Eu nada sabia sobre a Guerra dos Criativos, porém agora era um Comandante, como o Arauto mesmo me chamara ao me entregar um Pergaminho com as regras dos combates, segundos antes de virar fumaça branca e sumir de minha frente, deixando sem saber o que fazer e com aquela dúvida acerca de sua existência.

Pus o objeto regulador num canto de minha mesinha e voltei a digitar o livro que eu pretendia procurar uma editora ainda naquela semana, visto que o primeiro sairia alguns dias depois. Era uma cena na qual dois dragões se atracavam furiosamente enquanto uma jovem princesa se refugiava numa caverna; era uma das cenas finais de uma "novela de fadas" que narrava as aventuras e desventuras de um cavaleiro para resgatar uma princesa das garras de uma bruxa.

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Quando conclui dois ou três capítulos, próximo do desfecho, corri os olhos pela mesa, notando o Pergaminho de regras. Fiquei tentado a abri-lo e lê-lo, mas o meu dever de digitar a obra foi muito mais forte do que a curiosidade de saber algo sobre uma coisa que nem tinha interesse em participar.

Naquele ano eu ainda era um adolescente, com dezenove anos, morava com minha mãe e minhas três irmãs; sem uma namorada, e tão impopular quanto ainda sou para muitos hoje em dia. Enfim, eu era um garoto normal — exceto pelo fato de ter conversas frequentes com meu amigo imaginário.

Hoje, quando me recordo daquele tempo saudoso, percebo o quanto fui idiota por não ter sido um pouco mais sociável, por não ter tido mais empenho ao lutar por meus sonhos — o que não aconteceu, entretanto, com o sonho de ser escritor, o qual me dediquei sempre a realizar, e ainda o faço diariamente. Apenas lamentações...

Enquanto conseguia agradar aos leitores de meus blogs, era muitas vezes falível como amigo e namorado — neste último caso ressalto que fui incapaz de sustentar um namoro de anos por causa de minha fraca capacidade de lutar. Eu era, muitas vezes, mais dedicado às Letras do que à vida em si. Escrever, como percebi um tempo depois do fim do namoro, é um meio de escapar um pouco da realidade, assim como ler me permitia — e ainda me permite — esquecer um pouco os problemas. Ora ou outra não funcionava, o que me fazia ficar ainda pior. E haja passatempos para amenizar tanta agonia e sofrimento contido! E Zarak, aquele monstrinho que me fizera acender a tocha criativa, era o responsável por sempre me alegrar e trazer ideias para criar minhas histórias fantásticas. Sempre, mesmo quando não aparecia com suas maluquices e ensinamentos curiosos.

Olhei para o relógio no canto inferior direito na tela do monitor, percebendo que já era muito tarde. Se eu ficasse mais meia hora ali, digitando o que havia escrito no caderno, teria uma dor de cabeça terrível e grande irritação nos olhos, o que não me traria boas consequências. Salvei meu progresso, fiz uma cópia para deixar no pendrive, desliguei o computador que com tanto esforço consegui comprar — pagando quase uma dúzia de prestações — e me espreguicei, olhando a cama que parecia me chamar para deitar nela e dormir. Sono. Muito sono.

Àquela altura não me vinha mais à mente o Arauto, sua mania de falar em versos com rima, o Pergaminho ou a Guerra dos Criativos — fosse este evento lá o que fosse. O sono era quem imperava em mim.

Deitei-me, meio desengonçado, de qualquer jeito, pensando na ex-namorada, quem ainda me trazia certo tipo de sentimento, um resquício de amor, creio eu. Ou arrependimento.

Enxuguei as lágrimas que insistiram em molhar meu rosto.

Tudo aquilo era passado. Ela estava com outro, alguém que a faria mais feliz do que fui capaz, uma pessoa que faria tudo aquilo que eu devia ter feito, contudo não fiz. Era uma pessoa muito mais feliz sem minha presença.

Ajeitei-me na cama, cobrindo-me com a coberta grossa, mais triste do que gostaria de estar, pois não havia motivos para tal, e sim para comemorar. Em poucos dias ocorreria o lançamento de meu primeiro livro, embora a "festa" de lançamento se limitasse a participar de um evento cultural num colégio como convidado — isso graças a muita luta e persistência.

Arfei, talvez lamentando por alguma coisa. O sono agora fazia minhas pálpebras pesarem. Pisquei os olhos algumas vezes até fechá-los por completo. Estava completamente exausto.

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— Acorda, Alex! — gritou uma voz conhecida, enquanto o meu corpo era sacudido.

Abri os olhos, assustado.

— Quê?! — balbuciei, forçando minha visão a se acostumar com uma luz forte.

Diante de mim estava o monstrinho que eu criei quando criança.

— Levanta logo, rapaz! — pediu ele, apressado nos gestos e na voz.

— O que está acontecendo?

— Perguntas depois!

Zarak agarrou a minha mão, puxando-me, obrigando-me a ficar em pé.

Levantei-me como pude, seguindo-o. Não entendia como fui parar num campo aberto, porém não me preocupei em parar e me indagar ou indagar alguém.

Nós dois entramos numa toca, onde um jovem centauro loiro nos aguardava.

— O bicho pegando, hein? — comentou a criatura meio menino, meio potro.

— Esta semana vai ser fogo — concordou meu amigo imaginário.

— O que está havendo? — perguntei, bastante confuso.

, Alex!

Não compreendi a exclamação de Zarak. E ele não me explicou também, pois logo à frente enormes avestruzes passaram em disparada, chamando-nos a atenção. Sobre cada animal havia um ou dois anões esverdeados e com cabelos vermelhos.

— A cavalaria chegou — observou o centaurinho.

— É.

— Alguém pode me explicar o que está acontecendo aqui?

Havia um pouco de desespero na minha voz.

— Ainda não percebeu, ? — perguntou o monstrinho, fitando-me com seriedade.

— Se eu tivesse percebido, você acha que eu perguntaria?

Ele e o outro riram, parecendo que eu havia dito algo muito engraçado, como uma piada.

— Ele não leu o Pergaminho — disse o pequeno centauro loiro, dirigindo-se a Zarak, em tom quase de confidência, se não fosse o fato de eu estar ali ao lado deles.

— Com certeza.

Realmente eu não havia lido o tal Pergaminho. Melhor: não havia nem aberto para dar sequer uma espiada.

— Primeira Regra: "Todo e qualquer participante da Guerra dos Criativos integra aos combates uma vez que aceite o convite irrecusável, bastando para isso dormir”.

— Como é que é?! — apavorei-me.

— O que Hipólito quer dizer é que você agora está voluntariamente no maior combate do mundo, uma luta entre os maiores Criativos do Universo — explicou o monstrinho, todo formal.

Naquele momento eu não sabia o que fazer ou pensar. Nunca imaginei que fosse participar de uma coisa que nem conhecia tão rápido e sem ser avisado previamente.

Zarak olhava para fora com aqueles olhinhos redondos e negros, fascinado com a luta entre os anões de pele verde montados nos avestruzes e as criaturas magrelas com bastões.

— É um sonho? — indaguei, aproximando-me um pouco de meu amigo.

— Sim e não.

— Como assim "sim e não"?

— "Sim" porque é um sonho e "não" porque não é um sonho — respondeu o monstrinho, contradizendo-se numa única frase.

Era da personalidade de minha criatura sempre me deixar confuso.

— Zarak, você sabe que não é possível sonhar e não sonhar, não sabe? — comentei, irritado.

— Sério?! — replicou ele, fitando-me. — Nunca notei.

— Veja aquilo, Zarak! — pediu Hipólito, que estava ao meu lado.

Instintivamente — ou por pura curiosidade —, também olhei para o ponto no qual o centauro menino apontava, enxergando o avanço lento, mas firme e assustador, de um gigante de pedra.

— Apelou para um golem! — admirou-se Zarak, sorrindo.

A criatura de pedra segurava na mão esquerda um tronco de árvore que lhe servia de porrete. Ora ou outra ele o sacudia, derrubando os curupiras e suas montarias com grande estrondo.

Se aquilo fosse um sonho — ou não —, o fato é que tentei acordar, chegando a me beliscar com muita força até o ponto de soltar um grito de dor. Dor tão intensa e real quanto aquela que eu sentiria caso estivesse acordado.

— Já falei que você dormindo, não? — indagou-me o monstrinho, ao me ouvir gritar, sem me fitar.

— Sim, por isso eu...

— Tentou acordar com um beliscão?

— Sim.

— Fala sério! — reclamou ele. — Quantas vezes eu vou ter de dizer que você não está sonhando, hein?

— Mas como eu posso não estar sonhando e ver tudo isso?

— Da mesma maneira que não sou real para o mundo, mas sou para você.

— Vejam! — exclamou Hipólito, mais empolgado do que antes.

Olhamos a tempo de testemunharmos um bando de rinocerontes cercando o golem e o atacando com seus chifres, arrancando torrões de barro, fazendo-o perder o equilíbrio e cair, quebrando-se totalmente e causando grande estrondo e erguendo grande quantidade de poeira, que cobriu parte do campo de batalha.

— Realmente esta semana promete — disse Zarak, contente.

Eu não sabia nada ainda sobre a Guerra dos Criativos, porém começava a formar um juízo antecipado — e errôneo — dela: era uma guerra como outra qualquer, um conflito no qual dois lados se enfrentavam num derramamento de sangue. Não havia nada de mais; era tudo uma demonstração de violência e crueldade, como todas as demais guerras.

— E você, Criativo? — indagou o centaurinho, voltando-se repentinamente para mim. — Em que posto foi convocado?

— Comandante, eu acho...

— Comandante?! — assombraram-se os dois.

— Sim.

As expressões deles pareciam de preocupação, piedade ou algo parecido.

— Algum problema? — perguntei, agora preocupado.

— Explica para ele, Hipólito! — pediu o monstrinho, sério.

— Por que eu?

— Porque você é a nossa "enciclopédia", oras!

— Bem — principiou o jovem centauro, pigarreando —, os Criativos são divididos em grupos: os Generais, os Capitães, os Comandantes e os Mensageiros, em ordem de importância na Guerra.

— Isso quer dizer que eu...

— Que você só está acima de um Mensageiro — disse Zarak, quase exclamando.

— Não entendi.

— Já sabemos um dos motivos para o posto, Zarak.

Os dois me chamavam de retardado na maior cara de pau do mundo!

— E a quem você presta serviço? — perguntou meu amigo imaginário, sem rir do comentário do outro.

— Como assim?

— Segunda Regra: "Mensageiros obedecem a Comandantes, que obedecem a Capitães, que obedecem a Generais, que mandam em todos. Cada Mensageiro obedece a um Comandante, que obedece a um Capitão, que obedece a um General, que não obedece a ninguém”.

Eu começava a me irritar com aquele centaurinho sabichão.

! Eu não sei a quem obedeço, oras! — zanguei-me.

— Pois deveria saber, afinal você deve servir a alguém para participar da Guerra — falou Hipólito.

— E quem disse que eu quero participar de uma guerra?

— Você aceitou o convite irrecusável, amigo — disse Zarak.

— Para início de conversa, só o aceitei porque eu não podia recusá-lo!

— Mas o aceitou, não?

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Aquele monstrinho branco sabia muito bem me provocar. E estava conseguindo novamente. Para não falar ou fazer alguma besteira com um dos dois, corri os olhos para o campo de batalha, onde a pancadaria rolava solta e havia cada vez mais elementos fantásticos.

— E o que exatamente faz um Comandante? — indaguei, voltando a fitar os dois seres que me acompanhavam.

— Comanda uma parcela de uma tropa — respondeu o pequeno centauro loiro.

— Parece bom — comentei.

— Não para alguém que sonha ser escritor — retrucou Zarak, indiferente ao comentário que estava fazendo.

— Por quê?

— Escritores, pintores, ilustradores, poetas, músicos e afins ou são Capitães ou Generais.

Encarei Hipólito, que continuou a destilar seu preciso e poderoso conhecimento enciclopédico:

— Monteiro Lobato foi um General, William Shakespeare também; Victor Hugo foi um Capitão, assim como Homero...

— Mas houve algum escritor que foi um Comandante, não? — perguntei, quase desesperado.

— Claro que sim, sempre há algum.

— Quem?

— A. C.­ — respondeu o monstrinho, sério.

(Não revelarei de quem se trata a fim de evitar algum transtorno ou processo judicial.)

— Sério?!

— É, mas ele perdeu a Guerra e passou a ser...

(Também não revelarei a profissão pelos mesmos motivos.)

Não pude determinar exatamente se falavam sério ou brincavam comigo, pois meu amigo sabia que eu não gostava muito dos livros do homem mencionado, que se gabava de ter uma profissão específica e ser ainda autor de livros tão lidos, tendo o ego e o orgulho tão inflamados quanto balão de gás.

— Alguns políticos que você conhece foram Comandantes, o que os fizeram se tornarem larápios — continuou o centaurinho.

— Nossa! — exclamei, sem saber se aquilo me confortava ou me preocupava.

— O fato é que ser Comandante costuma tirar um pouco a criatividade, obrigando o Criativo a buscar outros meios. Alguns se dão bem, como A. Porém outros acabam anônimos, esquecidos entre as trevas do desconhecido.

— Com certeza você já ouviu falar de Hans Albrecht, um escritor, não? — questionou-me Zarak.

— Não, nunca.

— Porque ele perdeu a Guerra e a criatividade — explicou Hipólito.

— É tão ruim assim perder esta guerra?

— Não quando se é ou Capitão ou General.

Aquela conversa toda havia conseguido me apavorar.

— Já acabou o combate — avisou o monstrinho, após olhar o exterior por alguns segundos.

— Quem venceu? — questionei, instintivamente.

— Houve empate... de novo.