Louva-deus

Capítulo único.


Deixando a risada contida escapar pelas frestas dos lábios, correu agachado por entre as carteiras da sala de aula. Suas mãos estavam fechadas uma sobre a outra, em forma de concha. Em um momento, ele esticou o pescoço em direção à porta indevidamente aberta, escondeu seu corpo de criança por trás de uma mochila e aguardou. Não, nada, não era nada, só a impressão ruim de quando se faz alguma coisa errada. Engoliu-a e continuou, porque sem dúvidas a brincadeira era deveras divertida.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Ali, duas carteiras à frente: o assento de Maria Alice, o fichário cor-de-rosa estendido, as canetas coloridas com glitter ordenadas em dégradé, o estojo de florzinhas bem aberto. Sim, ali, bem ali. Pulou pulinhos contados, despejou o conteúdo das mãos e fechou o zíper do estojo rápido, bem rápido, segundos antes do sinal de intervalo bater e a manada de crianças ensandecidas entrar se matando.

Quando a pequena Maria Alice voltou do pátio, o menino - o Maurício - já estava estrategicamente localizado duas carteiras atrás, segurando um olhar feroz. Viu-a dar uma última risada com a amiga na porta, rebolar sua volta até sentar-se, procurar a próxima matéria entre as folhas, arrumar o cabelo e coçar o nariz, ansiosíssimo. Observou, angustiado, cada movimento da menina, seus dedinhos que envolviam lentamente a alça do fecho éclair, puxando-a, dente por dente, até o fim, até avistar a figura monstruosa do inseto verde, até ouvir o berro desesperado que -

Mas o berro não veio.

Maurício teve de se erguer sobre seu assento e tentar adivinhar, por entre as dezenas de cabecinhas hiperativas, como seria a expressão da menina-assustada-que-não-se-assustou. De costas, enxergou como pôde Maria Alice fechar de volta o estojo e esconde-lo na mochila. Na mochila? Na mochila! Coçou o ouvido. Não, não, o grito devia ter vindo sim, certamente, ele devia ter rido e agora não se lembrava...

Aguardar o fim da aula foi um suplício. Por fim, veio. Ele esperou a classe mais ou menos esvaziar e segurou sua vítima falha pelo braço.

O rosto de um era mais bravo que o do outro.

- Ai! Meu braço!

- Ele é meu! Me devolve! Você guardou ele na mochila!

- Seu, é? E você queria me assustar com ele?

Não respondeu. Esperou ter o bichinho de estimação de volta entre os dedos para se sentir seguro.

- Queria, sim. Mas você é uma boba, porque nem ligou.

- Bobo é você, tá? - mostrou a língua - Eu não tenho medo dessas coisas.

- Toda menina tem.

- Eu não, oras. Eu até acho ele bonitinho...

Um pegou o outro olhando para o louva-deus nas mãos do menino, as duas patinhas em forma de oração, os dois rostos abobalhados de admiração. Depois, vermelhos de vergonha.

- Eu tenho até uma aranha de estimação, sabia? Peluda e tudo mais - ela disse, a cabeça ainda abaixada.

- Mentira.

- Mentira nada! Vai lá em casa que você vai ver!

Com muita relutância, ele a seguiu até sua casa. De longe.

Foi quando começou o namoro.


*****


Anos se passaram.

A missa das oito da noite de domingo era sempre a mais cheia da igreja. Os bancos de madeira quase nunca eram suficientes, faltavam cadeiras de plástico, as pessoas sentavam no chão, nos colos; rezavam em pé, ultrapassavam as entradas principais, vazavam pelas janelas. Os fiéis vinham em bando: pais, mães, tios, tias-avós, filhos, primas, namorados, cunhados, sogros, noras, enteados, conhecidos distantes, adjungidos e afins - ocupando praticamente uma única fileira inteira, por exemplo, estavam duas famílias enormes, os Pereira e os Serafim, unidos pelo laço de mãos entre Maurício e Maria Alice.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

O padre abençoou os ouvintes pelo microfone e os dispensou. Num segundo, todos os assentos ficaram vazios e todas as passagens (por uma ironia maldosa) viraram um inferno. Os amantes adolescentes apertaram ainda mais uma aliança prateada contra a outra e se misturaram à multidão.

- Na casa da tia Lurdinha! - a matriarca Serafim gritou para a filha - A gente vai jantar lá!

No segundo seguinte, era só confusão. A menina só pôde repetir o automático combinado minutos depois, quando se viu a salvo e a sós com o namorado dentro do seu Fusca 68.

- Na casa da minha tia Lurdinha, ela disse. Sua mãe vai ficar brava se você for jantar com a gente de novo?

- Ah, tanto faz, deixa ela pra lá. Eu só quero ficar com você.

Maurício se aproximou. Envolveu a cintura fina com os braços. Esqueceram de tia Lurdinha.

Se no primeiro segundo cada um ocupava seu respectivo assento, no próximo comprimiam-se como uma pessoa só. Uma única boca, uma língua contínua. Estalos. Os cabelos atrapalhavam enquanto as mãos se divertiam pelas curvas, para baixo, para baixo, para baixo -

Paf!

O inchaço na bochecha foi imediato.

- Quem você pensa que é, hein? Aliás, aliás - quem você pensa que eu sou? - o grito feminino era agudíssimo.

- Desculpa, Li...

- Desculpa uma ova, seu Maurício. Uma ova! - chamou-o pelo nome inteiro, virou-se para sua poltrona, cruzou os braços de lado, fez bico. Para completar a personalidade forte, finalizou: - Você não me respeita.

- Nem vem, Alice, nem vem! Queria que eu fosse que nem o Fábio, é?, que nem aquele seu primo safado, é?

- Tá vendo? Nem a família respeita!

- To te mostrando que seu sangue não é tão santo assim, não, viu?

Ela continuou muxoxando em seu cantinho fechado; ele resolveu se afeminar:

- Você também não faz questão de me entender.

- Você não faz questão de se segurar - replicou ela.

- Poxa, não dá, é difícil.

- Faz força.

- E como faço!

- Quando um não quer, dois não fazem, você sabe.

- Sei sim, Li, sei. Mas ás vezes não dá... eu te amo tanto... queria ficar pertinho...

Cheque-mate, Maria Alice estava completamente derretida. Tornou seu rosto de volta ao namorado com os olhos caídos de sentimento.

- Ah... Também te amo, mô. Mas sabe... tem que ser especial. Inesquecível. Eu-eu quero combinar uma coisa com você. Pra quando nós...

Na calçada da igreja, ainda tinha gente que rezava, fervorosamente.

Foi quando fizeram o pacto.


*****



Meses se passaram.

Maria Alice perdia o fôlego enquanto a irmã tentava lhe fechar o vestido branco. Algo começou a apitar no plano de fundo.

- Meu celular, Bê! Pega meu celular!

- Isso lá é hora de atender celular, é? - Maria Betânia largou o botão faltante e se dirigiu ao telefone móvel. Voltou com a expressão revoltada: - Ah, não, Li! Imagina que o Maurício quer falar com você agora!

- Daí que eu quero atender ele.

- Quê?! Você não tá falando sério!

- Pára com isso, vai! Daí logo.

- Dá azar o noivo ver a noiva antes do casamento, cruzes!

- Ele não vai me ver, vai falar comigo. Pára de ser tão antiquada assim, vai - atendeu-o só abrindo e fez sinal com a mão: - E sai e fecha a porta, anda, vai!

Esperou ter certeza de ter ouvido o clique para finalmente por o aparelho à orelha.

- Oi, mô.

- Sua irmã às vezes é bem chata, hein? - ele riu do outro lado da linha.

- Eu bem sei, ai, ai... viu, algum motivo especial pra conversarmos agora? Sabe, estou atrasada prum casamento...

- Talvez a gente acabe se esbarrando por lá - ele brincou -, mas pra garantir, eu tinha que te ver agora...

- Me ver? Onde você tá?

- Olha pra trás.

Ouviu um toque em vidro e o encontrou grudado à janela. Ela caiu na gargalhada.

- Nossa, você tá com saudades mesmo!

- Sempre, mô, sempre - meteu a cabeça para dentro - Vem, vamos conversar aqui fora, aproveita que a sua irmã pentelha não tá aqui. Se ela ver a gente junto, dá azar.

Maurício a ajudou a não rasgar o vestido cerimonial na travessia. Depois, encheu-a de beijos e elogios, juras de amor e votos de saudades. Desfilou para ela dentro de seu fraque alugado e permitiu-a arrumar-lhe o nó da gravata. Tudo isso a muitos decibéis abaixo do tom de uma conversa normal, porque serem ouvidos significava a morte, ou ainda talvez coisa pior.

Com cuidado, sentaram-se grudados à parede do quintal, ao lado do jardim.

- Você é muito teimoso por ter vindo aqui me ver - Maria Alice começou.

- E você muito mais ainda, por estar aqui - ele retrucou.

- É, é... acho que nós dois somos geniosos - ela riu - Pra falar a verdade, não sei nem como podemos estar juntos há tempo... já parou pra pensar nisso?

- É a nossa paixão - e apontou para um pontinho no jardim, verde sobre verde se misturando a todos os tons e formas da natureza minúscula criada no quintal de trás. Ela não poderia deixar de ver, no entanto: era a figura alongada, as antenas eretas, os enormes olhos minúsculos, as patinhas unidas em reza.

- Esse bichinho virou meu trabalho de conclusão de curso, quem diria - riu-se.

- E eu querendo assustar você com isso, hein?!

- Nunca que você ia conseguir... é uma paixão...

- Nossa paixão.

Abraçaram-se.

- Falta pouco pra hoje à noite.

- Mal posso esperar.

Instantes depois, a irmã caçula abriu a janela de trás e criou-se o caos. O noivo foi expulso e sua cabeça foi posta a prêmio até as nove horas da noite daquele dia.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Foi quando se casaram.


*****


Dias se passaram.

Só faltava a senhora Serafim engolir o telefone.

- Ô, seu Antônio - chorava para o patriarca Pereira -, minha filha não atende o telefone, não atende o celular, não falo com ela desde o casamento!

- Calma, minha filha, eles não são crianças, tão em lua-de-mel...

- Mas é uma chácara lá no quinto dos inferno, minha Nossa Senhora!

- O lugar é o paraíso, dona Neide.

- Paraíso? Paraíso no meio do mato, é, seu Antônio? Sei lá que que tem lá por aqueles canto, bicho, ladrão, sei lá, alguma coisa de ruim!

- Epa, a senhora não vem falando mal do lugar, não, que aquela chácara é herança de família, compreendeu?

- E se não fosse a sua família, a minha filha não tinha sumido, então!

Seu Antônio Pereira gritou satisfações do outro lado da linha, mas Neide não ouviu: o marido tinha lhe arrancado o aparelho das mãos.

- Ê, mulher, que chilique é esse? Pelo amor de Deus, deixa que eu resolvo isso... - limpou a garganta e chegou perto do telefone: - Ô, compadre, desculpa minha mulher aí. Ela é muito desesperada. Nós só queria que o senhor desse umas passadinha por lá, vê como é que eles tão, se tá tudo bem... é que vocês conhece mais o lugar e tal, né?

- Não quero mais ouvir ofensa dos outro, não, ouviu bem?

- Que é isso, seu Antônio, a gente considera muito a sua família, o senhor sabe disso! É só coração de mãe, sabe como é, né? Não tá se agüentando desde que a menina pôs o véu.

- Pô, a minha aqui também não - e finalmente trocou a seriedade pelo riso - Chega de mulher preocupada. To indo lá agora ver os dois.

- Então você me avisa depois?

- Po\\\'deixá então.

E desligou.

- Você pára de ter ataque histérico, viu, Neide? Que é isso, fica agredindo o homem à toa... fique sabendo que ele falou que já vai na tal da chácara. Agora, sossega o facho!

Saiu, deixando a esposa sozinha no quarto, as mãos em cima do peito do coração disparado, como se quisessem acalmá-lo. Mas não poderiam. Tinha que ter notícias da filha.

Tirou um terço do bolso e se pôs a rezar.

Foi quando começaram as buscas.

*****



Horas se passaram.

Já era tarde da noite quando Antônio, seu irmão e mais dois sobrinhos chegaram à chácara oferecida à lua-de-mel dos recém-casados. Suas luzes estavam todas apagadas.

Entraram em todos os cômodos, passaram a mão pos todos os interruptores, desconfiaram de cada detalhe intacto. Nada havia acontecido naquela casa, além do mais pó acumulado.

Foi quando encontraram Maria Alice.

Ali, no último quarto, o supostamente do casal. O cheiro de podridão era insuportável. Ela estava de joelhos, os olhos cerrados repletos de lágrimas, a boca pintada de vermelho, em oração.

Quando acenderam a luz, centenas de louva-deuses saíram pulando numa enxurrada pavorosa.


*****



Minutos se passaram.

Pegaram uma lanterna, enfiaram-se no mato.

Foi quando encontraram Maurício.

Sem a cabeça.

Seu cadáver estava coberto de formigas.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.