Primeiro arco: o início

Capítulo I - O sorriso da vida

10/03/14

Katerina's POV

Joguei o esmaga-polegar no chão, um sorriso divertido demarcando meus lábios ao ver as lágrimas escorrendo pela face do homem a minha frente. Ele gritara apenas duas vezes. Dois gritos secos e diretos, que transmitiam a minha alma uma dor lancinante.

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Era fato que eu me sentia tão suja quanto minhas vítimas. Abandonara parte de minha humanidade. No entanto, essa era minha missão. Por mais que fosse terrível para mim, minhas ações eram todas por um bem maior. E eu não abandonaria isso por propósitos egoístas. Não há salvação para minha alma, não mais.

Observei meu trabalho, que apesar da preparação anterior, só havia começado efetivamente há dez minutos. Olhos castanhos, rígidos e cujo único brilho era proveniente das lágrimas, encaravam-me com fúria. O homem a minha frente tinha seus punhos presos por algemas. Não algemas comuns, não, estas possuíam espinhos que estavam cravados em sua carne. Sua região abdominal e seus tornozelos também estavam amarrados, seu corpo em uma cadeira de ferro. Seus braços fortes permaneciam tencionados, era perceptível que tentava se soltar.

Depois de alguns poucos minutos tentando arrancar confissões dele, sem resultados, iniciei a tortura. O esmaga polegar era uma técnica relativamente leve, embora dolorosa. Aproximei-me, minha máscara fria em contato com a pele de seu rosto. Tinha certeza de que seu desejo era dar-me uma cabeçada, mas era impossível, visto que suas orelhas estavam presas por pregas da cadeira. Simulei um beijo em seu olho esquerdo, estalando meus lábios contra minha máscara.

— Dói?

— Sua vadia! O que diabos você quer?

Um riso escapou da minha garganta. Enfim, ele perdera toda a compostura que apresentara até esse momento. Levantei-me e dirigi meu olhar a ele, cuspindo as palavras com uma fúria comedida:

— O que eu quero? Faça-me rir, Sr. Esoj. Você sabe bem o que quero.

— É dinheiro, não é? Você pode pegar o quanto quiser, apenas me deixe ir!– estalei a língua, meneando a cabeça.

— Ora, ora. Não seja ingênuo. Eu não faria isso por dinheiro. Mas deixe-me ouvir...

Tirei um gravador de dentro da minha calça, apertando o Rec e me inclinando para perto de Esoj.

— O que você fez com as crianças que residiam no Orfanato Gota de Chuva quando demoliu ele para a construção do seu arranha-céus? - Eu fui direta.

— O que importa? Aquele espaço é o futuro.

— Para quem, Esoj? Para as crianças? Para o povo? Acredito que não. É o futuro para seus pequenos empresários sujos. O que você fez? Removeu-as e onde elas estão agora?

— Eu não sei, está bem?! – gritou. - Eu só tirei elas de lá, me solte!

— Você deveria saber que mentir para mim não é a escolha certa.

Afastei-me dele, o gravador sobre a mesa. Observei as ferramentas dispostas pelo sótão e quase soltei uma exclamação de satisfação ao observar aqueles garfos. Esse homem tinha feito besteira, do contrário meus contatos não me fariam ir tão a fundo com um homem que não parecia nada mais do que ganancioso.

Mostrei o instrumento para ele, que parecia curioso e extremamente aflito com o que poderia lhe causar.

— Você sabe o que é isso?

— Não. - respondeu, a voz mais fraca.

— Ora, decidiu se comportar? - gracejei. Sem resposta. - Isso é chamado de cócegas espanholas. Sabe, eu tenho afeição especial por ferramentas de tortura da idade média. Consegue imaginar para que serve?

— Para fazer cócegas...? Me deixe ir embora, mulher.

— Isso é uma ordem? - Não era. Eu sabia ser uma súplica. - Pena para você que eu não sou tão boazinha. Já fizeram cócegas em você com uma pena antes?

Esoj engoliu em seco, assentindo. Reação engraçada. Um homem desse porte nunca seria imaginado por membros da sociedade dessa forma. Saí de meus curtos devaneios, desviando meu olhar para o gravador.

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— Será semelhante, você vai ver. É só fazer bem assim.

Peguei um controle que também estava sobre a mesa e apertei um de seus botões, fazendo os braços da cadeira se abrirem e suspenderem, de forma que seus braços encontravam-se estendidos como em uma cruz.

Segurei as cócegas espanholas com maior precisão e pus-me a arranhar seu corpo exatamente como disse, fazendo movimentos similares ao de cócegas com penas. A diferença é que sangue saia de seu corpo por onde passasse meu brinquedinho. Seus gritos tornaram-se estridentes, a expressão distorcida em meio ao pânico.

— Pare! Pelo amor de Deus, pare!!! EU IMPLORO!– Esoj clamou, desesperado.

— Agora tem um deus? E as crianças? Conte o que fez a elas, Esoj. Conte e eu irei parar. Prometo.

Sabia que nesse momento minha covinha direta fez-se mais funda, mas ele não poderia ver pela máscara. Uma marca de que era uma mentira. Não precisava de figas, como as crianças quando prometem falsamente. Aquilo era minha figa.

— Eu vou contar, só pare!– suplicou, mais uma vez.

Suavizei o movimento, apenas o bastante para incomodá-lo e causar ardências. As lágrimas corriam desenfreadas por sua face, quando o loiro pronunciou as seguintes palavras:

— Vendi em um leilão.

— Como é?! O que você acabou de dizer, seu porco imundo? - rugi.

— E-eu - sua voz falhou, trêmula - leiloei para alguns conhecidos que gostam da área. Eu não sabia o que fazer. Não podia matá-las.

— Não, você preferiu vendê-las a quem fosse estuprar elas e matar depois. Mas não com as suas mãos. Você me enoja.

Arrastei as cócegas espanholas por todo o seu tórax com extrema força, fazendo com que ele gritasse mais e o sangue escorresse com velocidade.

— Mais alguma coisa, querido?

— Uma delas. Eu transei com ela.

O som da ferramenta de tortura caindo no chão misturou-se a sua exclamação de dor quando desferi um soco em seu rosto.

— Eu deveria matar você. Depois de te torturar a noite toda, sua criatura repugnante.

— Me mate. Mate logo, não me torture mais!– Eu ri.

— Você acha mesmo que isso vai rolar? Vai sair daqui vivo, Esoj. Mas isso aqui, essa noite... você nunca vai esquecer.

Apertei outro botão e as costas da cadeira desceram. Peguei um gato de nove rabos e logo me posicionei atrás dele.

— Já pode se preparar para gritar.

E açoitei. Muitas e muitas vezes, as feridas se abrindo facilmente em suas costas, o sangue pingando no chão. Fui até a prateleira de soluções e, ao achar a de salmoura, espalhei pela extensão do chicote. Novamente, chicoteei suas costas.

Esoj arqueou-se, berrando. Com fúria, açoitei o homem mais algumas vezes. Me aproximei dele, secando suas lágrimas com as luvas.

— Você vai entrar em contato com esses seus conhecidos. E sabe mais? Vai recuperar todas as crianças. E, se faltar alguma, venho fazer uma visitinha. Torça para nenhuma estar morta. Entendido?

— E-entendido. Você vai me soltar agora? - perguntou, o olho inchando pelo soco.

— Ai, ai, pobre Esoj. Vou. Mas se você tentar relatar isso a alguém, não garanto que você continuará bem.

— Bem?! Você chama isso de bem? Eu estou destruído.

— É o que acontece por ser um merda. Mas nada é tão ruim. Você está vivo. Para ser uma pessoa melhor. Boa sorte com isso. - sorri.

— Escute a–

Independente do que ele tivesse a falar, não me importava. Acertei sua nuca, fazendo com que desmaiasse. Inseri Rivotril injetável na seringa e injetei em seu pescoço. Suponho que não vá dar trabalho pelas próximas horas. Soltei-o e carreguei seu corpo mole até o andar de baixo, em direção ao banheiro. Joguei seu corpo na banheira de água fria, já cheia, e limpei seus ferimentos. Não fiz muito, apenas estanquei o sangue e fui até a garagem, o tempo todo arrastando Esoj.

Depositei seu corpo no carro e entrei. Deixei ele em casa, no mesmo lugar que estava quando o raptei. A cozinha. Eu estava exausta. Precisava de um banho. Mais que tudo, precisava de um bom descanso.

Já em casa, bebi um copo d'água e deixei meu corpo cair na cama. Amanhã era dia de trabalhar e eu estava farta. Não demorou muito e meus pensamentos começaram a ficar confusos...

[x]

Acordei, ainda me sentindo cansada, o suor frio grudando em meu corpo por mais um de meus sonhos. 5h55. Tinha dormido por volta de seis horas, surpreendentemente Esoj não me dera o trabalho de realizar a tortura durante a madrugada. Não tinha família, afinal.

Queria continuar na cama e dormir até não poder mais, no entanto não podia. Levantei-me preguiçosamente e fui para baixo do chuveiro, ligando sem dó a água fria. Isso me acordou instantaneamente, arrepios percorrendo meu corpo.

Quando saí, vesti a primeira calça jeans que encontrei e pus uma regata preta qualquer. Calcei o bom e velho all stars preto e branco surrado que fica jogado no meu armário. Não me demorei no preparo do café da manhã, fiz meu amado café forte e comi um pão com ovo. Depois de terminar a higiene matinal, fui andando até meu trabalho, umas três quadras da minha casa.

— Bom dia, mocinha. - Dona Rita cumprimentou, assim que cheguei.

— Bom dia, dona Rita. Como vai a senhora hoje?

Ela sorriu, pegando uma pilha extremamente pesada de jornais. Apressei-me a ajudá-la, retirando quase todo o peso de seus braços. Apoiei a mesma no balcão e já tomei dela, novamente, uma segunda pilha.

— Obrigada, Katerina. - agradeceu, ao que apenas sorri. - Vou bem e você?

— Como sempre, o que mais?

— Ora! – Rita pôs-se a rir. - Bem não é o bastante. Seu aniversário de 22 anos é em duas semanas exatas, sabia?

— Ah, nem lembro. Eu tenho a senhora para me lembrar dessas coisas. O que seria de mim sem a mamãe? - brinquei, a mulher abraçando-me. - Bem, vou lá.

Andei em direção às bicicletas acorrentadas e abri um cadeado com minha chave. Levei as pilhas de jornais para ela, uma no cesto da frente, outra no apoio de trás.

Essa era minha vida pacata. Quando não estava bancando a justiceira, era uma simples entregadora de jornais que cursava psicologia à noite. Essa era a forma de me ocupar de minha vida vazia e infeliz.

Dei a volta por toda a zona norte da cidade pedalando, acenando para conhecidos aqui e ali. Algumas das pessoas para quem entregava jornal até mesmo me chamavam para tomar um café. Eu gosto e muito de manter essa ligação com as pessoas, levando em consideração que em nosso século isso se perdeu muito.

Pessoas irritadas, meios virtuais de comunicação. Ninguém se importa mais com nada nem com ninguém. Ninguém ama. É uma coisa triste. E já basta de tristeza em minha vida.

Já era quase 10h quando voltei para o trabalho. Esse trajeto costuma durar pouco mais de duas horas e meia.

Saí para dar uma volta no parque com a filha mais velha de Rita. Seu nome é Clara e nós nos conhecemos há três anos, desde que arranjei esse emprego. Não somos as melhores amigas do mundo, mas gostamos da companhia uma da outra por muitas vezes. Sentamos na fonte central do parque perto de nossas casas.

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Quase que imediatamente os animais da rua se aproximaram da garota. Ela tinha essa coisa indecifrável que sempre os atraía. Eu amava animais, mas chegava a ser assustador.

— Olha, eles me preferem. - comentou com um ar brincalhão de superioridade.

— Eu nem sabia, que isso. - dei-lhe a língua.

— Fiquei sabendo que vai estreiar um filme legal nesse final de semana. Quer ir comigo e uns amigos da faculdade?

— Ah, pode ser. - concordei, displicente. - Qualquer coisa que mate esse tédio.

— “Pode ser”, para de ser tão tanto faz. Comemora que eu tô te chamando para alguma coisa, sua chata. - revirou os olhos.

— Yaaay.

Começamos a rir. Clara e eu compramos picolés, ela um de chocolate e eu um de limão. Ela me ofereceu um pedaço do seu.

— Não, obrigada.

— Ai, eu ainda esqueço às vezes, desculpa. - bufou. - Essas frescuras de vegetariano de não tomar leite.

— Falou a garota que só vive com bicho.

— Cala a boca!– Clara riu.

O cabelo preto e longo dela vira-e-mexe grudava no picolé, de forma que eu implicava com a mesma várias vezes.

Pouco depois nos despedimos e caminhei para casa, distraída. Quando minha mão já estava na maçaneta, um chamado me despertou a atenção.

— Katerina!

— Sim? Ah, Lisa!– sorri largamente.

— Mais tarde passe em minha casa, sim? Temos muito a conversar.

— Não deixarei de ir no lanche da tarde.

Entrei em casa, finalmente. Fui logo para meu quarto, planejando descansar mais. Logo que sentei na cama para retirar os tênis, meu olhar bateu em uma fotografia minha com Lisa. Aquela mulher definitivamente salvou minha vida. Ela era algo entre uma mãe e uma avó. A vizinha que era muito mais que isso.

Ela quem me protegeu e cuidou de mim quando... Levantei, subitamente triste e com um ar puramente taciturno.

Saí do quarto, me dirigindo para o cômodo ao lado. Eu mantivera intacto desde o acidente dos meus pais. Não fora difícil, considerando os rios de dinheiro que herdei. A cama de casal forrada com um lençol azul claro – este eu lavava todo mês, assim como as fronhas. As persianas fechadas, o abajur em formato de guarda-chuva desligado. Observei o grande espelho com moldura de ferro do outro lado do quarto.

A imagem refletida me mostrava uma mulher de não tão longos cabelos ruivos ondulados/cacheados, com algumas sardas e grandes olhos extremamente verdes. Apesar dessas características, ela não era muito bonita, e tinha um aspecto cansado. Olheiras adornavam seus olhos e seu corpo era pouco atraente.

Me aproximei, focando nos olhos. Em sua imensidão verde, mesclavam-se dor e angústia. Eu conhecia bem esse olhar. Desde os dezesseis anos, quando olho-me no espelho, é o mesmo sofrimento que me encara pelos espelhos.

Nesse ambiente, perdida nessa dor, permito-me mergulhar em sofrimento. Por mais que eu saiba que foi um acidente real, foi aí que passei a enxergar a podridão do mundo. E meu desejo de limpá-la foi tão grande que às vezes quase me sinto o Batman. Ri sem humor, amargurada.

Deitei na cama de papai e mamãe e peguei a fotografia que estava na cômoda. Uma moça loira e de olhos escuros abraçava um homem moreno com um sorriso sincero estampando toda a sua face, enquanto ele beijava sua bochecha. Espremida entre eles, uma pequena menina ruiva gargalhava.

Eu era adotada, sim. Mas a adoção aconteceu quando eu tinha seis anos e, sinceramente, já tinha perdido todas as esperanças. Nunca quis encontrar minha mãe, era grata pela família que tinha.

Sequei uma lágrima teimosa, que escorreu sozinha por minha face. O cansaço se fora e voltei para meu quarto, sentando na cama e ligando meu laptop. Depois do amadurecimento de minha adolescência e a superação do luto, eu decidi que quero encontrar minha mãe de sangue. Talvez as coisas mudassem um pouco em minha vida.

É difícil localizá-la, porque o orfanato fechou há muitos anos, mas recentemente contatei, por uma rede social, Martha, uma jovem que trabalhava lá na época que fui deixada. Só bastava uma pesquisa rebuscada e talvez, finalmente, a vida sorria para mim.