A Herdeira de Zaatros

Capítulo 22


Octogésimo oitavo dia do segundo mês, ano 7302.

Cena I – O Presente.

07 horas em ponto. Reino Humano – Feltares. Clareira Maior, Floresta Sussurrante.

A clareira se estendia por muitos metros, era possível, inclusive, apostar uma curta corrida de cavalos. À esquerda de Franco, corria um riacho raso e pedregoso. Atrás de Kaegro havia algumas rochas. Todo o resto eram árvores e grama.

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Pontualíssimos. -Observou Kaegro, vendo os dois adversários chegando. -Estou pronto. -Disse ele.

—Estamos prontos! -Responderam os outros.

Então teve início o duelo: Kaegro disparou uma chuva de mísseis mágicos de luz amarela sobre os oponentes; estes, assustados, dividiram-se: Meline Correu para a direita, para dentro da mata, enquanto Franco seguiu o curso do riacho, para esquerda.

—Crianças! -Ria o mestre. -Divididas serão ainda mais fáceis de derrotar. -Pôs-se a andar calmamente seguindo o leito do riacho, escolheu Franco primeiro.

Meline correu por cerca de cinco minutos, parando somente ao atingir seu objetivo. Parou diante de uma pequena gruta, cuja entrada era escondida por hera, e entrou. Lá havia escondido, no dia anterior, uma série de coisas que poderiam ser úteis para o duelo e que não poderia levar por ferirem as regras que ela mesma delimitara: uma bolsa com sementes diversas, um pequeno livro de feitiços em versão de bolso, um colar trazendo uma pedra amarela como pingente e, é claro, Cris. Não sabia se haveria tempo para usar tudo, mas preferiu pecar pelo excesso do que pela falta. Atou bem sua flor ao cabelo, como de costume, e partiu, rumo ao ponto de encontro que combinara previamente com Franco.

Tinha Natura Mater atado bem firme no cinto. A arma era um bastão de madeira medindo quarenta e cinco centímetros; numa ponta, um botão de rosa e, na outra, três penas coloridas, uma para cada cor primária.

Franco estava em apuros. A água do córrego não bastava para afastar o velho. Não importava a quantidade de gelo que o príncipe criasse com ela, era sempre insuficiente. Kaegro o derrubava repetidamente, zombava de Franco em vez de terminar logo o serviço. Foi justamente o ego inflado do gigante-humano o que deu tempo para Meline chegar.

A ex Dragonesa se juntou ao amigo e, juntos, combinaram seus feitiços para escapar. Meline levantou uma ventania que agitava as folhas em direção ao mestre e Franco, aproveitando-se da cegueira de seu rival, congelou o chão sob os pés dele, fazendo-o escorregar e cair de bruços.

Os iniciantes dispararam para longe dali, correram por minutos a fio antes de pararem exaustos sob uma figueira velha.

—Use isto. -Disse Meline, ofegante, entregando o colar que buscou na caverna ao príncipe.

—Não acha melhor ficar com ele?

A jovem negou com a cabeça. -Eu já tenho Cris e isto. -Falou indicando o bastão. -Vai funcionar como um amplificador: te deixará mais forte a cada ataque sofrido ou defendido, o que não significa que deve se fazer de alvo.

—Certo… e agora?

—Agora você deve se afastar de mim. Natura Mater é uma arma perigosa, vai tomar o controle do meu corpo e quem sabe o que pode acontecer depois?

—Não gosto dessa parte do plano, Meline. -Confessou Franco. Kaegro é covarde, vai machucá-la o máximo possível.

—Lidei com covardes a minha vida inteira, estou acostumada com brigas, alteza. -Franco fechou a cara e ela continuou: -Peça ajuda às dríades, cada árvore é lar de uma delas e, se você aprendeu tudo o que te ensinei ontem, elas o ajudarão. Os animais também podem ajudá-lo, mas, por favor, lembre-se de agradecer sempre e de ser cortês com a floresta.

—Eu cresci mergulhado em aulas de etiqueta, vai ser fácil…

—Bem, boa sorte! -Disse Meline, dando-lhe um abraço apertado e carinhoso. Quando afastou o corpo, seus olhos estavam alagados. -Não podemos perder. Não quero ter de abrir mão da magia…

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—Não vamos perder. -Franco encorajou, passando as costas das mãos no rosto de Meline, enxugando-lhe as lágrimas. -Tenho um presente pra você, mas primeiro temos que superar um velho metido!

—Certo! -Assentiu a maga. -Cuide-se…

—Você também!

A floresta está com vocês! —Encorajou a gentil dríade da figueira.

Franco seguiu sozinho para o norte enquanto Meline voltou para o lugar onde tinham visto Kaegro pela última vez. Havia desatado o bastão do cinto, levava-o na mão e já sentia-se alterada por seus efeitos. Sentia-se mais alta, mais forte, mais ligada à floresta de alguma forma. Ouvia os animais e as plantas respirando e o eco de seus corações batendo cada qual em um ritmo próprio. Começou a flutuar sem perceber. A pele adquiria lentamente um tom esverdeado e os cabelos se tornaram vinhas e folhas. Cris também provava do poder do Natura Mater: estava maior e mais perfumado, atava-se com mais firmeza aos cabelos, ou melhor, às vinhas de Meline; lembrava agora uma grande coroa de pétalas brancas.

Sabia exatamente onde o velho estava, na verdade, sentia. Avançou a toda velocidade em sua direção. Os olhos brilhavam esmeraldas e a mesma luz também escapava pelas unhas, deixando rastros luminosos.

Saiu às costas de Kaegro. Girou Natura Mater, pondo a extremidade com as penas voltada para cima. Sorriu, mostrando caninos muito maiores que os seus em condição normal, antes de atacar: soltou um grito altíssimo, o piar de uma ave de rapina, que reverberou por toda a mata. O mestre, surpreendido, encolheu-se assustado, cobrindo com as mãos as orelhas.

Ele se virou e viu Meline alterada e ela sorriu dizendo:

—Com medo? -A voz saia duplicada, como um eco. A maga girou novamente o bastão, mirando o botão de flor na cabeça de Kaegro. Dele saiu uma verdadeira chuva de espinhos.

—De você? -Retrucou ele ao desviar o golpe com um escudo invisível.

Meline rosnou como uma loba e Kaegro finalmente entendeu o que ocorria: Natura Mater era uma arma muitos níveis acima do domínio de Meline. A ponta com as penas dava a ela poderes copiados de animais ou algo do gênero; enquanto a outra, o botão de rosa, controle sobre as plantas.

O gigante-humano correu a toda velocidade em direção à maga e, quando ela se preparou para dar-lhe um murro (com a mão transformada em madeira maciça) ele desapareceu. Meline ficou desorientada, mas não teve muito tempo para permanecer assim; com a mesma rapidez com a qual desaparecera, Kaegro surgiu por trás e encaixou-lhe um soco absurdamente forte na nuca, valendo-se da força extra de seu lado gigante. E isso não foi tudo: o punho era eletricidade pura, rodeado por raios.

A menina foi ao chão, Kaegro esperou que se levantasse para atacá-la, como mandava a regra. Um raio no meio do peito, outro nas pernas e Meline foi ao chão novamente.

—A força não é nada sem a técnica. -Riu o velho mestre. -E você não tem nenhum dos dois! A arena te favorece e ainda assim está fraca.

Sem dizer nada, ela se pôs de pé, girou o bastão, penas para cima, e transformou-se em um coelho para escapar. Kaegro ergueu a mão, um raio surgiu entre seus dedos, então, atirou-o para fulminar a maga de uma vez por todas.

—Tutela, Reflexio Screen! -Gritou Franco, pondo-se entre Meline-coelho e Kaegro.

Seu feitiço criara uma fina parede cuja aparência lembrava a de uma bolha de sabão, inclusive na elasticidade. O raio de Kaegro se chocou contra a barreira, esta recuou, esticando-se para trás e depois para frente, mandando o raio de volta com o dobro da velocidade. Para o mago, não houve tempo de bloqueio ou esquiva. Foi lançado para trás, caindo de costas no riacho.

—Fiat Glaciem! -Emendou o príncipe, ao ver o oponente se levantando, congelando a água e o mantendo preso com gelo até cintura.

—Deveria ter se escondido! -Ralhou Meline com a voz cavernosa. -Saia, agora! -Gritou. E, para Kaegro, mirando o botão de Natura Mater no chão sob o velho e movendo-o em direção à cabeça dele: -Retorto Vite!

Três raízes volumosas cresceram e enrolaram-no até o pescoço, pressionando-o e dificultando sua respiração.

Em seguida, apontou as penas do bastão para o meio das árvores dizendo: -Auxilium!

Em poucos segundos, surgiu um cervo e, com a mesma rapidez, arrebatou Franco em suas costas e correu com ele para o meio do mato.

Quando voltou a olhar o mago, nada encontrou além de vinhas queimadas e cacos de gelo. Kaegro surgiu novamente atrás da maga, mas, desta vez, ela estava atenta:

Kaegro a prendeu em um abraço e gritou seu feitiço ao mesmo tempo que Meline proferia o dela:

—Corporis Radium!

—Corporis Ligna!

Deu-se o seguinte: O feitiço do velho transformou seu corpo em um legítimo raio; o de Meline, transformou-a em madeira pura. O aperto de Kaegro descarregou sobre ela uma quantidade enorme de eletricidade a qual a teria matado se seu próprio feitiço não houvesse absorvido a maior parte da carga. Ao fim da cena, Meline, ainda em peles de madeira, jazia desacordada e chamuscada sobre o relvado igualmente queimado. O mago híbrido partira em busca de seu aprendiz.

Franco estava furioso por ter sido afastado da luta. Pulou para o chão assim que pôde, e agora corria de volta. No caminho, trombou com o mestre, descarregou sobre ele um jato rápido de cristais de gelo e continuou a corrida sem dar importância ao velho. Se Kaegro estava ali, era porque já havia liquidado Meline, e a possibilidade o enchia de angústia e medo. Tinha o peito pesado, a garganta fechada, dentes trincados e olhos úmidos.

Kaegro o seguia, sem muito interesse, disparando choques leves em suas costas e o derrubando vez ou outra só por diversão em vê-lo desesperado.

Chegando onde o último encontro se deu, o príncipe viu apenas o chão em cinzas e Cris chamuscado. Não havia Meline. Tomado por um grande ódio, ele se voltou ao mestre, encarando-o.

—Que demônios o tenham! -Bradou, segurando as lágrimas.

Kaegro riu e lançou um raio dourado sobre o aprendiz, que o bloqueou com as próprias mãos revestidas por seu mana azulado. Lembrava-se bem de ter feito o mesmo durante o teste, semanas atrás.

Em seguida, uma saraivada de projéteis luminosos foi disparada sobre ele, sendo bloqueados da mesma forma. A cada defesa, Franco se sentia mais forte e avançava para cima do mestre…

Após seis ou sete ondas de ataques defendidos, se encontrava a dois metros do velho. O pingente do colar em seu pescoço brilhava sob a camisa e só então Kaegro o notou.

—Trapaceando? -Disse ele. -Não importa, estou só brincando com a presa.

—FRIGIDA UMBRA! -Explodiu o príncipe, formando um círculo com as mãos.

Kaegro começou a sentir frio no mesmo instante. Era como se caminhasse na neve em trajes de banho. Embora fosse meio gigante e possuísse boa resistência ao frio, tratava-se de um frio diferente, do qual não ninguém tinha resistência: um calafrio, um frio causado por medo.

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De alguma forma, o feitiço de Franco se projetou com mais força do que ele normalmente atingiria. O amuleto em seu pescoço havia funcionado; absorveu o mana dos golpes bloqueados e agora os liberava.

O velho começou a ficar pálido, o feitiço penetrava fundo em sua mente. Sua respiração deixava escapar o vapor que surge quando respiramos em um dia muito frio.

—Frigus Herba. -Sussurrou Franco, e um gládio de gelo surgiu em sua mão.

Disparou, então, em uma corrida. Mirava o pescoço do mestre e, quando chegou próximo o suficiente, saltou e desferiu o golpe. O gládio se partiu e Kaegro cambaleou para trás.

—Vocês perderam! -Riu o mago ao se levantar. A pele levemente azulada. -A garota caiu, vocês dois deveriam estar de pé… de qualquer maneira eu vencerei!

Franco desviou os olhos para os pés sentindo o coração parar ao lembrar que Meline perderia os poderes caso fracassassem. Olhou, depois, para o gramado enegrecido pelo raio e de volta para Kaegro.

—Se renda e não sentirá mais dor. -Falou o mestre, em tom quase paternal, mirando seu bracelete fulminante no rosto do príncipe.

Franco sentiu os joelhos estremecerem, tentou abrir a boca para retrucar, mas não havia força para gerar som. Calou-se e caiu de joelhos devastado e sem esperanças.

—Muito bem, está termin…

—NÃO! -Bramiu a voz de Meline, possuída pelo Natura Mater. -Eu ainda estou de pé…

Foi uma cena um tanto inquietante: ao lado da grama queimada, crescia um arbusto, com duas frutinhas vermelhas. A voz partia dali. Aos poucos, ele tomou a forma de um corpo humano caído; em seguida, Cris rastejou até ele, pousando pouco acima das frutinhas. O corpo-arbusto se pôs de joelhos; no segundo seguinte, estava de pé e lembrava muito a maga. Cris liberou seus ramos e, com eles, enrolou todo o comprimento da criatura, como as faixas de uma múmia. Agora não se podia contestar: era, de fato, Meline. As frutas vermelhas eram os olhos faiscantes da figura e Cris, a coroa.

—Ainda podemos lutar. -Disse ela, deixando escapar um rosnado ao fim da frase. Flores cresciam ao pisar no chão em que caminhava.

—Está possuída pela arma! -Disse Kaegro. -Solte-a!

A Meline feita de cipós sorriu e girou o botão de rosa do bastão para cima. -Cris, você ainda não brincou… -Disse ela, soltando a flor mágica dos cabelos-vinhas. -Mate! -Gritou, lançado-o no peito do velho mago.

Para se defender, Kaegro disparou raios rápidos na flor, mas a tremedeira causada pelo feitiço de Franco custou sua pontaria e nenhum tiro a atingiu.

Quando Cris o tocou no peito, amarrou-o tão rápido quanto uma aranha faminta o faria a uma mosca desavisada que caísse em sua teia. Os cipós lhe comprimiam o peito e o pescoço, amarrava-lhe os membros e o forçava a tombar.

—Pare, Meline! -Berrou o príncipe reencontrando a voz. -Vai matá-lo!

—É o que pretendo…

—Se ele morrer, além de perdermos o duelo por romper com as regras, você se tornará uma assassina. -Falou, vendo o corpo do mago totalmente mumificado pelas vinhas se debater em plena agonia.

—Nada pode me tirar os poderes agora.

—O juramento e as regras do duelo o podem! -Gritava Franco. -Solte-o, já vencemos.

—Não estou satisfeita! -Outro rosnado.

O príncipe não sabia que fazer para convencê-la… foi quando se lembrou de uma coisa:

—Meline, lembre-se que te devo um presente, e que ele nos ensinará quase de graça. Mas só teremos as recompensas se vencermos honestamente. Solte-o, eu te suplico!

Meline pareceu pensativa e Franco continuou:

—Se o matar sua magia será tirada. -Dizia. -Matar vai contra as regras deste duelo e constará como derrota por trapaça… -Havia corrido até ela e agora olhava fundo em seus olhos de cereja. -Se formos derrotados você perde o mana e, com isso, qualquer magia que exista em seu corpo.

Ela estendeu a mão e Cris desatou os nós imediatamente, voltando a enrolar-se em seus cabelos.

—Grrr, renda-se agora! -Disse ela mirando a cabeça de Kaegro com seu bastão mágico.

O velho tossia e engasgava. Quando por fim se recuperou, respirou fundo e disse: -Reconheço sua vitória.

Desapareceu no segundo seguinte, derrotado e envergonhado. Havia perdido para seu aprendiz e para uma aprendiz autônoma de magia… dois iniciantes.

Franco tomou a mão de Meline nas suas, sorrindo.

—Vencemos!

—Eu venci. -Corrigiu ela.

Por um segundo, o príncipe se afastou, porém voltou a encará-la.

—Nós vencemos. -Repetiu. -Você foi corrompida por essa arma. Ainda não está pronta para controlar tanto poder.

—Eu o controlo muito bem… controlarei também este reino! -Murmurou, com um sorriso torto. -E os demais reinos de Zaatros! O mundo será um jardim! O meu jardim!

—Não, Meline. Esta não é você falando. É o Natura Mater, você está possuída. -Disse por fim. -Dê-me ele aqui…

Ao estender a mão para tirar a arma da amiga, recebeu um golpe de um forte braço de madeira, caindo para trás com a mão sobre o queixo dolorido.

—A Meline, a verdadeira Meline, nunca faria isso a um amigo. -Lamentou-se o príncipe.

Meline pareceu recobrar parte do juízo e, enquanto caminhava ao encontro de Franco, este se arrastava para trás com medo.

Ela se abaixou ao lado dele, tocou-lhe o rosto com carinho, da mesma forma como ele, horas antes, havia-lhe tocado para secar suas lágrimas.

—Pegue… -Pediu, estendendo a arma sobre suas mãos trêmulas.

Franco a pegou, sorrindo. Ao separar-se do Natura Mater, o corpo de madeira e cipós se desfez. Espalhava-se pelo chão todo o material que antes fora a carne e os ossos da maga. Exibia agora sua real aparência.

—Diga-me, qual é o presente?

Franco nada falou. Inclinou lentamente seu rosto em direção ao de Meline, os olhos fechados. Os dela seguiram os dele, imitando o gesto e, num segundo, uniram os lábios em um beijo lento e carinhoso.

No relvado, entre eles, germinou uma flor miúda e muito vermelha, de pétalas macias e de cheiro indescritível. Aquela flor tem o aroma que o amor teria se fosse um perfume, é o que dizem.

O presente estava entregue…

***

Cena II – A Peste.

11 horas e 42 minutos. Reino Anão – Ruthure. Centro de Cura.

Desde a madrugada, não paravam de se acumular anões em frente ao Centro de Cura do reino. Os sintomas eram os mesmos: vômito, tonturas, dores na barriga, alucinações e sufocamentos. O local estava tomado por doentes e não havia mais como atender a todos. Anões não costumam adoecer com frequência, logo, não havia necessidade de grandes investimentos em saúde.

O mais grave era que a epidemia se alastrava também entre os curandeiros; a cura mágica não surtia efeitos consideráveis e, além disso, há poucos mágicos em Ruthure e estes também foram atingidos.

—Tenho duas hipóteses a levantar. -Falou uma senhora muito velha. Era a chefe do lugar. -Primeira: os gigantes estão atacando, e não da forma convencional. Segunda: alguém nos envenenou. Mas o que eu não entendo é como conseguiram envenenar uma quantidade enorme de pessoas em tão pouco tempo.

—Ah, eu… -Começou um curandeiro jovem sendo interrompido por um novo acesso de enjoo. -Eu acho que tenho uma explicação, senhora Macar. -Ele esperou até que ela assentisse e continuou: -Se envenenarem o ar ou a água, podem envenenar junto todos que respirarem ou beberem o veneno.

—É uma boa teoria… -Concordou a senhora Macar. -Senhor Lanário! -Bradou ela, chamando o guarda que rondava o corredor. -Chame os soldados que ainda não foram contaminados e mande checar os rios. Diga para procurarem sinais como peixes mortos no leito e aves nas margens.

***

Cena III – Vésperas de Combate.

12 horas e 09 minutos. Reino Anão – Ruthure. Fortaleza dos Guardiões das Chamas.

—Acha mesmo que conseguiremos agora? -Perguntou Manu de forma irônica. -Ela é uma semideusa e também é a Imperatriz de Ramavel.

—Este é o momento. Temos o círculo, temos Garras e sua forma de dragão… é agora ou nunca. -Respondeu Miguel.

Eu tenho Garras e ela não irá sem mim.

—Escute aqui, Manu, você têm sido uma pedra no sapato! -Ralhou Hilda. -Temos de atacar os gigantes, agora mais do que nunca. Cedo ou tarde vamos topar com Aço Voador e a melhor hora é agora. -A cigana respirou fundo, buscando se acalmar e prosseguiu: -O momento é este. Os ruthuranos estão adoecendo e ela jamais esperará um ataque nestas condições.

—Deveríamos votar. -Disse Darius, testando a corda de Presa de Elefante, o arco.

—Devem ir. -Cortou Ezerk, sentando-se à mesa. -O plano já está traçado: irão Hilda, Manu, Garras, Miguel e Darius. -Manu abriu a boca para reclamar, mas calou-se sobre o peso do olhar do líder. -As Bruxas Siamesas não podem teletransportá-los para lá sem deixar rastros, irão voando com Garras.

—Alguma coisa que devamos saber? -Perguntou Darius.

—Hilda entrará sozinha com Garras. Tem algo próximo de amizade com a imperatriz, tente tapeá-la para conseguir o nome verdadeiro ou pelo menos distraí-la para que Garras a queime com o fogo sagrado do dragão.

—Epa! Um momento aí. -Interrompeu Miguel. -Ela não pode ser incendiada com fogo de dragão; ela tem sangue Quendra e isso mataria a mim e a Darius.

—Hum, bem lembrado. -Disse Ezerk. -Garras pode devorá-la, talvez absorva os poderes dela como faz com os animais.

Manu e Hilda trocaram olhares. Fora o que planejaram fazer antes, só que com um anão.

—Antes de partirem, trago presentes das Bruxas Siamesas: armas mágicas. -Tirou dos bolsos algumas coisas: um anel dourado com runas gravadas, uma coroa de louros em ouro e um colar cujo pingente lembrava um carrapato preto. -Vão ajudá-los.

—Estou começando a detestar menos essas bruacas! -Falou Darius, esfregando as mãos com prazer. -O que tem para mim?

—A coroa. Vai triplicar todos os seus Charmes Élficos e demais habilidades raciais, visão, pontaria e por aí vai. Existe a chance de aumentar atributos de vontade, como coragem e liderança. -Explicou, entregando ao ladino seu presente.

—Acertaram em cheio! -Comemorou o elfo ao pôr os louros sobre a cabeça. -A coroa ao protagonista que tanto sofre no meio desse bando de figurantes!

—Para Manu, o anel. Invisibilidade.

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O híbrido pegou seu presente e testou.

—Somos quase irmãos agora. -Provocou Miguel, sabendo da antipatia do duende-humano para com ele.

Manu desativou o anel no mesmo instante. Vermelho de raiva por não conseguir pensar em uma resposta para aquilo.

—O colar é para Aço Voador. -Esclareceu Ezerk. -Hilda, dê-o para ela, peça-a para que experimente. Ele se prenderá ao pescoço dela e, quanto mais tempo ela permanecer com ele, mais fraca ficará. Não o use, Hilda!

—Entendido. Mas… não acha que ela vai reconhecer o sortilégio? Estamos lidando com uma feiticeira secular.

—Luzabell e Razatte trabalham nele desde que entraram para o clã. -Explicou. -É uma arma única ela não desconfiará nem de que é mágica, até o mana do colar foi camuflado.

—E se ela ler a mente de Hilda? -Questionou Manu.

—Não havia pensado nisso… -Admitiu Ezerk, coçando a barba. -Encontre Cícero antes de sair. -Disse ele para a cigana. -Peça para que deixe sua mente livre para que Aço penetre, mas que oculte somente suas más intenções para com ela e que a faça pensar que esse colar é uma herança de família ou algo do gênero. -Disse, por fim, entregando o colar a Hilda, que o guardou em um compartimento oculto do espartilho.

—Certo. -Concordou Hilda.

—Aconselho vocês a levarem todas as armas de que dispõem.

—Acho melhor eu ir somente com meu punhal. -Falou a cigana. -Não quero levantar suspeitas.

Manu apenas mirou seus dois anéis; o de energia, presente de Cícero, e o de invisibilidade, recebido há pouco.

—Tenho tudo de que preciso. -Miguel chamou os sais e os fez sumir logo em seguida.

—Vou buscar minhas adagas e uma aljava maior. -Disse o elfo saindo e puxando o irmão pelo braço para o corredor. -E você precisa dominar seu Charme!

—Agora? Não há tempo, Darius.

—Tem de haver. É um insulto a mim que você não saiba qual é tendo um elfo puro como irmão! -Retrucou o ladino.

—Fala como se fosse degradante ser híbrido. -Acrescentou Miguel, amargo.

—Longe de mim, chaveirinho. -Defendeu-se, zombando da baixa estatura do outro. -Mas é preciso que se conecte com suas duas raças, não só com a materna.

—E como pensa em fazer isso? -Questionou o híbrido ao saírem da fortaleza.

—Não me agrada muito, mas, após passados os sete anos de idade, só um elfo puro que tenha como um dos Charmes a Inteligência pode determinar com precisão.

—E não é você, certo? -Acrescentou Miguel, rindo muito.

—Os meus são Beleza, Carisma e Voz Sedutora e eu me orgulho muito deles, fique você sabendo, nanico.

—Certo… quem poderá, então, dizer qual é o meu Charme?

—Vice-Versa… -Admitiu Darius, revirando os olhos.

—Senhoras… -Chamou Darius, com uma espalhafatosa reverência forçada e cômica.

Luzabell e Razatte caminhavam de lado pelo campo aberto que funcionava como arena de treinos. Viraram-se para encarar Darius com desinteresse.

—O que quer? -Perguntaram as duas.

—Meu querido e nanico irmão precisa de ajuda. -Começou ele, recebendo um safanão de Miguel pela implicância. -Ele até hoje não faz ideia de qual seja seu Charme Élfico. Poderiam, oh nobres senhoras, ajudá-lo?

—Deixe de palhaçadas, seu tonto! -Ralhou o irmão. -Senhoras, eu preciso ao menos descobrir qual o dom que o sangue elfo me dá antes de investir contra Aço Voador.

—Pois bem… -Concordaram as bruxas, aproximando-se. -Tente lembrar se alguma vez sonhou com um destes animais. -Instruíram elas ao fazerem um gesto com as mãos, resultando em seis figuras: elefante, polvo, sabiá, pavão, gato e serpente.

Miguel negou com a cabeça e elas prosseguiram:

—Entre força, inteligência, eloquência, beleza, carisma e persuasão, qual supõe representá-lo melhor?

—Hum, creio que seja inteligência.

—Levando em conta que não conseguiu escapar de nós nem nos trair, creio que não.

Darius explodiu em gargalhada: -Desculpe. Pelo visto não sou o único lento, não é?

—Ignore-o… não, na verdade não… -Disseram elas pensativas.

Os irmãos se entreolharam e o elfo pôs o dedo indicador próximo à orelha e, com ele, fez movimentos circulares enquanto mantinha uma careta no rosto. O elfo-duende segurou o riso e voltou a encarar as bruxas.

—Tentou matá-lo, certo, Miguel? E também a Cícero e a Manu?

—Sim… -Confirmou, receoso.

—E quando Miguel estava preso, foi você quem resolveu soltá-lo, Darius? -Perguntaram as gêmeas, voltando-se agora ao elfo.

—Sim, era uma criatura de dar pena, esse resto de gente… todo surrado e faminto.

—Acho que está claro agora. -Falaram as vozes pareadas. -Miguel, o que pensou nos momentos que antecederam a mudança de postura de Darius para contigo?

—Que eu não merecia tudo aquilo e que precisava muito de ajuda. Que ele seria bom e me perdoaria…

—De fato está claro. -Concluíram as Bruxas Siamesas. -Você, sem saber, amarrou Darius em um Charme Élfico. Fez com que ele quisesse te socorrer e estar com você sempre, protegendo e ajudando, ainda que antes tenha tentado matá-lo…

—Que pilantrinha… -Murmurou Darius olhando para o irmão.

—Seu Charme é certamente o Carisma. Você faz seu alvo querer ser seu amigo, conquista ajuda sem esforço e mantém essa proximidade para sempre, na maioria dos casos.

—Isso parece bom! -Comemorou o híbrido. -Qual o animal que o representa?

—O gato. -Disseram em uníssono as bruxas e o ladino.

—Ah, eu não gosto de gatos.

—Azar o seu! -Rebateu Darius. -Gatos são incríveis. Como assim não gosta de gatos? Você é meio duende, deveria gostar de todos os animais.

Miguel deu ombros.

—Você possui um Carisma muito potente. -Cortaram as bruxas. -Dominou não só um elfo puro, como também um elfo puro que possui o mesmo Charme Élfico que você. É um feito extraordinário, ainda mais levando em conta sua ignorância. Certamente o sangue Quendra, embora amaldiçoado, traz junto a isso muitas dádivas potentes.

Miguel, então, olhou para o irmão com um olhar debochado e triunfante.

—Não me olhe assim! Eu enganei quatro elfos puros e sempre havia um Charme compartilhado entre nós! E eles eram da realeza!

—O que isso? Inveja? Vai querer medir poder agora? -Ironizou o ninja.

—Argh, são mesmo irmãos. -Ralharam as bruxas revirando os olhos. -Infantis! Estava óbvio o tempo todo, vocês poderiam ter chegado à conclusão sem nossa ajuda… hum, talvez não, são mesmo dois asnos. Amadureçam! -E, dito isso, as Bruxas Siamesas deram as costas e voltaram a caminhar sem rumo.

—Amadurecer para que? -Gritou Darius enquanto elas se afastavam. -Se ser verde assim é mais gostoso?

***

Cena IV – Sangue e Veneno.

15 horas e 03 minutos. Reino Anão – Ruthure. Centro de Cura.

Os soldados estavam de volta com uma situação difícil nas mãos: haviam encontrado a causa da doença e, como supunha o curandeiro em experiência, tratava-se sim de envenenamento. Reportavam-se agora à Curandeira Chefe e a um de seus capitães.

—Encontramos uma hidra morta no leito do Rio Pynan. -Contou o guarda Lanário. -Cheguei à conclusão de que foi um atentado. O animal era jovem e saudável no momento da morte, sem sinais de luta, o que prova que fora abatido. O corpo estava pontilhado de furos por onde o sangue escorria e era levado pela correnteza.

—Quem teria feito isso? -Indagou a senhora Macar.

—Eu não sei dizer. Os canais que partem do rio para as cidades foram interditados e todos povoados que eram abastecidos por eles receberam o comunicado. -Continuou Lanário, sério. -A criatura estava escondida, só a encontramos devido ao excesso de peixes mortos boiando próximos ao amontoado de pedras que cobria o cadáver. Sem rastros nem pistas, nada que possa levar ao culpado.

—Muito bem soldado. -Elogiou o capitão, levantando-se. -Passarei as informações colhidas aos meus superiores, certamente há suspeitos que podem ser ligados ao crime.

***

Cena V – Retaliação.

18 horas e 30 minutos. Reino Anão – Ruthure.

Estavam no palácio, confinados em uma das muitas salas secretas, alguns Guardiões das Chamas e oficiais de alta graduação do Exército Anão junto a Rei Rujavo.

—Meu Rei, com todo o respeito, tem certeza do que diz? -Perguntou General Zeto.

—Mas é óbvio! -Explodiu o Rei dos Anões com uma pancada na mesa. -Eu expus Néfor para quem quisesse ouvir como um aliado de nossa causa mesmo depois de ele ter pedido para manter sigilo. Ele está tentando jogar dos dois lados, me enfraquecer e tomar o meu reino!

—Tenha calma majestade. -Pediu o líder do clã. -O ataque, se partiu mesmo de Kaotheu, não surtiu efeito. Atingiu muitos civis, mas ninguém de grande importância… veja só, nenhum nobre foi envenenado, tampouco a realeza ou meu clã.

Rei Rujavo se acalmou e deu atenção às palavras de Ezerk.

—Estamos com tudo pronto para penetrar sorrateiramente em Ramavel e enfraquecer Aço Voador.

—Tudo mesmo? -Inquiriu o rei como se sua vida dependesse daquilo.

—Sim: armas, rotas, estratégias, pessoal e objetivo. -Garantiu Ezerk.

—Quem foi escalado para a missão?

Ezerk fez um gesto com as mãos convidando-os a se apresentar. Hilda, Manu, Darius e Miguel reverenciaram o rei e apresentaram-se dando todas as informações, tais quais nomes, especialidades e papéis na incursão.

—Então, partirão daqui a algumas horas e atingirão o destino ao amanhecer? -Rujavo era pura satisfação. -A imperatriz não vai suspeitar de um ataque sabendo das nossas condições. Vou garantir que seja feito um grande sensacionalismo ao redor da condição do reino, tirando qualquer suspeita de um ataque iminente.

—Creio que Ramavel não sabe sobre o envenenamento, majestade. -Lembrou Urak.

—Aposto minha língua como sabem! -Respondeu, energético. -Ou Ramavel e Kaotheu estão em conchavo; ou o ataque partiu diretamente de Ramavel e, caso tenha mesmo partido apenas de Kaotheu e os ramavenos de nada saibam, a Salvaguarda Legítima os informou. Ruthure está recebendo auxílio da aliança para tratar dos contaminados.

—No fim ganhamos a vantagem do efeito surpresa então? -Disse Darius. -Sugiro organizar um segundo grupo para por Rei Néfor e os kaothenos no lugar deles! Sem ofensas, Urak.

Rei Rujavo soltou uma grande gargalhada e disse: -Gostei de você, garoto! Ezerk, ponha isto em prática o quanto antes e dê um prêmio a este rapaz! Os soldados deste reino estão à disposição dos Guardiões das Chamas!