Cheiro de desespero:

“Peguei uma injeção de anestesia total, sei que fazer isso seria errado, mas os gritos da garota eram agonizantes, pelo menos da dor eu conseguiria lidar. Por sorte a seringa não havia quebrado. Puxei uma parte da pele de sua barriga, ela gritou como louca, apliquei a injeção, levaria pouco tempo até ela fazer efeito. Usei um pouco mais de dose, então rapidinho ela não sentiria mais dor.”

O trânsito estava incrivelmente insuportável, grande parte das pessoas da cidade, por algum motivo estúpido, resolveram ir para o sentido do interior, deixando as avenidas e vias expressas lotadas de carros. Por sorte, eu ganho, algumas vezes, passagem, já que ligo a sirene da ambulância, mas parece que nem isso eles estão querendo ouvir hoje.

As buzinas eram quase como uma rajada de tiros. Minha cabeça estava quase explodindo de tanto barulho. Ainda estávamos longe do hospital, por sorte a garotinha atropelada não teve danos sérios, pois vai demorar muito tempo até chegarmos ao nosso destino.

Meu dia já tinha começado virado. Não deu tempo nem de tomar um café da manhã decente com minha filha, tive de sair antes para levar uma senhora que estava com suspeita de ter pegado o vírus A58P, para a UTI pública, para ficar em constante acompanhamento médico. Não me queixo disso, afinal, amo meu trabalho. Mas o dia está muito tumultuado hoje, muito mesmo...

— Carlos, os pais da garotinha queriam o número do homem que a atropelou... — Vivian me tirou dos meus pensamentos que, agora, estavam voltados para esse trânsito caótico e lento que acontecia na cidade. O barulho das buzinas tinha mexido com meus pensamentos, então não estava concentrado em muitas coisas na hora. Mas consegui prestar alguma atenção em suas falas. — Foi você que ficou com o cartão dele não é?

— Ah! Sim, o nome dele é Augusto. Eles querem o número agora?

— Sim, a mãe dela está pedindo, ela quer ver algumas coisas com ele. — ela respondeu apontando com o dedo para a parte de trás da ambulância onde a garota e a mãe estavam sendo levadas ao hospital — Onde está o cartão dele?

— No porta-luvas. É o cartão prateado com vermelho, está vendo? — falei olhando para o lado e a vendo puxar o pequeno cartão retangular do compartimento.

Meus pensamentos se voltaram novamente para o trânsito. E eu continuava com a certeza de que havia alguma coisa de errado naquele dia. O trânsito nunca foi assim, muito menos as pessoas. A falta de respeito estava bem grande hoje, ninguém me dava passagem, mesmo com o giroflex ligado.

Virei numa via menos movimentada, que passava na frente de um pequeno asilo, quase que abandonado. Consegui aumentar a velocidade e ganhar um pouco de tempo. Vivian me olhava freneticamente e conseguia me tirar a atenção, afinal, ela era uma linda mulher de longos cabelos ruivos, olhos verde-esmeralda e um cheiro de lavanda que dava um toque super marcante na sua beleza. Além disso, sua beleza interior era igual ou ainda mais incrível. Ela gostava praticamente das mesmas coisas que eu, porém eu sempre andava com meu maldito ditado: “onde se ganha o pão não se come a carne”.

— Eles conseguiram falar com o Augusto? — perguntei quebrando o silêncio, nosso silêncio sempre acabava se tornando inquietante, parecia que precisávamos estar conversando a todo o momento — Pergunto, pois antes ele estava com um problema em casa, o mandei dar uma saída na casa de um amigo, mas a ligação caiu...

— Só cai na caixa, Carlos. — ela me respondeu, colocando o dedo polegar sobre o maxilar — Será que esse cara não estava de blefe quando falou que ia arcar com os pagamentos?

— Augusto não tinha cara de quem iria blefar para uma coisa dessas, ele tem cara de ser politicamente correto, entende?! — respondi, quase como que testando sua inteligência. Foi a coisa mais estúpida que eu já fiz na vida. Eu odeio quando faço as pessoas acharem que são burras. Queria bater na minha cara por isso.

— Sei... Você, por acaso, conhecia esse homem antes disso tudo? Digo do acidente... — ela questionou curiosa.

— Nunca vi nem mais gordo, nem mais magro. Por que a pergunta? Parece?

— Preciso responder? Parece que se conhecem há anos. Tem certeza que não eram colegas de classe, ou alguma coisa do tipo? Talvez jogassem RPG de mesa juntos, não?

— Não mesmo, nunquinha. — respondi pra ela, colocando o braço esquerdo para fora da janela. Aquele atalho que eu peguei estava maravilhoso. Sem carros. Sem trânsito. Só eu, Vivian e as duas passageiras atrás. — Mas se você tivesse falado com ele veria, ele transborda alguma coisa forte, sabe? Faz parecer que você o conhece há séculos!

Depois que eu trouxe o braço novamente para dentro da ambulância, escutei um barulho de motor vindo da rua à esquerda. Quando eu me dei conta já era tarde para frear. A ambulância já havia montado em cima do carro de porte médio. Talvez pegar um atalho não tenha sido uma boa ideia. Esse dia estava mais tumultuado que qualquer outro que eu já tivera na vida.

Logo depois da batida uma fumaça espessa começou a subir, juntamente com o cheiro de borracha queimada e gasolina. Acho que o tanque do carro estourou.

— Vivian você está bem? — perguntei tocando-a no ombro. Ela se virou para mim e vi que sua testa sangrava, por sorte, pelo que eu vi, era só isso.

— Estou sim, por sorte sim! Só estou com um pouco de dor na cabeça. — respondeu levando sua mão até a cabeça, vendo o rastro que o sangue deixara — Vá ver o que aconteceu lá atrás, eu vejo como está o motorista do carro. Rápido!

Obedeci, desci da ambulância e corri para a parte traseira. Quando cheguei lá, vi que escorria sangue pela sobra de espaço que havia nas alturas das portas. Puxei a alavanca que as trancava lá dentro. A cena foi, em poucas palavras, horrível.

A mulher mais velha, no caso, a mãe da garota, estava com um corte no pescoço, que ia de um lado até a metade do mesmo, ele estava pendido para o lado esquerdo, a maior parte do sangue era dela. Seu pescoço foi cortado pela pequena maca de metal, que soltou da base. A garota ainda estava viva, mas por pouco tempo. A caixa de agulhas, tesouras e bisturis havia caído da prateleira, fazendo todos os objetos perfurarem a sua barriga. Ela estava sentada, com as mãos ensanguentadas e chorando muito.

— Calma princesinha, vai ficar tudo bem... — menti, na verdade ia demorar um pouco até os órgãos que foram perfurados pelos objetos entrarem em falência — O tio está aqui, calma, calma...

Peguei uma injeção de anestesia total, sei que fazer isso seria errado, mas os gritos da garota eram agonizantes, pelo menos da dor eu conseguiria lidar. Por sorte a seringa não havia quebrado. Puxei uma parte da pele de sua barriga, ela gritou como louca, apliquei a injeção, levaria pouco tempo até ela fazer efeito. Usei um pouco mais de dose, então rapidinho ela não sentiria mais nada.

— Como estão as coisas ai, Augusto? — perguntou Vivian, vindo da lateral da ambulância, ainda sem ver nada daquilo.

— Nada bem... — eu disse indo até seu encontro, não a deixando ver aquela cena horrível, mesmo ela fazendo força para passar por mim — Você não precisa ver isso, nem eu queria ter visto, confie em mim, fique aqui. Como está o motorista do carro?

— Bem, está sentado na calçada. O que aconteceu com elas, Carlos? — ela começou a gritar — Deixa-me vê-las! Sou sua superior, você sabe disso, o que está me escondendo?

— Elas estão mortas! A mulher mais velha com o pescoço cortado e a garota com a barriga perfurada pelos materiais de corte! Satisfeita? Eu já te disse o que aconteceu, mas de forma alguma a deixarei ver essa situação!

— Saia da minha frente agora! — ela me respondeu, empurrando-me contra a lataria amassada da ambulância, passando pelo meu lado.

Escutei seu grito de desespero, mas eu tinha avisado ela. Fiquei olhando as reações dela, pois eu não sabia o que fazer, além dela, eu também fiquei sem reação. Ela colocava as duas mãos sobre a boca abafando o som, rios de lágrimas se misturavam com o rastro de sangue que havia em seu rosto, numa disputa para ver quem prevaleceria. Eu sabia que aquela cena não era pra ela, muito menos pra mim ou para qualquer outra pessoa.

— Hã? O que aconteceu aqui? Porque ela está tão desesperada? — uma voz masculina falou atrás de mim, me virando para vê-lo, percebi que passei com a ambulância por cima do carro de Augusto. — O que diabos foi que eu fiz? — ele terminou olhando bem para minha cara percebendo, enfim, quem eu era. — Carlos?! Que merda eu fiz pra ela estar desse jeito?

— Não sei se você deveria ver isso, cara! — eu o respondi, indo até ele e cumprimentando-o formalmente. — A cena é horripilante, mas você já é bem grandinho, pode decidir por si, se você conseguir viver com a culpa, olhe! Se souber que não vai conseguir, fique aqui.

Ele foi seguindo o rastro de sangue que ainda se formava no chão. Até o barulho do sangue caindo no asfalto agora me dava frio na espinha. Augusto foi indo até a porta e ficou espantando com o que viu.

— Puta merda! O que foi que eu fiz? — ele disse, levando as mãos aos olhos para limpar as lágrimas — Se eu não seria preso antes, agora eu tenho certeza que vou! Puta que pariu, eu sou um assassino!

— Que bom que você sabe disso, seu monstro! — gritou Vivian aos prantos do seu lado, ela estava totalmente desesperada, nunca vira nada tão sangrento como aquilo.

— Vivian, não é totalmente culpa dele, poderia ter sido qualquer um! Ambos, eu e ele, estávamos em alta velocidade, se eu tivesse batido em uma árvore ou em qualquer outra coisa a culpa seria minha. — respondi — Não vamos culpar apenas ele, se pensarmos bem, eu tenho cinquenta por cento dessa culpa! — terminei chorando.

— Você quer dizer que por causa desse imprudente, todos nós temos culpa no cartório? Você está se enganando, Carlos, você nem conhece esse homem direito, não se culpe pelas burrices que ele faz!

— Não adianta jogar a culpa totalmente em mim, mulher! A placa atrás de você prova muito bem quem está errado! Só pelo caso de você não a conhecer, ela diz “dê a preferência”.

Eles já nem estavam mais pensando nos dois óbitos, estavam tentando ver quem tinha a culpa de tudo. Isso levou longos vinte minutos e só foi interrompido por um barulho vindo de dentro da ambulância. Corri para ver o que era, já que não estava perto, fiquei sentado na calçada com os braços agarrados aos joelhos.

A mulher mais velha estava se mexendo, na verdade, já estava de pé, fazendo uns grunhidos estranhos pela boca. Começou a vir em nossa direção, com a cabeça pendida para o lado esquerdo, já que o corte vinha do lado direito. Quando ela chegou ao final do vagão, caiu ao chão, arrancando totalmente sua cabeça. O corpo ficou imóvel, porém continuava a jorrar sangue. Sua boca continuava abrindo e fechando, como se estivesse tentando abocanhar algo, os barulhos continuaram do mesmo jeito. Parecia mais coisa de filme de terror.

— Mas que merda é essa?!

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.