

Ele sentou-se juntou aos irmãos, pegou uma tangerina para si e separou um gomo.

—Não realmente, naquela época eu não era o que sou hoje, era apenas um espelho comum sem consciência alguma.

—E como se tornou o que é hoje? — Satoshi questionou também pegando algumas tangerinas para si.

Não havia mais nada a se fazer, Mayu deu de ombros e pegou uma fruta também.

—O lamento. Um dia aquela bela dama sumiu, e a casa pareceu morrer, mas o pai da moça, o Senhor, não permitiu que nenhum de seus pertences fosse movido dali, ele ordenou que tudo ficasse exatamente como estava, e ele sempre visitava aquele quarto, ia até lá como se esperasse vê-la de volta e, quando não a encontrava, chorava sobre seus quimonos, tocava seus kanzashis, lamentava-se sobre sua penteadeira, estava tornando-se louco, diziam, desmoronando daquela forma apenas por uma filha perdida… o irmãozinho dela também não conseguia aceitar, incontáveis vezes ele vinha no meio da noite procurando-a, com a certeza de que ela havia voltado e quando não a encontrava chorava, gritava e se descontrolava, tinha certeza que uma raposa havia roubado sua irmã. E eu assisti, escutei e absorvi tudo aquilo.

A ungaikyo falava com calma enquanto terminava de descascar as tangerinas pacientemente, mas Mayu olhava-a sem piscar, com os lábios entreabertos, segurando sua tangerina esquecida entre as mãos, completamente presa àquela história.

—Levada por uma raposa? — murmurou.

—Sim. Eu nunca conheci a dama, é claro, mas os sentimentos de pesar e ausência acumulada naquele quarto eram tamanhos que sua presença era quase palpável ali, praticamente um fantasma. — a mulher de cabelos brancos terminou de descascar a última tangerina e limpou os dedos levemente em suas vestes — E então o Senhor daquela casa morreu, e seu filho, não o que clamava por raposas, o outro, o herdeiro, assumiu e decretou que o quarto devia ser desmontado, não o entendam mal, ele também amava a irmã, e sua ausência era dolorosa demais, por isso ele não queria mais manter aquelas coisas ali, mas o irmãozinho ficou furioso, ele fugiu menos de meio ano depois, não sei o que lhe aconteceu, mas os pertences da dama desaparecida foram divididos entre as três irmãs restantes. — sem perceber, Mayu esmagava a tangerina entre os dedos — A mais velha ficou com três de seus quimonos favoritos, alguns cosméticos, kanzashis e… comigo é claro.

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Mayu sobressaltou-se quando sentiu um toque em suas mãos, ao voltar-se para Satoshi, ele sorriu-lhe e delicadamente começou a abrir seus dedos e tirou dali a fruta esquecida e amassada, e então beijou as dobras de seus dedos.

Ele a entendia, aquela história era familiar de uma maneira preocupante.

Apreensivos, ambos voltaram-se novamente para a tsukomogami, seus filhos estavam tão concentrados na história que não perceberam nada daquilo.

—E depois, o que aconteceu? — Akira instigou-a destrinchando mais uma tangerina.

—Sim! — Akihiko inclinou-se ansioso para frente — O que aconteceu? O que aconteceu?

—Não é uma história tão interessante assim. — ela suspirou, mas continuou: — Não tenho certeza se era pelos sentimentos de perda e pesar que eu havia absorvido do pai e do irmão, que chamavam constantemente pela dama perdida, mas sempre que a irmã mais velha se via refletida em mim, ela só conseguia enxergar a irmã e pensar nela… e isso não era bom. Os sentimentos que ela possuía com respeito à irmãzinha eram bastante distintos dos que os homens da família tinham, pois ela estava cheia de rancor, inveja e mágoa, e eu absorvi todos estes também. Seu nome significava “beleza abundante”, mas ela não se sentia assim de forma alguma, suas orelhas eram salientes demais, seu nariz muito grande, os dentes projetavam-se para fora, eu costumo me lembrar dela como “minha senhora pesarosa”, pois ela estava sempre se lamentando. Por que sua irmã tinha que ser tão bela? Ela gostava de soltar os cabelos e erguer as saias para correr nas florestas da propriedade, não conseguia se portar como alguém de sua posição, punha-se de igual para igual com a criadagem, e precisava ser constantemente relembrada de que eles eram mais animais do que pessoas e ela estava em uma posição muito mais elevada, suas emoções também sempre eram cruas e a mostra, ela não sabia se controlar: ria, chorava e se irritava constantemente. Por que os deuses haviam desperdiçado tamanha beleza e graça como uma criatura tão selvagem?! — a mulher voltou seu rosto mascarado para Mayu, e seus olhos fixaram-se nela — E não importava que roupas ou cosméticos usasse, nunca se igualaria a beleza da irmã. E quanto mais se olhava através de mim, mais eu absorvia seus sentimentos e os refletia de volta para ela. Trágico, não é mesmo, minha senhora?

Com os olhos cheios d’água, Mayu não conseguiu responder coisa alguma, ela cobriu a boca com as mãos em concha.

—Mãe? — Akira chamou-a — Está… tudo bem?

—Com o passar dos anos minha senhora pesarosa foi deixando pouco a pouco de permiti-me refleti-la, seus cabelos estavam se tornando grisalhos e o rosto enrugado, mas a irmã, a linda irmãzinha, essa permaneceria para sempre bela, jovem e amada nas memórias de todos. — prosseguiu a mulher de cabelos brancos, inclinando a cabeça levemente de lado — Fui trancada no fundo de um baú, junto com os outros pertences que minha senhora pesarosa herdou de sua irmã desaparecida e deixada ali por muitos anos, onde permaneci cristalizando e consolidando os sentimentos que me deram à vida. Fui herdada pelas filhas de minha senhora pesarosa após sua morte, mas cada pessoa que se refletia em mim era tomada por sentimentos ruins: desesperança, insuficiência, insegurança, raiva de si mesmo… então passei de mãos em mãos e estive em muitos lugares, até que me vi em uma loja de penhores. Foi quando houve terremoto e, logo depois, o incêndio. — ela suspirou — Todos aqueles gritos, o choro, o desespero, foi quando pensei “ah… estou cansada de tudo isso”, então me ergui. E parti.

Satoshi passou o braço sobre os ombros de Mayu, ainda com as mãos sobre a boca, ela soluçou.

—A sua “senhora pesarosa”, você disse que seu nome significava “beleza abundante”, então ela se chamava…

—Yumi. — completou a ungaikyo — Oyumi-sama.

Em choque Mayu escondeu o rosto na curva do pescoço de Satoshi, sua irmã, aquele espelho pertencera a mais velha de suas irmãs, e antes disso pertencera a ela própria.

—O que houve?! — Akihiko levantou-se olhando da mãe para a youkai.

A mulher de cabelos brancos olhou-os de volta.

—O que você fez com nossa mãe?! — Akira irritou-se levando a mão ao punho da espada, mas ela não estava ali, pois ele havia deixado-a no quarto.

Satoshi ergueu a mão pedindo aos filhos que se acalmassem, ele passou a mão nas costas de Mayu e voltou-se para a tsukumogami.

—Como você se chama?

—Essa é uma pergunta bastante indelicada em um mundo como esse. — afirmou suavemente, erguendo a mão em direção a máscara — Na verdade nunca recebi realmente um nome, mas adotei o nome o qual tanto foi chamado diante de mim, se escreve com os mesmos kanjis para “seda” e “noite”.

Quando ela retirou a máscara, todos os olhos fixados nela se arregalaram, ela os olhou com um pequeno sorriso em seus lábios rubros, que combinavam com a pétala vermelha pintada no centro de sua testa e contrastavam com o castanho escuro de seus olhos e a palidez de sua pele.

—Chamo-me Mayu.

E seu rosto era um reflexo exato do rosto de Mayu.