Os dias que se seguiram deram um novo significado à palavra “espera”. Era tudo o que eu fazia agora. Minha vida estava em suspenso. Meu corpo e minha mente funcionavam à base de comandos muito simples:

Manter-me vivo.

Proteger Peg.

Esperar.

Eu passava horas intermináveis no hospital de Doc, como quando a gente acompanha um ente querido durante uma longa internação. A diferença é que eu ia lá porque queria. Por várias razões.

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Depois que fiquei sabendo dos detalhes mais sórdidos dos planos de Peg, eu queria manter um olho grudado em Doc. Não dava para saber se ele iria resolver, de repente, cumprir sua promessa. Eu sei que parecia meio idiota levar Peg para perto dele, quando o que eu queria era mantê-lo longe dela. Mas desse jeito eu podia ficar perto dos dois.

Sei, sei, eu estava paranoico. Mas se eu tivesse sido paranoico antes, não teria sido passado para trás. Eu teria percebido o que aquela cabecinha alucinada de Peg estava maquinando e a teria feito mudar de ideia. Claro que teria sido tão eficiente quanto um barco no deserto, porque convencer Peg de qualquer coisa era quase mais difícil do que me convencer. Mas eu poderia ter feito o que Jared fez...

O fato é que agora que eu sabia de tudo, não ia deixar nunca mais alguém me pegar desprevenido e, apesar de acreditar que Doc já tinha desistido de sua promessa, eu ficaria alerta. Ninguém mais nas cavernas teria coragem de tentar, mesmo que estivesse disposto a se meter. Todo mundo sabia que eu mataria qualquer um com minhas próprias mãos. Depois ter que explicar isso para a Alminha Paz e Amor é que seriam elas! Mas eu estava disposto a encarar esse rojão se fosse preciso.

Outro motivo para eu querer ficar no hospital era Kyle. Ele ainda estava lá ao lado do corpo de Jodi e segurando o tanque de Sunny. Quem diria! Os O’Shea, outrora fortes, encrenqueiros e destemidos, agora eram dois malucos, cada um com a sua latinha. As voltas que o mundo dá!

Mas brincadeiras à parte, eu estava com medo de que Kyle estivesse mesmo ficando louco. E eu também não estava muito longe disso. Pelo menos podíamos nos apoiar, manter um ao outro são ou, na pior das hipóteses, ajudar o outro a enlouquecer de vez. Com Kyle e eu nunca dava para ter certeza.

Além disso, o motivo real mesmo era que eu não tinha para onde ir. Não dava para trabalhar, eu não soltaria o tanque de Peg para nada (Jeb estava sendo bem paciente quanto a isso), e ficar o dia todo trancado no quarto era enlouquecedor. A última lembrança que eu tinha de Peg era lá. Foi de lá que ela se levantou para caminhar para o que acreditava ser sua morte. Eu imaginava isso repetidamente e em diferentes versões. Em todas elas, Peg fazia algum barulho ou movimento que me acordava e eu a impedia. As infinitas possibilidades, os milhares de “e se”, estavam me deixando louco. Então eu ficava a maior parte do tempo no hospital e só ia para o quarto quando já mal conseguisse mais abrir os olhos. Às vezes nem assim.

Mas era mais fácil dessa maneira. O hospital era sempre movimentado nos últimos tempos. Havia uma espécie de peregrinação constante dos amigos de Peregrina: Lily, Heidi, Trudy, Geoffrey... Peregrinação para ver Peregrina. Soa engraçado! Eu estava mesmo ficando louco, rindo de piada sem graça!

O fato é que as pessoas vinham e, embora eu não estivesse em condições de manter uma conversa agradável com ninguém, eu gostava de ouvi-los conversar. Era bom saber o quanto sentiam falta dela. Quando acordasse e soubesse disso, ela ficaria feliz.

O primeiro que veio foi Jamie, pouco tempo depois de Jared contar para ele, logo naquela primeira manhã, que Mel estava de volta. Eles quiseram que ele viesse aqui primeiro para saber que Peg estava segura, antes de ver a irmã.

— Você acha que ela sentiu dor, Ian? – perguntou Jamie acariciando de leve o tanque.

A simples ideia de que ela tivesse sofrido fez meu corpo todo se retorcer de angústia. Mas eu não podia deixar o garoto perceber minha dúvida.

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— Eu não sei, Jamie. Espero que não. Não deve doer muito. A espécie dela está acostumada a isso.

Por um segundo, a face de Jamie ficou inexpressiva, depois veio o entendimento:

— Eu tinha até me esquecido o quanto ela é diferente de nós.

— Não, Jamie, não esqueça mais. A Peg não é como nós. É por isso que nós a amamos. Ela precisa saber disso.

— Será que ela pode nos ouvir?

— Acho que não. Mas eu queria que ouvisse.

Pouco tempo depois de Jamie sair, já abraçado com Mel e determinado a ajudá-la a conseguir um corpo para sua “outra irmã”, Jeb irrompeu pela entrada parecendo ainda mais maluco do que de costume. Sem nem falar comigo, ele se dirigiu furioso ao tanque:

— Você precisa ouvir umas boas, mocinha! Que história é esta de enganar todo mundo e querer se matar? Ninguém faz uma merda dessa aqui na minha casa! Não fique aí achando que é especial!

— Jeb, ela não pode te ouvir – disse Doc, enquanto se divertia com o discurso de aloprado do amigo.

— Tudo bem, então. Mas quando você voltar vamos ter uma conversinha. Agora minha sobrinha mal fala em outra coisa que não seja arrumar uma hospedeira para você – continuou ele, como se o que Doc falou não significasse nada. – E até o moleque está nessa. Eu não posso deixar minha família toda se arriscar cada vez que você faz uma arte. Mais um tanque desses e já vai dar para fazer uma lojinha! “Vendo Alminhas em troca de hospedeiro!” – ele gritou, como se estivesse anunciando uma pechincha na feira.

Parece que a coleção que tínhamos aqui não era de tanques, mas sim de malucos. Doc, Kyle e eu não aguentamos e caímos na risada. Jeb acabou rindo logo em seguida, tirando a tensão do ar. Mas antes de sair, ele disse a Doc por cima do ombro:

— Ei, Doc, obrigado por trazer minha sobrinha de volta. Mas se você me fizer de besta de novo, vou esquecer que você é meu amigo.

E saiu.

Estava aí um cara que sabia causar um efeito! O semblante de Doc endureceu na hora. Ele me olhou, o rosto sério cheio de vergonha e preocupação, e perguntou:

— Acho que você tem algo parecido a me dizer também, não é?

Eu devolvi o olhar sério dele, tentando imitar a cara de pôquer do Jeb e esperando soar igualmente ameaçador.

— Eu só te digo que não vai haver uma próxima vez, Doc.

— É justo. Por enquanto ficamos assim, então?

— Sim, por enquanto ficamos assim.

Eu sabia que não ia demorar muito para perdoá-lo. Eu conhecia muito bem o potencial de manipuladora de Peg. Mas isso não significava que eu não pudesse deixá-lo sofrer mais um pouquinho. E, por enquanto, não conseguia mesmo confiar em Doc. Era justo que ele soubesse disso.

Ele me olhou fixamente por uns segundos, o rosto mais pálido do que de costume. Então assentiu lentamente, limpou a garganta e voltou ao trabalho, que, naquele momento, consistia em fazer Jodi engolir um pouco de água. E assim, em terreno movediço, passávamos os nossos dias, Doc, Kyle e eu. E também nossas constantes visitas.

Melanie veio todos os dias enquanto esteve nas cavernas, quase que de hora em hora. Ela tirou os três primeiros dias para descansar e se readaptar. Não por vontade própria, dava pra ver que ela estava quicando pelas paredes de vontade de sair em busca da “nova Peg”, mas por recomendação de Doc e exigência de Jared, ela teve que ficar.

Eles dois estavam preocupados com a rapidez excessiva de sua recuperação, especialmente com o aspecto emocional de sua readaptação. Parece que tinha sido extremamente traumático para ela ser separada de Peg. Kyle me contou que quando Mel acordou, ela deu um bocado de trabalho achando que Peg estava morta. Ele disse que ela amassou a cara feia de Jared e quase quebrou uma costela de Doc. Bem que eu queria ter estado lá para ver a cena. Eu precisava admitir que era difícil não gostar de Melanie.

Sorte a minha, porque ela agora era minha fã número um. Claro, durante meses ela tinha sido invisível para mim, somente um estorvo que me afastava de Peg, uma parede entre nós. Mas eu fui muita coisa para ela. Eu as protegi e cuidei das duas. Melanie era minha amiga há poucas horas. Para mim, nossa amizade tinha acabado de começar. Mas para ela, eu já era seu amigo há muito tempo.

Por isso ela vinha toda hora. Dizia que sentia necessidade de estar perto de Peg, de se certificar de que ela estava bem. Mas eu acho que ela vinha me ver também, checar se eu ainda estava inteiro, dividir comigo suas angústias como Peg tinha se acostumado a fazer. Jared também pensava isso. Dava pra ver no olhar que ele me lançava quando Mel se empolgava na conversa e tocava meu braço. Pra ser sincero, eu estava achando isso tudo muito divertido. Eu tinha uma dívida grande com Jared, mas isso não queria dizer que não desse pra curtir ele ficar com ciúmes de mim, só pra variar.

Toda vez que Mel vinha, para contar para mim e para Peg (sim, ela falava com o tanque!) como estava sendo recebida pelos outros ou quais estavam sendo os preparativos para a incursão, Jared vinha junto a reboque, com cara de carro enguiçado e postura de cão de guarda. Mas, para acabar com minha diversão, isso foi só nas primeiras vezes. Depois ele começou a relaxar e nós entramos num entendimento mútuo de que teríamos que nos acostumar à situação de que nossas duas mulheres nos amavam a ambos. Jared jamais se separaria de Melanie. Eu jamais me separaria de Peg. E as duas jamais viveriam de novo uma sem a outra. Resultado: nós teríamos que nos aturar. Jared era bom nas contas tanto quanto eu, então ele já logo começou o esforço de se tornar meu amigo. E eu aceitaria facilmente isso. Era uma forma de garantirmos um para o outro que o que havia entre ele e Peg, e entre eu e Melanie, jamais fosse mais longe do que amizade. Não que eu quisesse. Ou ele. Ou elas. Mas não fazia mal a gente se precaver firmando ainda mais os nossos estranhos laços. Além disso, assim como para mim a prioridade era sempre Peregrina, o bem-estar de Mel estava acima de tudo para ele. E ele sabia que, naquele momento, ela precisava ficar um pouco perto de mim. Eu também gostava de ficar perto dela. Era como poder falar um pouco com Peg. Nós dois a conhecíamos melhor do que qualquer um, e ser cúmplices nesse conhecimento ajudava a lidar com a saudade. Por isso foi tão difícil deixá-la ir embora. Era mais confortável gastar horas imaginando como seria, escutar os planos de Mel. No momento em que ela saísse pelo deserto, porém, estaria fora das minhas mãos. E eu sentia um medo imenso de que tudo desse errado. Ansiar demais por uma coisa pode fazê-la parecer ainda mais distante.

Mas nós dois sabíamos que já estava na hora. Não era mais tempo de planejar. A esperança tinha que dar lugar à ação. Por isso, na manhã do quarto dia, Mel, Jared e Jamie partiram com meu destino em suas mãos.

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