— Arashi II

Dez anos atrás...

Era a noite do Festival das Estrelas, o humilde e esquecido vilarejo Kimioy estava lotado de barracas coloridas e de pessoas. Como Arashi observara, uma criança como sua irmã poderia facilmente se perder ou ser raptada ali, mas ela adorava aquela comemoração e seus pais, tão incapazes de dizer não para a garota quanto ele, permitiram sua ida — desde que ele a acompanhasse e a vigiasse. Além disso, o número de seguranças dobrou desde o ano passado, então pensava-se que não haveria problema. Uma belíssima noite parecia espreitar os moradores.

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O casal de irmãos aguardava na tenda que vendia pipoca, estava atrás do terceiro da fila. Pouco interessado, com as mãos dentro dos bolsos do casaco cinza claro de capuz, o pequeno Arashi fixou os olhos no velho comerciante. Rezava mentalmente para que o sujeito não fosse tão lento quanto aparentava. A única coisa que o emocionava era treinar kenjutsu com seu pai, qualquer outra atividade o entediava rapidamente. Shiori era o exato contrário: tudo a impressionava e ela detestava o que quer que envolvesse lutas ou retalhadores. Puxou a mãe. Obedecendo os pais, segurava-se no braço esquerdo do irmão mais velho.

Fitava abobalhada as estrelas azuis no céu escuro e os enfeites pendurados nos varais. Usava um lindo vestido amarelo escuro de saia rodada, um par de sapatilhas combinando e prendeu os cabelos lisos e negros para trás. Podia ficar ali, naquele mesmo lugar, até amanhecer. Felizmente para seu jovem responsável, os três na frente deles não demoraram nem dez minutos para pedir, ter o que queriam e ir embora. O vendedor de bigode grisalho atrás do balcão de madeira sorriu para os dois.

Porém, na vez deles, um estranho indivíduo encapuzado se meteu no meio, desvendou o rosto e sacou uma espada. Matou o dono da barraca na frente dos dois. Sangue espirrou na na face de Shiori e na grama natural que forrava o solo recém lavado da praça. O assassino empunhou a lâmina e se voltou para matá-los logo em seguida, Arashi, no desespero, envolveu a irmã menor em um abraço, como que num casulo, e fechou os olhos. Esperou a morte. Segundos se passaram mas nada aconteceu. Seu espanto foi imenso quando viu que estacas afiadas de gelo saíram de suas costas e mataram o espadachim. "Você despertará seus poderes quando for levado ao limite do desespero", recordou-se o que seu pai lhe disse sobre sua essência. Quando olhou em volta e se deu conta do caos que se alastrou pelo vilarejo, da quantidade de pedestres sendo fatiados por retalhadores, soube que precisavam voltar para casa imediatamente.

— Arashi...?! O que... aconteceu? — Sua irmãzinha, trêmula, pálida de medo, perguntou. A baixinha tinha apenas quatro anos.

Limpou a bochecha dela com a manga do casaco, a abraçou novamente para impedi-la de abrir os olhos e ver o que se passava e disse:

— Vamos voltar pra casa! Rápido! Não tenha medo!

Ele não sabia e nem tinha como saber, mas a chacina que viu começar na praça onde se desenrolava o festival estava ocorrendo em todo o vilarejo, inclusive em sua rua. Seu pai, hábil lutador, protegia a entrada da casa, derrotava alguns invasores e vasculhava os arredores com os olhos. Estava preocupado com os filhos que saíram e ainda não voltaram. Homem alto, robusto, branco e de cabelos negros, exibia, atrás de sua camiseta verde musgo manchada de sangue, muito mais força do que parecia ter a quem o olhava rápido. Em uma ligeira distração, um de seus atacantes tentou acertá-lo, entretanto, este teve o coração atravessado por uma katana de gelo. Seu filho mais velho a empunhava.

Seu coração tremeu dentro de seu peito quando seus olhos viram no que transformou seu primogênito. O seu garoto acabava de matar um homem, de tirar uma vida. Não devia tê-lo treinado. Sua esposa tinha razão. Assim que o corpo sem vida do invasor desabou com a punhalada da arma de Arashi, Shiori, de olhos fechados, correu em prantos para os braços do apreensivo pai. O pequeno guerreiro glacial foi de joelhos ao chão, exausto, respirando sofregamente. Seu corpo não estava acostumado com seus novos poderes. Abaixou a cabeça e encarou a palma das próprias mãos. "Esse é o poder de um ser de essência...?", se indagou, horrorizado.

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Viu seu pai zelosamente abraçar sua irmã e beijá-la na testa. Enquanto seus sentidos testemunhavam curiosos uma cena tão humana e esperável, uma pergunta flutuou até a superfície de sua mente. "O que eu sou...?", ele, com toda a sinceridade, esforçou-se para saber o mais rápido possível. Sentiu que mais retalhadores estavam vindo, nem precisou dizer algo explicitamente a seu pai para ele saber que era hora de mandar Shiori para casa. Se entendiam só trocando olhares.

— Vai pra dentro de casa, princesa! — Pediu. — Sua mãe está lá dentro, ela está te esperando! Vai ficar tudo bem!

A menina assentiu e obedeceu. Assim que a viu bater a porta de madeira da humilde casa azul, correu até Arashi e cedeu-lhe o braço, ajudou-o a levantar. Desorientado, o menino reclamou:

— Disse que eu usaria minha essência quando fosse levado ao limite do desespero... Parece mais que é ela que tá me usando, não tenho controle de mim mesmo quando faço essas coisas...

Guiando o filho com o braço, explicou:

— Você tem seis anos, eu nunca ouvi falar de alguém que despertou a essência tão novo... ela é muito mais forte do que você, é normal que aja impulsivamente.

Ia obrigá-lo a entrar e se esconder com a mãe e os irmãos, mas três retalhadores encapuzados os cercaram e atacaram-nos com suas espadas. De novo por reflexo, Arashi guardou a si mesmo e seu pai debaixo de uma estreita fortaleza de gelo e assassinou os três guerreiros disparando neles agulhas do mesmo material da proteção atrás da qual se ocultou. Instantaneamente após a morte deles, os muros se desfizeram em um opaco nevoeiro. O responsável por eles caiu, no entanto, antes que ele desse de cara com o chão, seu pai o segurou e o levou para dentro de casa.

A mulher do lar os esperava na sala, perto do armário cinza de frente para a entrada. Agarrada à filha e ao bebê que tinha nos braços. O tom oliva de seu rosto mudou para um branco quase cadavérico, sinal de que a moça nunca temera tanto pela própria vida e pela da família. Sabia quem estava por trás daquilo. Pelo mesmo motivo, sabia também que alguém ali iria morrer. Ele prometeu que a caçaria independentemente de para aonde ela fosse e que, quando a achasse, pelo menos uma morte haveria. O bebê, de apenas um mês de idade, chorava desvairadamente. Parecia que sentia o perigo.

Alguém educadamente bateu na porta. Aquela energia... Mel a conhecia muito bem. "É ele", ela teve certeza. Só observando a feição da esposa o homem da casa percebeu quem batia, isso porque, durante a conversa que tiveram mais cedo, a mãe de seus filhos contou quem suspeitava que estava coordenando aquele massacre.

— Vão pra dentro do armário! — Disse o homem da casa, sem nem olhar para trás. Sob a expressão aterrorizada e angustiada da esposa, explicou-se: — Ele não me conhece, não sabe que você está aqui, pode ser que passe direto e mande um dos soldados normais pra cá... Vai, Mel.

— Sabe que está subestimando ele, Takashi! — Redarguiu a moça de cabelos negros encaracolados e vivos olhos azuis claros como os de Arashi. Ninguém se atreveria a negar que ela era mãe dele. — Esse miserável é obcecado com Yume e prometeu que mataria todos os que ela chamou de amigos, ele me segue há anos... Por isso mantive segredo sobre ter tido filhos com você e pedi para morarmos tão longe de Órion...!! Por isso não quis que Arashi se tornasse retalhador! Além disso, não vou caber ali...

Bateram na porta outra vez. Takashi respirou fundo e olhou para baixo, a calma tentava escapar dele. "Foco", dizia-se. Não conseguia crer no que estava para falar.

— Arashi, se esconde lá dentro com seus irmãos! — Ordenou. Encarando-o nos olhos, instruiu-o como se falasse com um adulto: — E aconteça o que acontecer não saia de lá! Nem faça barulho!

O rosto do garoto mudou, tornou-se frio. Sabia o que aqueles dizeres significavam. Tomou o bebê dos braços da mãe, pegou Shiori pela mão e mecanicamente marchou até o armário. Antes de conseguir chegar lá, entretanto, ganhou um forte e emocionado abraço de Mel, sentiu as lágrimas dela molharem seus cabelos. Por um segundo quis retribuir, dizer que a amava, pedir-lhes que não fizessem o que estavam na iminência de fazer, mas sabia que era a melhor opção e que precisava agir rápido se quisesse salvar seus irmãos. Sobrepujou as emoções. Quando o abraço findou, seguiu caminho para o esconderijo.

Sentindo que seus filhos estavam seguros, o casal deu as mãos e bravamente encarou a porta. Santsuki, com muita classe, não tardou pô-la a baixo.

— É falta de educação não atender a porta, sabiam? Eu devo ter batido umas trezentas vezes! Tá, trezentas é exagero, talvez trinta... — Se corrigiu. Ajustou o terno preto, a gravata carmesim e sorriu para ambos.

O silêncio se estendeu pela sala, as paredes azuis claras da casa racharam.

— Tudo isso porque está entediado?! — Vociferou Mel. O marido punha o braço na frente dela.

Santsuki desdenhou dela e replicou:

— Basicamente, sim. Culpe sua amiga Yume por não ter me matado quando pôde.

— Te matar e sujar as mãos com você? Por que você não faz isso? O lixo não pode ficar mais sujo do que já é! — Takashi se meteu. — Sua existência é patética!

O vilão fingiu refletir. Por fim, demorou os olhos na maçaneta prateada que tinha em mãos.

— Nah, vou me divertir na minha existência patética. A propósito, isso aqui é de vocês, né? — Perguntou, alçando o utensílio. Antes dos ouvintes conseguirem entender aonde ele queria chegar com aquilo, Santsuki arremessou a maçaneta contra Mel, a força que ele aplicou no lançamento foi tamanha que o objeto atravessou o peito dela e afundou no coração da moça. O falecimento foi instantâneo, o cadáver caiu nos braços do marido.

Eles não tinham ideia, mas, de olho na fenda da fechadura do armário, o filho mais velho da família assistia tudo com atenção. Achava essencial saber para qual direção o inimigo iria depois de sair dali. Shiori, colada nele, tremia compulsivamente, chorava baixinho e sussurrava repetidamente que estava com medo. O bebê dormia pacificamente. Uma tempestade de sentimentos brigava dentro do guerreiro glacial para vir a tona, ele, todavia, mantinha-os trancafiados.

O próximo a morrer foi seu pai. Santsuki o derrubou com um pontapé, bloqueou-o contra a parede e deu uma série de socos na cara dele, um mais forte e bruto que o anterior. Foi assim até que o rosto da vítima ficou irreconhecível, até que o punho dele se alojou dentro da cabeça dela. Em seguida, como quem acabava de lavar pratos, o assassino limpou as mãos com uma toalhinha branca de bolso e saiu andando.

Arashi cobriu a boca de Shiori com a mão e se deteve por cinco minutos. Decorrido este tempo, puxou-a pela mão, abriu o armário e abandonou a casa. Esquecera-se até de dizer a irmã mais nova para permanecer de olhos fechados, pois se visse o estado dos pais, ela entraria em choque. Precisavam correr, se esconder, escolher o melhor caminho para passarem despercebidos. Passeavam apressados e agachados à margem de um extenso matagal, de uma estrada de barro, quando a menininha soltou a mão dele e surtou.

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— Tô com medo! Tô com medo! Eu... tô com medo! — Ela bradava, espavorida.

O primogênito perdeu a cabeça e foi grosseiro com ela:

— Cala a boca, você vai nos matar!

A pequena se aquietou. Reconhecendo que se excedeu, Arashi respirou fundo, a beijou na testa e, durante um abraço, pediu perdão:

— Me desculpa por falar desse jeito. Eu juro que você não precisa mais ter medo.

E, com Arashi sempre na dianteira, eles seguiram em frente.