A Cidade de Prata

Capítulo IV


O escritório belo-horizontino da Fundação Orleans ocupava todo o quadragésimo andar do elegante Concórdia Corporate, o prédio mais alto de Minas Gerais. A gigantesca torre envidraçada oferecia um panorama de 360º do entorno, e o contraste entre a visão de toda Belo Horizonte de um lado e as verdes serras de Nova Lima do outro era extasiante.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Mas Daniel e Lucas não tiveram muito tempo para contemplação, na verdade. Tão logo saíram do elevador, foram conduzidos por uma simpática recepcionista até uma sala de reuniões onde Rômulo os aguardava. Chegando ao local, notaram duas coisas de cara: a decoração caríssima em mármore e madeira de lei que devia bater na casa das centenas de milhares de reais e a presença de outras três pessoas que ainda não conheciam.

— Daniel! Lucas! Finalmente vocês chegaram! – Rômulo anunciou, levantando-se de seu lugar na ponta da mesa e vindo cumprimentá-los – Não que tenham se atrasado, claro que não. Mas como já conversamos, estou muito ansioso para discutir este projeto.

O empresário usava um conjunto de blazer azul-escuro com calça branca que o deixava com cara de iatista, mas Daniel guardou o comentário só para si. Mesmo assim, não conseguiu evitar o pensamento de que parecia bastante improvável ver aquele homem abrindo caminho a facão numa mata fechada ou se deitando num amontoado de terra suja para escavar algum artefato. E pelo olhar discreto que Lucas lhe lançou pelo canto dos óculos, o arqueólogo percebeu que provavelmente ele pensara algo bem parecido.

Trocaram um aperto de mão amistoso e Rômulo tratou de lhes apresentar os demais presentes: Ian, um homem com cara de modelo de grife masculina que ostentava uma barba milimetricamente perfeita e um semblante neutro com um quê misterioso no fundo dos olhos, que o empresário apresentou como técnico em sistemas de navegação; um negro forte, de cabeça raspada e sorriso branco e largo que se identificou apenas como Ebony e que Rômulo apresentou como cartógrafo; e uma mulher de traços latinos, pele morena, volumosos cabelos e olhos negros e expressão forte a quem o filantropo chamou de Elena.

— Ela é a nossa mateira. – Ele comentou, com um sorriso discreto.

Os dois amigos trocaram um olhar de indagação, mas deixaram para tecer comentários entre si mais tarde. Rômulo os indicou dois lugares vagos na mesa de reuniões e voltou para seu lugar.

— Bom, senhores. Vamos ser bem objetivos, porque todos já sabemos por quê estamos aqui.

Pondo-se a falar, Rômulo contou brevemente como se deu a descoberta do seu exemplar litografado do Manuscrito 512 e pôs-se a detalhar os estudos que havia feito a respeito desde então.

— Como já devem saber, o título oficial do Manuscrito 512 é Relação histórica de uma oculta e grande povoação antiquíssima sem moradores, que se descobriu no ano de 1753 e narra a suposta descoberta das ruínas de uma cidade perdida no sertão da Bahia. Já no primeiro páragrafo do texto é citado que o motivo da expedição bandeirante era a busca pelas minas de prata de Muribeca.

As lendárias minas de prata de Belchior Dias, o Muribeca, eram tidas como fábula fantástica no meio arqueológico brasileiro tanto quanto o próprio Manuscrito 512. O bandeirante havia anunciado a descoberta de vastas jazidas do mineral precioso em algum lugar do sertão baiano após quase dez anos de pesquisa, mas recusou-se a revelar a localização a menos que a Coroa Portuguesa lhe concedesse o título de marquês. Tendo seu pedido negado, morreu em 1619 sem revelar onde as supostas minas estariam localizadas, o que inspirou inúmeras expedições posteriores de busca das mesmas por praticamente todo o estado.

O empresário prosseguiu fazendo um resumo detalhado do Manuscrito. Descreveu como logo no início do relato os bandeirantes apontaram a descoberta de uma montanha muito brilhante, provavelmente devido à presença de cristais, e como um dos integrantes da expedição encontrou um caminho calçado que levava ao topo, tendo eles visto lá de cima a cidade abandonada.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Rômulo falou também sobre a exploração da cidade. O acesso a ela era feito por um caminho único de pedra, cuja entrada era formada por três arcos, e as casas eram feitas com bastante regularidade e simetria, algumas com telhados de ladrilho requeimado e outras cobertas apenas por laje, e em seus interiores não foram encontrados vestígios de móveis ou qualquer outro objeto. O filantropo falou também sobre os detalhes que o Manuscrito fornecia sobre os demais marcos da povoação: a praça, a coluna de pedra negra com a estátua no topo e os prédios próximos.

Citou também um trecho que descrevia parte da cidade reduzida a escombros, o que poderia ter sido causado por um terremoto, e também o encontro de um grande rio que mais adiante despencava numa enorme cachoeira. Neste local, ocorria grande quantidade de furnas, algumas delas cobertas por lajes e inscrições.

— Inicialmente, podemos perceber que estas ruínas não pertencem ao estilo urbanístico colonial português ou espanhol. Além disso, a possibilidade de terem encontrado algum centro de mineração abandonado após o término da exploração é muito remota. Na metade do século XVIII a maioria dos complexos mineradores da Bahia ainda estava em atividade. – Rômulo vinha finalizando – E todas as inscrições, templos, pórticos e estátuas citadas no Manuscrito lembram muito o estilo mediterrâneo clássico.

Daniel se remexeu em sua cadeira, e Rômulo notou.

— Gostaria de acrescentar algo, professor Ventura?

O arqueólogo franziu o cenho.

— Eu ainda não sou professor. – Ele corrigiu – Mas sim, gostaria de acrescentar algo.

Rômulo ergueu uma sobrancelha e fez um gesto amistoso com a mão direita, dando-lhe a palavra.

Daniel rapidamente tirou um maço de folhas com diversas anotações da mochila que havia trazido consigo e pôs-se a falar sobre os estudos que ele mesmo havia feito sobre o Manuscrito. Sobre o estilo arquitetônico das ruínas descritas e sobre como tudo levava a crer que poderia se tratar de uma cidade de origem romana. Lucas complementou a explicação do amigo expondo suas conclusões sobre a descrição da suposta moeda encontrada na cidade. Houve um ligeiro debate entre os presentes, que discorreram sobre o poderio do antigo Império Romano e sobre as possibilidades de que houvessem, de fato, alcançado o Brasil e instalado aqui alguma povoação e sobre o que teria levado essa urbe à ruína.

Por fim, todos concordaram que os argumentos apresentados por Daniel eram bastante cabíveis e Rômulo finalizou o assunto dizendo que poderiam fazer mais descobertas in loco. Já na sequência perguntou aos presentes como montariam a expedição até o local.

Ebony foi o primeiro a se manifestar. Como cartógrafo, alertou sobre a distância entre o suposto local onde a fotografia havia sido tirada pela equipe que estava no avião, semanas antes, e a povoação mais próxima, e como deveriam planejar bem quais suprimentos levar. Elena logo emendou que deveriam se concentrar em levar barras de cereal, alimentos integrais, frutas secas ou oleaginosas, comidas leves e ricas em carboidratos para garantir energia, mas que mesmo assim teriam à disposição vários alimentos típicos da região como palma, gravatá, araticum e pequi. Ian mal abriu a boca para dizer que os sistemas de navegação por satélite dos quais eles dispunham eram seguros e não havia possibilidade de ficarem perdidos.

Rômulo pediu que Daniel e Lucas cuidassem da parte técnica da expedição, quais e quantos equipamentos levariam, pois, como havia prometido, estava por conta deles a parte de análise e catalogação de quaisquer achados, ao que ambos concordaram animadamente. Faltava apenas decidir como chegariam ao local.

— De avião não compensa. – Foi Elena quem falou – O aeroporto mais próximo é o de Barreiras, e teríamos que alugar veículos para levar nossas coisas até o local que escolhêssemos para montar nosso acampamento-base. São gastos adicionais desnecessários.

— Helicóptero seria a escolha mais inteligente. – Ian emendou com sua voz mansa – Mas não sabemos sequer onde queremos chegar com exatidão. Tudo o que temos é uma noção de onde o pessoal do avião tirou as tais fotos e não dá pra ficar voando assim, sem saber para onde ir. Além disso, não há a menor garantia que teríamos onde pousar caso descobríssemos o local exato das ruínas.

— Podemos ir nos nossos veículos. – Lucas sugeriu em voz alta, atraindo os olhares dos demais.

— Como assim? – Rômulo ergueu uma sobrancelha.

— Seria uma boa. – Daniel entendeu o raciocínio do amigo – O Lucas e eu temos carros preparados para encarar viagens assim. Teríamos como viajar com um certo conforto e levar até 1500 quilos de suprimentos distribuídos nos dois veículos. Já fizemos isso antes.

O empresário avaliou a proposta por um momento, mas logo concordou.

— Tudo bem. Acredito que seja mesmo nossa melhor opção de transporte. Mesmo que não nos levem até o local pretendido, cobrirão uma boa parte do trajeto e podemos terminar nossa jornada à pé. Vou lhes passar dois cartões vale-combustível. – Ele esfregou as mãos, num gesto de pura empolgação – Acho que, por enquanto, é isso. Vamos preparar tudo para partir o mais breve possível. Não vejo a hora de pôr os pés na Bahia.

—X—X—X—

Os preparativos para a viagem levaram dois dias.

Ebony revisou os registros de vôo do avião de onde havia sido tirada a fotografia da suposta cidade perdida e, analisando também os relatos de alguns passageiros e os boletins meteorológicos das semanas anteriores, determinou o provável ponto de destino deles. Ian inseriu as coordenadas em seus equipamentos de navegação para garantir que não teriam desvios inesperados em sua rota e ainda calculou um raio de busca seguro a partir do ponto demarcado.

Elena foi bem mais prática. Após passar a todos as devidas orientações sobre o que cada um deveria levar em sua mochila, providenciou também suprimentos adicionais como comida desidratada, iodo para purificar água, pederneiras, lanternas e bastões de luz química, cordas, grampos, barracas de camping e utensílios de cozinha.

Para Daniel e Lucas, por fim, não foi difícil conseguir a liberação da universidade para viajarem. Difícil foi se convencerem de que estavam levando todo o material necessário para uma pequena expedição. Máquinas fotográficas, pás, colherins, picos, peneiras, cordas, lupas e pincéis, os equipamentos foram passados e repassados inúmeras vezes pelos dois amigos e eles sempre achavam que estavam esquecendo alguma coisa. Tiveram também a precaução de verificar e revisar seus veículos antes de finalmente pegarem estrada.

O arqueólogo tinha uma chamativa caminhonete Mitsubishi L200 Savana bege, uma monstra equipada com tração 4x4, snorkel, quebra-mato com guincho elétrico e todos os demais mimos que um trilheiro poderia querer. E apesar de sua aparência “emperiquitada”, a versatilidade da picape para o transporte de equipamentos e para vencer os mais improváveis obstáculos já havia ajudado Daniel em várias de suas expedições de campo. Já Lucas era dono de um parrudo Dodge Journey AWD, também bege. Era um SUV familiar grandalhão, mas o assistente também o havia adaptado para situações offroad, elevando a suspensão em alguns centímetros e calçando-o com rodas de aço e pneus de uso misto.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Os dois amigos encontraram-se em frente à universidade às três da manhã. A madrugada estava fria e os grilos que chilreavam pelo campus pareciam convidá-los a tomar um café bem quentinho, mas a ansiedade que lhes subia pelo corpo os deixava sem qualquer apetite. Ebony, Ian e Elena chegaram poucos minutos depois numa van da Fundação Orleans. Cumprimentaram Daniel e Lucas e já trataram de passar os caixotes com os suprimentos que haviam trazido para a caminhonete do arqueólogo, enquanto suas mochilas individuais eram colocadas no bagageiro do SUV do assistente. Rômulo chegou por último em seu sedã Mercedes, usando um conjunto cáqui com colete, boné e botas militares que lhe deixavam com um ar quase caricato.

Trocaram amenidades por alguns poucos momentos e, após uma última verificada dos suprimentos e equipamentos trazidos, cobriram a caçamba da L200 com uma lona e se preparam para seguir viagem. Por sugestão de Rômulo, todos se deram as mãos por um instante e oraram um Pai-nosso baixinho. Feito isso, dividiram-se nos dois carros. Rômulo e Ian iriam na caminhonete com Daniel, enquanto Elena e Ebony iriam com Lucas em seu SUV. Todos a postos, os motores foram ligados.

Daniel já estava engatando a marcha para arrancar quando viu Lucas descendo de seu SUV e vindo depressa até a caminhonete. O arqueólogo baixou o vidro.

— O que foi?

— Nós já estávamos esquecendo. – O outro respondeu, tirando o cordão que usava no pescoço e dando-o ao amigo – Me devolve quando chegarmos.

— É verdade! – Daniel se empertigou no banco, também puxando um cordão de seu pescoço e dando-o para Lucas – Me devolve quando chegarmos.

Cordões trocados, Lucas voltou para seu carro e partiu. Daniel terminou de colocar o cordão no pescoço e arrancou com a caminhonete também. Rômulo observou a movimentação dos dois amigos com curiosidade.

— O que foi isso? – Questionou.

— O quê? – Daniel não entendeu de início, mas logo se deu conta – A troca dos cordões? É um charme nosso.

Ele puxou o cordão novamente e mostrou o pingente para o empresário. Era um bonito cristal azul-escuro em forma de lápis.

— Ele é meu amigo há muitos anos, e acabamos ficando muito próximos depois que os pais dele morreram. – O arqueológo de repente adquiriu um ar nostálgico – Sempre que viajamos ou nos separamos por muito tempo, trocamos nossos cordões. É como se fosse um incentivo para...

— Para que vocês se reencontrem e destroquem os pingentes. – Rômulo cortou-o, entendendo o raciocínio do outro – Entendi. É um gesto bonito, Daniel. Quase um ato profético, não é?

— É exatamente isso. – O arqueólogo respondeu – Para nós é um desejo de boa viagem e bom retorno.

O empresário concordou com a cabeça.

— Acho isso muito bonito. A amizade verdadeira é um sentimento que tem se tornado cada vez mais raro nos dias de hoje.

Os veículos estavam ganhando a avenida Vereador Cícero Idelfonso e subindo em direção à BR-040, e Rômulo acabou mudando de assunto.

— Sabe, Daniel, eu estou realmente muito empolgado com essa nossa pequena “expedição”. – Ele disse, fazendo as aspas com os dedos – Já faz algum tempo que não trabalho em nada aqui no Brasil. As últimas pesquisas e descobertas da minha fundação foram todas em outros países, e me sinto como se tivesse voltado ao lar.

O arqueólogo deu uma risadinha espontânea.

— Sei bem como é esse sentimento.

— Enfim. – O empresário esfregou as mãos, num gesto de pura ansiedade – Vamos a isso. Estou com ótimo pressentimento sobre essa viagem.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.