Os Filhos dos Deuses

Capítulo 1 (aquele que eu não deveria ter saído de casa)


Abri meus olhos e fitei, durante longos minutos, o desenho que o gesso pregado no teto formava. E fiquei em uma dúvida séria se aquilo parecia mais um coração abstrato ou um pêssego pornográfico... Pêssego, quero.

Enquanto a fome batia, um longo suspiro tirou a minha atenção do teto que, também, precisava de uma boa limpada (anotação mental: falar com dona Ana sobre isso).

Ao meu lado direito, um espécime masculino nu estava adormecido com uma expressão serena em seu rosto, quase infantil. Meus olhos passearam por seu corpo: o cabelo negro, sem o gel que o mantinha impressionantemente ereto, caía em uma confusão sobre a testa e os olhos com longos cílios (nunca entendi o por quê de homens terem cílios tão longos, eles não valorizam!); o nariz fino sugava o ar lentamente, sinalizando como estava profundamente adormecido; a boca carnuda se contraía em um minúsculo sorriso; abraçado ao travesseiro e com as costas para cima, eu podia analisar a forma como os músculos das costas eram torneados, mesmo na forma relaxada; um pouco de suor da noite passada, ainda brilhava em sua pele branca e extremamente bronzeada; uma indefinível tatuagem negra cobria o seu braço musculoso; e a bunda.... Deuses... que vontade de mordê-la, novamente - a marca da minha última ainda mostrava o traço vermelho sobre aquele monumento.

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Um farfalhar de cobertas obrigou que meus olhos voltassem à esquerda. Um outro suspiro de prazer, dessa vez, saiu de meus lábios, surpreendendo a mim. Os cabelos platinados de um poderoso black power emolduravam os traços imperiais de uma belíssima musa; a sobrancelha tão habilmente desenhada estava arqueada sobre olhos fechados que ainda continham uma confusão de cores e brilhos de sua antiga maquiagem; o nariz largo ressoava baixinho em um leve ronco; os lábios volumosos estavam cerrados e, ainda, inchados da última vez que os usou; o corpo nu e voltado para cima, levemente coberto por um lençol, mostrava o contorno de seios fartos e apetitosos; e sua pele chocolate era o que coroava a visão, independentemente do padrão de beleza que diria que a mulher estava uns quilos a mais, ela era perfeita.

Tentando fazer o mínimo barulho possível, levantei do ninho e encaminhei para fora de lá. Uma leve tontura fez com que o caminho ficasse um pouco confuso, aonde deveria estar o chão parecia o teto e vice-versa. O corredor, com mais dois quartos, estava silencioso. Assim como todo o apartamento, voltei-me para o quarto da esquerda. Tão logo o abri, já fechei e corri para meu majestoso banheiro. Os azulejos pretos noite-não-estrelada faziam com que a banheira branca mármore no centro do aposento se destacasse. Após a deliciosa noite, um banho de banheira era o que eu precisava para relaxar os músculos tensos e doloridos, além de me preparar para a missão do dia... Não. Não iria pensar nisso antes que fosse extremamente necessário.

... As bolhas suaves estouravam ao redor de meu corpo e imagens da noite passada ainda pipocavam como doces e alcoólicas memórias.

Antes que eu fizesse algo e não saísse tão cedo daquele apartamento, levantei da banheira e me dirigi ao meu closet. Segui pelas fileiras de roupas formais e informais que eu tinha que ter. Um vestido que, teoricamente era destinado a um jantar, chamou a minha atenção. Seria esse. Vesti-o e olhei-me no espelho: o veludo negro tinha um corte assimétrico na saia, assim, enquanto o lado direito chegava reto ao joelho de forma discreta, o esquerdo estava exposto até o meio de minha coxa, o que o fazia ideal para marcar e mostrar os músculos das minhas pernas; com o objetivo de acinturar, um cordão, também preto, pendia por minha cintura, mostrando a falta de qualquer gorduras ali, o que os anos de treinos intensos me trouxeram; logo acima, mais ou menos na linha da boca do estômago, o longo decote terminava deixando à vista o entre meus seios fartos e as minhas clavículas visíveis, nas quais um longo pingente, em forma desconhecida estava pendurado; diferentemente de muitos outros vestidos, esse tinha mangas que encobriam o metade superior do meu braço forte; em meus pulsos, meus inseparáveis e mortais braceletes complementavam o look.

Olhei para a penteadeira e vi uma pequena bolsa em formato de uma mandala de flor, à primeira vista, poderia e deveria ser confundida com uma obra de arte, algo nada ofensivo. Mas era muito mais mortal do que aquilo. Para o que eu faria hoje, teoricamente, não precisaria dela. Mas sendo eu o que sou, decidi não arriscar. Peguei. e pendurei em minhas costas. Automaticamente, o desenho fundiu em minha pele, fazendo com que aparentasse ser, apenas, uma velha tatuagem.

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Com uma pequena careta de dor, aquilo ainda doía, saí do cômodo e do meu quarto inutilizado. Olhei para onde meus acompanhantes dormiam tranquilamente. Mais uma vez, a tentação de voltar e ficar ali em um ciclo de prazer intenso foi forte. Resisti.

Desci as escadas para a sala principal que mais parecia uma zona de combate com o sofá tombado ao lado, peças de roupas em cima da televisão com uma tela azul, estantes que estariam os livros jogados e chão. Tudo uma confusão. O tapete dobrado, mostrava a atividade recente que iniciou ali e terminou no andar superior. No canto, algumas garrafas de gim estavam ao lado de três taças, ou duas e meia, já que uma estava quebrada. Sim, a noite tinha sido deliciosa.

Fui diretamente para a cozinha e abri a geladeira. Isso! Um pote de pêssegos em calda estava aberto. Eu amo pêssegos. Comi verazmente, enquanto fazia um café forte (mesmo não gostando) para evitar uma ressaca. Tomei o líquido amargo acompanhado de uma fatia de pão caseiro com manteira. Nesse momento, lembrei de olhar as horas: 11:43. Quase hora do almoço. Logo, meus convidados acordariam. Arrumei a bancada com mais pão, o bule de café, um bolo de chocolate, iogurte, cereais e uma cesta de frutas. Acho que gostariam.

Peguei o caderno que eu usava para fazer anotações de compras e escrevi um bilhete que coloquei na mesa:

Aproveitem! Quando saírem, deixem a chave com o porteiro. Obrigada pela noite sensacional.

Quando fui assinar, tentei lembrar por qual nome eu me apresentei a eles. Não lembrei. Assinei com um apenas "Sua".

Voltei para a sala e peguei meu sapato de salto alto que, em algum momento, eu jogara ali. A tentação venceu, eu precisava dar uma última olhada. Subi aos quartos vagarosamente. No batente da porta, olhei ambos adormecidos, sem o meu corpo no meio, a mulher deitou sua cabeça no braço do homem. E aconchegaram-se em uma conchinha deliciosamente provocante. Como um último adeus e me arriscando a acordá-los, segui diretamente à cama. Com um leve beijo no lábio de ambos, me despedi. Quem sabe haverá uma próxima vez? É provável que não. Eu me conhecia.

Fechei a porta do apartamento pensando em apenas como chegar ao porto. O elevador levou-me direto à garagem em que meu bebê estava estacionado. Entrei nele, há meses não andávamos pelas ruas da cidade, pensei enquanto acariciava o volante, mas aquela ocasião merecia ele, afinal, era dele. Suspirei e saí do estacionamento ouvindo uma seleção de jazz que, em algum momento, tinha sido colocado no toca fitas e jamais saíra. Sorri, na melodia cativante de Armstrong, mesmo com todo o trânsito em direção ao aeroporto particular fora da cidade.

O grande galpão estava lotado com os mais variados automóveis e máquinas de transporte. Encaminhei para a máquina voadora que estava pronta para a decolagem. O avião monomotor estava preparado e, dentro, o copiloto saiu e me saudou.

— Capitã Albuquerque, estamos prontos para a decolagem. Vamos! - Sorriu Caio Soza, um grande piloto e amigo, afirmando o óbvio.

Sorri, novamente. Pequenos prazeres, assim como os grandes, deviam ser aproveitado ao máximo. Principalmente, quando o seu destino é como o meu. Pilotar uma aeronave era o meu desejo melhor recompensado.

O voo tranquilo e sem maiores danos de quatro horas direto para uma cidade de médio porte que usávamos como satélite, foi silencioso. Até Caio sabia que eu não ia para aquele lugar atoa. Já fazia anos que ele me conhecia. No aeroporto, peguei o Jeep que estava ali específico para essa data. Uma viagem de mais uma hora fez com que me embrenhasse no meio daquela floresta tropical e desembocasse em um rio. Outra hora em uma barca estrategicamente encoberta fez com que chegasse em uma clareira escondida dos olhares mortais comuns.

Respirei fundo. Já era noite. O inverno fazia com que a temperatura insuportavelmente quente do dia, transformasse em um vento frio às altas horas da madrugada. Nas horas próximas ao por do sol, era refrescante. Suspirei e olhei o entorno.

O mato, em quatro anos da sua desocupação, não tomara conta do espaço. A vida não retornara ao local, mesmo sendo um dos espaços mais férteis do mundo. Respirei fundo enquanto minha cabeça fazia com que memórias ganhassem vez e transformassem aquele espaço morto em uma planície totalmente militarizada e com crianças e adolescentes que mais pareciam um pequeno exército altamente treinado. Balancei duramente o meu rosto para que fossem embora. Não era hora para recordar momentos felizes, mas honrar os mortos. Todos estavam mortos, menos eu. Uma ótima comandante, hein?

Toquei levemente a mandala em minhas costas, ela se esticou e transformo-se um uma mochila para acampar roxa. A, a escultura de Hefesto com uma dose de magia de Hecate, pode vir a calhar quando as pessoas certas sabem manipulá-la. Larguei no chão, exatamente onde, antes, a grande fogueira queimava. Respirei fundo, mais uma vez, e fui à caça de madeiras. O lindo vestido, agora mostrava sinais de que o tempo estragava o veludo caro e estava arranhado aonde as gavinhas das árvores o arrastavam. Paciência. O longo salto também não era o ideal para as condições que foi submetido ao afundar na grama morta, mas o visual tinha que ser honrosamente belo.

Com os braços lotados de madeiras, relativamente, secas, acendi uma fogueira. As chamas iluminavam o céu lotado de estrelas. Abri a mochila. Uma garrafa de vodka era o que eu procurava.

Abri. Bebi. "Nenhuma careta, amigos". Ri da piada interna com os fantasmas que deveriam estar naquelas planícies. Um riso louco ecoando pela noite.

— Sabe, a vodka é uma boa invenção, mas não é tão digna. - Disse uma voz desconhecida, o que fez com que eu sacasse uma pequena adaga do canto da mochila. Todo o álcool desaparecendo do meu sistema. Eu estava tão desacostumada com ataques que nem verifiquei a possibilidade de monstros ali. Idiota. Olhei para a voz que aproximava, abaixei a arma.

— A, é você. - Respondi desanimada e tomei mais um gole da bebida. Foda-se. - O que faz aqui, pai? - Coloquei todo o ressentimento e ódio possível em minha voz.

— Vim vê-la. Ajudar a honrar seus mortos... - Disse como se ele se importasse. Ri amargurada e um pouco psicótica.

— Você? Até parece!

— Não me provoque, criança. - Avisou aproximando da luz das chamas. Seu terno italiano preto estava bem justo ao corpo magro e musculoso, usava uma camisa escura e uma gravata também escura, parecia estar camuflado na noite, e seus mocassins de couro (escuros também, que novidade!) não encostavam o chão. Olha só, uma divindade. Estava impecável e o olhar repreendedor fechava o visual. Seria bonito com os seus cabelos cacheados pretos (como os meus), o nariz empinado (como o meu), a boca bem desenhada e puxada em um sorriso de escárnio (isso, ainda bem, eu puxei de minha mãe), mas dava para entender o fascínio que ainda causavam nos mortais.

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— Você me matará? Pensei que Falicídio fosse proibido na Grécia. - Respondi irônica voltando meu olhar para o fogo.

— Em minha família? Acho que não.

— Sempre esqueço o amor que é sua madrasta, pai. - Revirei os olhos esperando que o insulto subjetivo não seja reparado pela rainha dos céus. - Novamente, o que faz aqui? Pensei que os deuses tinham sido bem claros quando afirmaram que não interfeririam mais no meu destino.

— Eu vim vê-la e nunca dissemos isso.

— Poderia ter me visto noite passada, afinal, pode considerar aquela brincadeira uma homenagem, mas acho que nenhum pai, por mais divino que seja, gostaria de ver seus filhos transando. - Respondi insolente - O que realmente quer?

— Por que eu não vou matá-la mesmo? - Retrucou divertido, imagino que pensando em algumas formas de torturas.

— Simples, eu sou sua filha preferida.

— Você é a minha única filha.

— Pois então... - Sorri com minha analogia e bebi mais um pouco.

— Você tem uma missão. - Disse, seco.

— Pensei que quando nos tornássemos mais velhos, não precisávamos mais nos submeter a isso. - Refleti em voz alta.

— Heróis não devem descansar se quiserem ir aos Campos Elísios. - Só o olhei. - Os deuses acham que seu suplício acabou e seu talento é necessário para ajudar os semideuses nas novas provas que terão.

— Meu talento em treiná-los? Pensei que vocês já tinham o velho mestre centauro para isso.

— Treiná-los com seus poderes. - Disse entredentes e impacientemente. Tomei mais um gole. Ele tinha razão nesse ponto, eu sempre fui muito rápida e esperta para descobrir os talentos ocultos dos semideuses. Talentos que nem os pais sabiam ter. Outro gole. Um olhar irritado. Era divertido irritar meu pai. Mas a brincadeira acabou quando ele fez a garrafa de vodka se metamorfosear em uma de vinho. - Agora, sim. Uma verdadeira bebida.

Olhei fixamente para a garrafa em minha frente. Anos tinham passado desde que eu prometera nunca mais usar os talentos do meu pai. Deixei o frasco de lado.

— Estou festejando a vida dos meus companheiros. Me deixe em paz.

— Você vai festejar a vida deles indo até o Acampamento Meio-Sangue e treinando os novos heróis. - Suspirei, porque eu fui nascer uma semideusa mesmo?

— Como?

— Isso mesmo o que ouviu. - Disse no tom que os pais usam ao brigar conosco. Bem, uma vez na vida ele fez isso.

— Tenho que voltar para a cidade, assinar alguns papeis. Acho que em uns seis meses eu estarei lá.

— Não. Você tem uma semana.

— Como eu farei isso? - Explodi. - É impossível conseguir um visto americano nesse tempo. Porque, apesar do Olimpo ficar lá, você não é o que consideram como "estadunidense" quando formulam leis, sabia?

— Você fará como qualquer herói... - Disse perverso e ignorando o resto do meu argumento. - Sob inúmeros desafios que, com certeza, vão me divertir. - E, como um pai divino, sumiu. No seu lugar um velho aparelho celular que deveria estar no meu cofre, em casa. Droga. Mais uma vez meu destino estava atrelado a eles. Não teria folga? Eu não fiz o impossível para salvar a pele deles? Nós não fizemos?? Olhei o campo vazio. Agora, seria eu uma professora? Olhei para o fogo. Queria o conselho da única deusa que sempre se preocupou conosco. Mas apenas um bilhete queimava nas chamas:

Espero você lá.