A Estrada não percorrida

Perdidos em uma noite escura


Com um cesto de vime grande e cobertores limpos, Daniel improvisa um berço para acomodar os bebês. Resmungando algo sobre como a mãe deve descansar, ele pega duas cadeiras da modesta mesa que compõe sua cozinha e acomoda o cesto sobre elas, certificando-se de que o mesmo está firmemente posicionado próximo à cama.

Acompanhando seus movimentos com olhos curiosos, Emma tenta compreender o comportamento contraditório desse homem que parece detestar a ideia de ter pessoas estranhas em seu recanto, mas que ao mesmo tempo não consegue deixar de se preocupar com seu conforto, ou mesmo, bem estar.

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Tão logo ele se afasta dando a tarefa por completa, os sons de uma torneira sendo aberta e o retinir de uma chaleira sendo depositada sobre o fogão indicam que ele já encontrou uma nova ocupação; Emma inspeciona a firmeza da estrutura montada por ele com interesse. Ruby, por sua vez, não parece ter olhos para nada que não sejam as criaturinhas que ela acabou de trazer ao mundo.

A menina, e Emma já a reconhece pela cabeleira escura e olhar zangado, é a primeira a largar o peito, deixando um longo suspiro declarar seu extremo cansaço. Com delicadeza, Emma a pega em seus braços, a acomodando junto ao seu ombro e lhe dando pequenos tapinhas nas costas até escutar um sonoro arroto. O gesto, quase instintivo, nasce da prática e de memórias até então dormentes.

Sentindo um aperto súbito no peito, Emma gentilmente acomoda a bebê no berço, certificando-se de que ela esteja devidamente coberta e aquecida.

Ruby por sua vez ainda trás o menino deitado sobre seu peito, menor e mais frágil, mas com apetite tão ávido quanto o de sua irmã. Emma aproveita o momento para estudar suas feições. Quase careca, ele tem longos cílios e seu rosto parece menos vermelho e enrugado, embora do ângulo em que o observa, Emma tenha certeza de que os dois tenham herdado o nariz da mãe. Exausta, Ruby mal consegue manter os olhos abertos, um sorriso preguiçoso adornando seus lábios por ora ligeiramente pálidos.

— Você já viu um filhote tão pequeno? – Ela pergunta em um semisussurro, acariciando as costas do filho com o mais suave dos toques.

— Pequeno, mas voraz. – Emma contribui com um sorriso seu e um breve olhar constata que a menina adormeceu embora sua mão ainda esteja segurando seu polegar com firmeza.

Emma provavelmente jamais deixará de se maravilhar com mãozinhas tão pequenas já adornadas por linhas e unhas que parecem detalhes microscópicos em uma pintura.

— Killian vai ficar insuportável quando souber. – Ruby declara com os olhos fechados, como se estivesse apenas descansando a vista, quando na verdade Emma sabe que a amiga está prestes a perder uma batalha ferrenha contra o sono.

Não é preciso ser um gênio para saber que Ruby tem a mais absoluta razão. A ex-xerife ainda consegue lembrar o sorriso idiota com o qual Hook a brindou quando anunciou que seria pai, nem mesmo o breve pânico que o acometeu no instante em que suas palavras foram ditas em voz alta - tornando tudo aquilo mais real e irreversível - sendo capaz de abafar seu Emma se pergunta onde ele estará agora e quando Ruby abre os olhos inchados e marcados por olheiras fundas, não é preciso poderes de clarividência para que a loira saiba o que se passa por sua cabeça naquele momento. – Nós temos que encontrá-los, Emma.

— Nós vamos. – Ela lhe assegura sem deixar espaços para dúvidas na convicção de suas palavras. – Eu prometo, Ruby. Mas agora você precisa descansar.

Percebendo que o bebê adormeceu, Emma o recolhe com cuidado e o posiciona ao lado da irmã no cesto. Lado a lado, e difícil imaginar que os dois sejam gêmeos, a menina sendo consideravelmente maior do que o menino, e sem perceber Emma já começa a catalogar todos os menores detalhes, diferenças e semelhanças, que é capaz de reconhecer entre as duas crianças.

O mais importante, é que ambos parecem saudáveis e, nesse momento em particular, este é seu maior e talvez único consolo. Ao olhar para Ruby, Emma percebe que a amiga também se rendeu ao cansaço e com cuidado, procurando não perturbar seu merecido descanso, ela ajeita as cobertas que a cobrem.

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Do outro lado do cômodo, sentado em uma cadeira que parece bem pouco confortável, Daniel encara as chamas do fogão à lenha, como se seu pensamento estivesse muito distante dali.

Alguém poderia pensar que sua distração seja o suficiente para que ele tenha esquecido, mesmo que momentaneamente, a presença de seus mais recentes hóspedes. Mas nem por um instante, Emma imagina que este seja o caso. Até onde ela sabe, Daniel é um caçador e a julgar pelas peles que cobrem o chão e a cama, bem como as cabeças de animais penduradas na parede, ele é um tipo no mínimo talentoso. De modo que, não é difícil para ela deduzir que o homem em questão esteja mais do que acostumado a se manter atento a tudo que se passa ao seu redor.

Com passos silenciosos cujo intuito é não perturbar o repouso de Ruby e os bebês, Emma caminha até a beirada do fogão e sem cerimônias serve o restante do café que encontra no bule em uma caneca rústica e batida. O gosto forte imediatamente reacende seus ânimos e Emma percebe que essa é a primeira vez em anos que ela tem a oportunidade de beber o que pela maior parte de sua vida foi praticamente seu combustível.

Eles realmente deixaram aquela realidade para trás, ela pensa, e pela primeira vez o impacto dessa realização lhe atinge em um quase nocaute.

Indiferente aos movimentos da loira, Daniel continua imóvel e imperturbável em seu lugar, mesmo quando ela puxa a única cadeira restante, escolhendo sentar-se exatamente ao seu lado.

Do lado de fora da cabana a chuva ainda cai sem sinais de trégua.

— Eu não tenho como agradecer o que você fez. – Emma admite levando a caneca à boca mais uma vez, passados alguns minutos de longo e confortável silêncio.

— Então não agradeça. – Ele dá de ombros, resignado. – Até porque não há muito que eu possa fazer com um punhado de palavras.

Emma franze a testa, surpresa, mas não exatamente ofendida com sinceridade cortante desse homem estranho que as acolheu. Suas maneiras abrasivas a lembram vagamente de Leroy, o que é o suficiente para colocar um pequeno sorriso em seus lábios. – É verdade. Ainda assim, nós não podemos agradecê-lo o suficiente. Nos acolher dessa forma, bem... Isso não é algo que qualquer um faria.

— É verdade. Outra pessoa provavelmente teria tido mais bom senso antes de trazer duas estranhas pra dentro de casa em plena tempestade. – Ele fala com os olhos azuis fixos na figura de Emma, analisando sua reação.

Com uma expressão pensativa, Emma devolve o olhar na mesma moeda. As palavras dele são sérias, mas algo na forma como ele as enuncia faz com que ela reconheça ali uma armadilha, uma provocação cujo objetivo é testar sua reação. Ao invés de pisar no alvo, Emma o circunda. – Outra pessoa dificilmente teria a experiência necessária para ajudar a minha amiga nas atuais circunstâncias. Sinceramente não sei o que teria sido da Ruby e dos bebês se você não tivesse nos achado.

As palavras de Emma parecem desarmar o estranho. Ela estuda suas feições enquanto ele se recolhe mais uma vez em seu silêncio, não esperando uma resposta quando minutos mais tarde ele finalmente se pronuncia. – Pra falar a verdade, a única experiência que já tive até hoje foi com cavalos. Ainda bem que a natureza costuma tomar as rédeas nessas circunstâncias.

— Você tá falando sério? – Emma fala arregalando os olhos então, o horror evidente em sua fisionomia. Daniel não precisa responder para confirmar suas suspeitas. – Meu Deus! Se a Ruby sequer sonhar com isso-- Um rápido olhar na direção da cama comprova que sua amiga continua tão apagada quanto uma lâmpada queimada. – Podemos fazer um pacto aqui e agora e nunca mais mencionar esse pequeno detalhe? Pela segurança da minha vida e da sua?

O ronco que escapa de Daniel de forma quase gutural é talvez o som menos mal-humorado que ele tenha produzido desde que Emma cruzou seu caminho pela primeira vez.

Ela o toma como um bom sinal.

— Por mim tudo bem. Emma, certo?

A ex-xerife lhe oferece um sorriso cúmplice.

— Muito bem, tendo acertado esses pontos de fundamental importância, Daniel você por acaso se importaria se eu me aproveitasse da sua hospitalidade? – Ele lança um olhar desconfiado em sua direção, ao que Emma elabora. – Preciso de uma lanterna e se você tiver talvez uma capa de chuva e galochas.

Daniel olha para ela então, como se ela tivesse acabado de contar uma história maluca sobre ser filha da Branca de Neve e do Príncipe Encantado. Seu espanto sendo apenas maior quando fica evidente que a loira está falando sério.

— Não tem a menor chance de você sair debaixo dessa tempestade. – Ele declara em definitivo.

— Você não entende... Minha família está em algum lugar nessa floresta. Meus garotos, meu melhor amigo, minha... – Emma não sabe ao certo em qual categoria entra Regina, todas ou nenhuma, é algo que ela simplesmente não pode pensar, ao menos não agora. As palavras morrem em sua boca. – Eu não posso simplesmente abandoná-los. Especialmente nessas condições.

— E você acha que seria capaz de encontrá-los? Olha moça, eu morei nesses bosques toda minha vida e mesmo eu não me arriscaria a sair batendo perna nessa tempestade. O melhor que você faz, por você e por eles, é esperar que ela passe. Eles provavelmente encontraram algum abrigo. Há muitos na região. Se eu deixar você sair por essa porta não estarei fazendo nenhum favor a você, nem a sua família.

Emma quase quer discutir, especialmente quanto a ele ser capaz ou não de deixar que ela faça alguma coisa, mas nesse momento, um trovão forte rompe no céu com força suficiente para que as estruturas da cabana estremeçam.

Nem um segundo mais tarde os dois bebês começam a chorar ao mesmo tempo. Os argumentos que tem na ponta da língua desaparecendo de uma só vez quando Emma se vê obrigada a olhar suas circunstâncias objetivamente e conceder, ainda que apenas momentaneamente. – Muito bem... Neste caso, qual sua experiência com bebês?

Daniel parece ainda mais perplexo perante essa pergunta do que pela falta de senso de Emma ao propor sair no meio da tempestade.

— Por que você pergunta? – Ele pergunta temeroso.

— Bem, se você não tiver outros planos, eu esperava que pudesse me dar uma mãozinha aqui. Acho que nós dois concordamos que a Ruby precisa de todo descanso que conseguir.

Sem precisar olhar, Emma se dirige até o berço improvisado, sabendo que seu argumento é incontestável.

À contragosto, Daniel se levanta e não demora a que Emma deposite a menina em seus braços. Ele parece grandalhão e sem jeito, ainda mais segurando uma coisinha tão frágil. Então, mais por instinto do que experiência, ele se põe a embalá-la, do mesmo jeito que Emma está embalando o menino.

Com um sorriso, Emma o provoca. – Viu? Não é tão difícil.

Desta vez Daniel olha para Emma como se ela definitivamente fosse louca, mas quando seus olhos azuis recaem sobre a menina, seu semblante parece suavizar ainda que apenas pelo mais breve instante. A pergunta escapa de Emma antes que ela tenha o bom senso de pesar suas implicações, ou mesmo sua impertinência. – Por acaso você tem filhos?

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A voz de Daniel é estranhamente opaca quando ele responde, sem tirar os olhos do bebê em seus braços. – Não que eu tenha conhecimento.

Alguns minutos se passam, nos quais apenas se pode ouvir o estalar da lenha no fogão e os sons emitidos pelos bebês.

Com o garotinho de Ruby em seus braços, Emma não pode deixar de pensar nos seus. Algo deve transparecer em suas próprias feições, uma vez que ao levantar os olhos, Emma se depara com Daniel estudando-a com cuidado, mas mesmo ela não é capaz de antecipar suas próximas palavras.

— De onde vocês vieram? – Ele pergunta sem tom de acusação, parecendo apenas genuinamente intrigado. Sua indagação feita com a simplicidade de alguém acostumado a seguir pistas como as pegadas de um animal na terra ou os indícios de que uma forte chuva está a caminho.

Emma não responde de imediato. Uma porção de memórias inundando sua mente, como se, de repente, alguém tivesse aberto todas as comportas de uma só vez. Todo o percurso que os levou até esse momento tão longo e improvável que Emma não seria capaz de colocá-lo em palavras mesmo se quisesse.

Ela se lembra de um cupcake e uma vela, a campainha tocando no meio da noite e um garoto decidido a fazer parte de sua vida. Ela se lembra de uma cidade peculiar no Maine, uma mulher de olhos escuros e ferozes, capazes de despertar em Emma coisas que ela jamais havia sentido. Emma se lembra de contos de fadas, ficção transformada em realidade, chocolate quente com canela, mistérios e mágica, espadas e dragões, heróis e vilões, beijos de amor verdadeiro, quebrar maldições e atravessar portais.

Emma se lembra de todas as pessoas que conheceu e perdeu, de todas as vezes em que teve que dizer adeus, de lutar, lutar e lutar para então correr, fugir, sobreviver e lutar novamente. Ela se lembra do peso da liderança, de pessoas cujas vidas dependiam de suas decisões, das lágrimas amargas de sua mãe quando seu pai se tornou um monstro. De não saber mais para onde ir ou o que fazer.

E então, mais uma vez, Regina. Mais uma vez sua presença inescapável e seus olhos escuros e descobrir por trás de sua ferocidade e teimosia, alguém capaz de encontrá-la em lugares seus que ninguém jamais pisou, capaz de desafiá-la e provocá-la sempre muito além de seus limites, mas também capaz de lhe estender a mão e compreender cada um de seus silêncios.

Acima de tudo, Emma se lembra de promessas feitas em meio à escuridão da noite, a certeza de haver apenas uma saída. A inocência de Evan, a valentia de Henry, a camaradagem de Hook, a lealdade de Ruby. De ter que dizer adeus mais uma vez, sua mãe se escondendo atrás de sua melhor chance mais uma vez, Regina segurando sua mão, Regina acreditando em seus poderes, Regina chamando seu nome e então aquele beijo, antes de toda uma realidade ser deixada para trás.

Como é possível que tudo isso tenha se dado em apenas uma vida, quando agora seu passado parece tão distante, ela não sabe dizer.

Palavras nunca foram seu forte, Henry sempre foi melhor em contar histórias.

Emma olha para o homem ao seu lado, usando o que seu filho chama de seu superpoder. Algo lhe diz que mesmo com seus modos bruscos e sua falta de tato, o homem que ela tem diante de si é sim digno de confiança.

Mas isso somente já não é o suficiente – algo que Emma aprendeu à duras penas.

E a verdade é que ela não conhece Daniel.

Ele é apenas um estranho que lhe estendeu a mão em uma noite de tempestade fria. Um homem de aparência rudimentar e jeito seco, cheio de arestas e direto demais para ser considerado agradável ou mesmo gentil. Ao que tudo indica, alguém que se acostumou à solidão e que já não se lembra de o que é estar em contato tão próximo com outras pessoas.

Em verdade Emma acredita que ele tenha uma alma boa por debaixo dessa superfície dura, mas ela também sabe que isso não é o suficiente para que possa lhe confiar sua história e seus segredos e que quando ele pergunta, possivelmente sequer lhe passe pela cabeça qual seja a real história. Assim, quando ela finalmente responde, é com a sinceridade que ele merece, mas com a reserva que lhe é de direito.

— De muito, muito longe. – Emma diz com a voz embargada, o cansaço de seu percurso finalmente pesando sobre seus ossos. E se ele percebe o tremor de suas verdades ou a tormenta que a acomete de dentro pra fora, ela tampouco é capaz de dizer.

No forno a lenha queima, lá fora a chuva cai um pouco mais serena, mas em seu coração permanece a inquietação de não saber onde estão as pessoas que ela ama.

E isso é tudo em que Emma consegue pensar nesse momento.

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Quebrar a maldição.

A menina diz, como se fosse algo óbvio e simples, uma declaração que não exigisse qualquer explicação, e sem nem mesmo piscar duas vezes, se põe a escovar a crina de seu pônei, enquanto Hook permanece boquiaberto, todos os argumentos que ele tinha em mente fugindo por completo e dando lugar a um retumbante vazio.

Longos minutos se passam até que o pirata seja capaz de articular uma reação, o que ele enfim consegue, mas não sem antes deixar escapar uma risada nervosa.

— Olha mocinha, eu não sei o que você acha que encontrou, mas eu garanto não ser esse herói que você está procurando. Na verdade, eu não poderia estar mais longe disso.

Sob longos cílios, seus olhos castanhos finalmente parecem estudá-lo com mais atenção, como se ela estivesse buscando a verdade por trás de suas palavras e Hook não deixa se sentir uma estranha sensação perante tão intenso escrutínio.

Ele, por sua vez, também observa, intrigado por esta curiosa criatura que cruzou o seu caminho e que pode muito bem ter salvado sua vida.

Trata-se de uma menina apenas, uma criança; ele não está certo quanto à sua idade, mas está certo disso, ainda que seus trejeitos sejam pouco infantis. Seus cabelos longos e castanhos encontram-se presos em uma trança prestes a se desfazer e suas roupas, embora encardidas, são de boa qualidade e acabamento fino. O mesmo pode ser dito de suas longas botas de cavalgar. Seu mais desconcertante traço sendo a familiaridade de seu olhar, embora Hook esteja certo, principalmente agora, de jamais tê-la visto antes em toda sua vida.

Após uma cuidadosa observação, a menina aperta os olhos, enrugando o nariz, como se tivesse encontrado um resultado não esperado após fazer um cálculo simples.

— Preciso reconhecer que você não era exatamente o que eu tinha em mente. – Ela reflete em voz alta, inabalada pela forte chuva que cai sobre a frágil instalação em que se encontram ou pelo assovio assustador do vento trazido pelo mar que, a julgar pelo cheiro de maresia que Hook pode sentir, não se encontra muito distante dali. – Inclusive, acho que eu nem teria desconfiado se, apesar de o livro não dar exatamente uma descrição específica, ele não mencionasse com tanta clareza o termo ‘viajante’. Ainda assim, de fato eu esperava uma figura com aspecto mais heroico, talvez até mesmo um príncipe. Nunca me ocorreu que o salvador pudesse ser justamente um pirata.

Talvez Hook tenha batido a cabeça, afinal.

O que certamente justifica a pausa antes que ele perceba o que ela acabou de dizer.

Indignado com sua aparente decepção, ele ergue o queixo, desafiador. – E quem disse que eu sou um pirata?

Ela sorri, talvez pela primeira vez desde que surgiu em seu caminho, um leve traço de divertimento lhe tingindo o rosto, o que o faz ter certeza de que deveria reconhecê-la. – Francamente a roupa de couro, a pintura de olho e o gancho não deixam muito para a imaginação. Quer dizer, o clichê só seria maior se você tivesse uma perna de pau e um papagaio.

— Oy! – Ele franze a testa, agora definitivamente ofendido. Como ousa uma mera pirralha zombar do Capitão Hook? É um ultraje!

Endireitando sua postura tanto quanto suas amarras o permitem e buscando uma posição mais digna, Hook tenta não se deixar afetar tão facilmente. – Não tenho culpa se você não sabe reconhecer um visual clássico. E saiba que o gancho não é um adorno, mas sim uma arma letal. Agora se eu claramente não sou a figura que você esperava, porque então você não me solta e permite que eu siga meu caminho?

Sem lhe dar a chance de responder, ele continua. – Embora eu aprecie a parte em que você me ajudou a sair da água, se você tivesse me perguntado antes, eu teria lhe poupado todo esse trabalho. – Ele fala sinalizando as cordas que amarram seu torso, pernas e braços.

— Você quer dizer a parte em que eu salvei a sua pele e impedi que você morresse afogado. – Ela ergue uma sobrancelha.

— Vamos concordar em discordar. – Hook insiste teimosamente. – O principal aqui é que você tinha razão em suas suspeitas iniciais. Eu não sou nenhum salvador.

Toda a bravata da menina parece dissipar de uma só vez. – Eu sei o que eu vi! Um portal se abrindo no céu e então você passou por ele, caindo direto na água. Isso não pode ser coincidência!

— Sozinho? – Hook pergunta com a expressão séria e subitamente sombria.

— Sim! – Ela afirma com segurança, suas feições suavizando por um breve instante, um brilho novo em seu olhar. – Como mágica.

Hook não sabe o que isso quer dizer, mas tampouco pode ignorar a preocupação que o invade. Onde estarão os outros? Para onde o portal da rainha os trouxe? As perguntas se multiplicando e se atropelando em sua linha de raciocínio. Sua única certeza é a de que ele precisa sair em busca de respostas. Assim, quando ele se dirige à menina, é com uma expressão sóbria e determinada.

— Escuta mocinha, eu posso lhe assegurar: não sou esse salvador que você tanto procura. Mas acredito conhecer alguém que possa ser. Se você me soltar agora, nós podemos procurar por ela juntos. Você tem minha palavra.

Ela escuta sua proposta atentamente e parece prestes a ceder quando uma voz abafada anuncia a aproximação de alguém.

— Cordelia! – Trata-se de uma voz feminina, cada vez mais próxima e clara, mesmo com o barulho da chuva e do mar em fúria. – Cordelia!!

Surpreendida, a menina arregala os olhos, e imediatamente apaga a lanterna que traz consigo. No escuro, Hook a escuta sussurrar. – Você precisa fazer silêncio. Se formos descobertos aqui, estaremos em grandes apuros.

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— Cordelia? É esse seu nome? – Ele pergunta agitado, sem conseguir enxergá-la direito agora que a cabana encontra-se desprovida de iluminação. – Se você me desamarrar eu posso ajudá-la.

— Se você realmente sabe quem é o salvador, então você é minha única pista. Eu não posso deixar você escapar. – Ela argumenta em voz baixa, e Hook sente o desespero brotar em seu peito. Ele tenta afrouxar as amarras, mas elas pouco cedem apesar de seus esforços.

— Por favor! – Ele implora, mas sua voz é sobreposta pela voz que vem de fora da cabana, cada vez mais próxima.

— Cordelia!

— Shh!! Eu tenho que ir antes que ela nos encontre. – Hook tenta argumentar, mas ela o interrompe. – Não se preocupe! Eu volto na primeira oportunidade. Vou deixar o Alfonso para te fazer companhia.

Ignorando seus apelos, a menina se despede do pônei com um rápido afago e Hook pode apenas observar sua sombra quando ao abrir da porta, sua figura fica momentaneamente visível.

— Eu prometo que volto. – Ela afirma mais uma vez antes que ele a perca de vista, deixando que a porta bata em seu encalço.

Com um longo suspiro, Hook deixa seu corpo tombar contra o pilar no qual está amarrado. O bufar de Alfonso é similar ao seu e mesmo sem poder vê-lo claramente, Hook se pega reconfortado por sua presença.

— Por acaso você não teria ideias de como nós soltar daqui, não é? – Ele pergunta para o animal, mas obtém apenas um sonoro resfolegar.

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Através das frestas da cortina persiana, Henry observa a movimentação do lado de fora da sala à qual ele e Evan foram encaminhados.

Trata-se de uma noite atribulada e o burburinho reverbera pelos corredores, sendo apenas abafado pela porta fechada. Apesar do cansaço, a adrenalina e preocupação mantém Henry aceso. O mesmo não pode ser dito de Evan, que enrolado em um cobertor oferecido por uma das enfermeiras ressona pesadamente sobre o sofá.

Distraído, Henry quase não nota quando a jovem enfermeira retorna trazendo uma bandeja coberta.

— A cantina já estava fechada, mas consegui algumas coisinhas na sala dos atendentes. – Ela anuncia animadamente, reduzindo o volume da voz ao notar o garotinho adormecido. – Oh, desculpe...

— Tudo bem – Henry lhe afirma, buscando disfarçar seu sobressalto. – Ele dorme feito uma pedra. Tenho quase certeza que depois do dia que tivemos nem mesmo um terremoto seria capaz de acordá-lo.

Com um olhar curioso e um tímido sorriso que parece estremecer em seu rosto, a jovem enfermeira está prestes a fazer um comentário qualquer, somente para mudar de ideia no último instante. Focando os olhos claros na bandeja que tem em mãos, ela opta por concentrar-se na tarefa que a trouxe até ali. – Então... Consegui um sanduíche de rosbife, caldo de abóbora, um pacote de batata chips, duas gelatinas, uma lata de coca e uma caixinha de suco de maçã. Não é muito, mas dá pra quebrar o galho até o café da manhã ser servido, não é?

— De onde eu venho isso é praticamente um banquete. – Henry comenta sem pensar, e se não fosse pelo sonoro ronco de seu estômago, ele talvez tivesse notado a entranha expressão que cruza suas feições. Gentilmente ele tenta acordar Evan, insistindo que o pequeno coma alguma coisa, mas com um resmungo o menino se recusa a despertar, virando de lado no sofá e lhe dando as costas.

— Deixe ele descansar, a comida ainda estará aí quando ele acordar. – A jovem recomenda, se aproximando de Evan e ajustando o cobertor sobre seu corpo.

Sem cerimônia, Henry desembrulha o papel alumínio que cobre o sanduíche, e se põe a devorá-lo. Somente instantes mais tarde, com a boca ainda cheia, ele parece notar os olhos azuis fixos em sua figura.

— Obrigado. – Ele diz sem ter engolido por completo o pedaço que está mastigando, mas ela não parece se incomodar com isso.

— Tudo bem. Olha, se você precisar de alguma coisa, é só me falar. Meu nome é Rory.

Acenando afirmativamente, Henry se recorda das lições de bons modos que recebeu de Regina e não ousa abrir a boca mais uma vez até ter terminado de engolir. Rory já está com um pé no corredor, quando a voz dele a alcança.

— Você tem alguma informação sobre a minha mãe?

— Ainda não. Mas prometo que assim que souber de qualquer coisa, você será o primeiro a saber, ok?

Henry não está acostumado a depositar sua confiança em estranhos. Mas não é como se ele tivesse alguma opção nesse momento. Resignado ele aceita suas palavras e abre a lata de refrigerante. O gás faz cócegas em seu nariz e o gosto nauseantemente doce faz com que ele se lembre de sua infância e de um passado que já não parece tão distante.

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Existem duas salas de cirurgia no hospital de Storybrooke e apenas uma delas se encontra em uso no presente momento. Pela janela que separa a sala principal da sala de preparação, Rory é capaz de observar os médicos trabalhando para salvar a mãe dos garotos.

— O que você tá fazendo aqui? Estive te procurando por toda parte. Preciso de ajuda com o paciente do leito 6. – Seu colega de profissão, Allan anuncia, segurando a porta aberta com uma das mãos.

Com os olhos grudados no outro lado do vidro, Rory responde sem sequer se virar em sua direção. – Já vou, me dê apenas uns minutos. O filho dessa paciente me pediu noticias sobre a mãe.

Allan se aproxima com passos leves e Rory percebe que em suas mãos ele traz uma bandeja com utensílios a serem utilizados em seu próximo procedimento. Seus olhos castanhos escuros agora também atentos, acompanhando o que se passa junto à mesa de cirurgia. – Certo, os garotos que foram achados no bosque. Como eles estão?

— Exaustos. Famintos. Provavelmente traumatizados. – Rory morde o lábio inferior, seus braços cruzados diante do peito. – Eu só queria poder lhes dar alguma notícia boa.

É o som do monitor apitando incessantemente e o aumento na movimentação cercando a paciente o que captura a atenção dos dois enfermeiros. Um dos estudantes puxa o carrinho de desfibrilação para perto da mesa e seus olhos rapidamente cruzam com os de Rory. Com a máscara cobrindo metade de seu rosto, é impossível para ela ler sua expressão, embora não seja difícil deduzir que a situação da paciente seja bastante grave.

— É. Não acho que tenha nada de bom que você possa dizer a eles por agora. – Allan comenta, e com um toque leve em seu ombro a chama de volta ao trabalho. Rory o segue sem hesitar, mas seu pensamento continua na sala de descanso na qual dois garotos aguardam por respostas que poderão muito bem mudar completamente suas vidas.

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Com a cabeça pendendo sobre o peito, Emma acorda de uma vez, ligeiramente desnorteada, o coração batendo descompassado em seu peito. A brasa no fogão está quase se apagando e leva alguns instantes até que ela se situe. Em algum momento ela deve ter se rendido ao cansaço, adormecendo onde estava sentada.

A cabana se encontra imersa no mais absoluto silêncio e não é difícil para Emma identificar que Ruby e os bebês permanecem adormecidos, bem como Daniel, que em algum momento – possivelmente enquanto ela dormia – ajustou um saco de dormir no chão da cozinha para si. Olhando para baixo ela encontra uma manta cheirando a mofo cobrindo seu corpo até a altura de seus ombros e embora o cheiro não seja dos melhores, ela encontra-se de fato aquecida.

Nada disso, no entanto, explica a súbita dor no peito que fez com que ela despertasse de uma só vez.

Um sonho ruim, ela pensa consigo, mas mesmo sentindo-se cansada, algo que ela não consegue dizer ao certo o que é, a impede de voltar a dormir.

.::.

Continua...