Yont-i era um lugar mais perigoso do que Soren esperava.
De início, o rapaz acreditou que aquele plano era muito mais calmo. Mesmo com os avisos de Zerafinie sobre o perigo noturno, o mago das trevas não estava completamente convencido.
Acamparam em uma colina relativamente próxima da floresta. O calor produzido pelo fogo era muito bem vindo, e parecia purificar os presentes. O cheiro daquele urso que Zerafinie havia conseguido para eles era ótimo, e em pouco tempo Soren descobriria que ele e seus amigos não eram os únicos que partilhavam desta opinião.
Ouviam, àquela noite, o barulho de grilos — ou de alguma criatura semelhante; agora que Soren pensava, qual seria o tamanho do grilo deste Plano? — que quebravam o silêncio da noite. Prestava atenção àquele som, e logo ficou com cada vez mais sono. Entretanto, Soren não poderia saber que não iria dormir tão cedo.
Eles surgiram do nada.
Soren tentava dormir com tranquilidade, mas estava pensando em muitas coisas. Pensava em Röst, o Necromante; pensava em Valeran e na Casa Loernvel, a realeza; pensava no livro que tinha guardado; pensava, por algum motivo, em Herys;
E foi então que as criaturas surgiram, sorrateiras como uma sombra.
Aproximavam-se com passos leves e desprovidos de som. Sua pelagem negra dificultava sua visão na noite de Yont-i.
Assemelhavam-se a um lobo, porém com quatro olhos brancos. Possuíam três caudas e uma mandíbula que, ao aberta, dividia-se em quatro partes. Aquela criatura era chamada de Retaliador, ou de Madadh-allaidh.
As criaturas aproximavam-se cada vez mais da fogueira. Aqueles seres estranhos que invadiram o seu mundo deveriam servir-lhes de alimento.
O Madadh-allaidh do meio aproximou-se, abrindo a sua boca.
No momento em que aproximou-se dos humanos, um raio de gelo atingiu-o em cheio, congelando-o por completo.
Zerafinie acordou a todos com um grito irritado, fazendo com que todos acordassem. Killian tateou o chão, buscando sua espada. Soren percebera, irritado, que não podia usar magia das trevas naquele momento.
Herys já disparava raios de gelo contra os Retaliadores. Lira confundia-os, provando que sua magia conseguia afetar as criaturas daquele Plano.
Killian golpeou horizontalmente outro lobo monstruoso, protegendo-se com o escudo da investida de outro que surgira.
Artariel invocou um lobo, mas percebera, rapidamente, que estava muito inferior ao que normalmente invocava. “Seres invocados em outros Planos que não sejam o seu próprio possuem metade do poder original”, pensou ele com desgosto.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Rápido! — rosnou Zerafinie, irritada, disparando uma grande bola de fogo contra as criaturas. — Em direção à floresta!

Todos corriam em direção à floresta, virando-se na tentativa de atrasar os inimigos a todo momento.
“Não esperava que nos atacassem agora…”, pensou Zerafinie, com estranhamento. “Isso não deveria ocorrer. O que está acontecendo?”
Corriam. Zerafinie parou e conjurou.
Uma grande, espessa e extensa muralha de gelo foi criada entre os humanos e os Madadh-allaidh. Mesmo assim, a mestra de magia elemental não permitiu que parassem.

— Não sabemos se isso vai realmente segurá-los — justificou ela.

Assentindo, os jovens foram, sem especial animação, em direção à enorme (ou pelo menos intimidadoramente densa) floresta.

*

Adentraram aquela mata sem muito prazer, e logo viram que estavam certos em não gostar daquele lugar.
Os insetos zumbiam irritantemente, e muitas vezes buscavam picar os humanos que ali chegavam. O chão era repleto de raízes, e Herys quase caiu uma vez, mas Soren segurou-a.
As frestas de luz solar que atravessavam as árvores atraíam insetos pequeninos e algumas plantas. Soren tinha de admitir que não os culpava. Aquela floresta parecia ter uma desagradável iluminação, quase sobrenatural.
Continuaram andando, com Killian abrindo caminho com sua espada, até já ter passado do meio-dia. Foi só então que Zerafinie finalmente bocejou.

— A nossa agradável noite de sono acabou de ser interrompida. Vamos descansar um pouco aqui neste lugar.

— A água está acabando — avisou Killian. — Se uma certa pessoa tivesse se controlado, ou pelo menos pegado o maldito cantil na hora da fuga…

— Não foi culpa minha — murmurou Lira.

— T-todos erram — concordou Arty.

— Que seja — suspirou Zerafinie. — Herys, Soren, vocês vão até o lago perto daqui.

— Como você sabe que tem um lago? — perguntou Soren. Quem respondeu foi Herys.

— Ela parou aqui justamente porque sabe do lago. Nós, magos elementais, se nos concentrarmos um pouco além do que é saudável — explicou ela, olhando com repreensão para sua própria mestra —, podemos sentir os elementos básicos da natureza.

— Hehehe.

— Pare com essa risada maldita! — ralhou Herys. Zerafinie repetiu a risada.

— Que seja — anunciou Soren. — Vamos, Herys.

— E não vão fazer nenhuma besteira enquanto estiverem sozinhos — comentou Lira, inocentemente.

Soren revirou os olhos e correu para um pouco à frente de Herys.

— Avançar! — bradou ele, animado.

— Err… É para aquele lado — corrigiu Herys, apontando para a direita.

— Oh.

Caminharam por mais tempo do que Soren gostaria. Então chegaram a um grande lago circular, com uma enorme rocha no centro dela. Por não haver árvores próximas, o sol de Yont-i refletia sua luz no lago, criando uma visão bela.

— Agora eu entendo aquele ditado — murmurou Herys.

“Não confunda o céu com a luz refletida na superfície de um lago.”

— Tem razão.

Os dois aprendizes aproximaram-se do lago. Herys inclinou a cabeça.

— Eu admito que muitas vezes já imaginei viajar para outros mundos. Eu só não pensava que seria tão cedo…

— Este Plano nem é tão diferente do nosso. Exceto pelas criaturas dentro dele.

— Não estrague minha experiência — ralhou a maga elemental.

Os dois então começaram a encher os recipientes, cantis e até um pequeno barril que Lira tirou seja lá de onde, com água daquele lago. Soren esperava que ingerir essa água não fosse prejudicial.
Foi naquele momento que Herys notou algo estranho. Uma movimentação abaixo deles. Uma movimentação que fez seu coração acelerar e a fez arregalar os olhos.
Uma comprida linha negra que se contorcia dentro da água.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Afaste-se do lago! — gritou Herys.

Soren não esperou. Pulou para longe do lago no momento em que uma enorme serpente emergiu da água.
As escamas daquela serpente eram de um tom semelhante à madeira daquela floresta, em um tom que beirava o negro. Ela era longa e robusta, com olhos verdes que pareciam refletir a luz do lago.
Neste momento, outra serpente também emergiu do lago. Esta com escamas brancas e olhos amarelos que encararam Soren.
As serpentes sibilaram. A serpente de escama marrom foi a primeira a dar o bote. Soren não sabia se um escudo mágico poderia parar o ataque de uma serpente gigante, mas mesmo assim o garoto estendeu a mão para frente, criando um escudo azulado quase transparente.
Como já havia passado pela cabeça de Soren, o ataque da serpente quebrou o escudo e ele foi arremessado para trás, pois a barreira ao menos impediu que ele parasse dentro da boca da criatura.
A serpente branca atacou Herys, que rolou para o lado em um movimento melhor do que o escudo de Soren. Assim que a serpente errou o alvo, a maga disparou um raio de gelo que prendeu a serpente branca na areia.
A outra serpente emitiu um sibilar irritado e atacou Herys, mas esta tentou outra coisa, disparando um raio de chamas na direção do inimigo. Assim que o raio flamejante atingiu a serpente em um dos olhos, ela sacudiu-se e jogou-se na água.
Entretanto, a outra serpente quebrou o gelo que a prendia, mandando fragmentos deste por toda parte. A criatura olhou para a aprendiz de magia elemental e, com seu olhar sem vida, atacou.
Sem tempo de desviar, Herys conjurou um escudo, porém não devia ter colocado Mana suficiente, pois a cobra atravessou a barreira e atingiu-a, mandando a maga contra uma árvore.
Herys gemeu de dor, sentindo sua cabeça doer — mas não tanto quanto suas costas.
A serpente começou a aproximar-se dela, rastejando lentamente em sua direção. Herys sentia o coração acelerar.
A serpente que havia entrado no lago também saiu de lá novamente.
Foi neste momento que um pedaço de gelo atingiu a serpente albina. Ela elevou-se acima do solo e olhou para trás, onde Soren olhava para ela com determinação.
“O poder da escuridão é meu para comandar”, lembrou-se das palavras de Luk.
Assim que a serpente investiu contra ele, Soren conjurou do pentagrama em sua mão o livro negro, emanando miasma.
A serpente aproximou-se, e foi então que Soren jogou-se para o lado, fazendo a cobra atingir uma grossa árvore.
Logo em seguida, Soren correu contra a criatura. Subitamente, sua mão direita foi rodeada por macabras chamas esverdeadas, de aspecto espectral.
Assim que a mão de Soren agarrou a cabeça da serpente branca, esta emitiu um som que, para o mago das trevas, assemelhava-se a um grito. A serpente agitou a cabeça enquanto afastava-se de Soren, com aquelas chamas verdes queimando seu crânio.
Enquanto recuava, a serpente albina bateu contra a outra, que sibilou irritada e abocanhou o pescoço da serpente albina. Esta debateu-se e tentou atacar a serpente escura, mas sem sucesso.
A serpente albina caiu dentro do lago, e este manchou-se de sangue.
“A magia das trevas é realmente efetiva”, pensou Herys, porém logo viu Soren cair no chão, ofegante, para espanto da ruiva. “Você fica tão cansado ao fazer isso? Foi um único feitiço…”
A serpente de escamas escuras voltou-se para Soren. Herys levantou-se apressadamente. “Maldição. Fique longe dele”, pensou ela, irritada, correndo na direção de Soren.
A serpente sibilou, mas antes que atacasse, Herys disparou um raio congelante contra ela que prendeu sua cabeça.
Enquanto a serpente debatia-se, a maga elemental correu para perto de Soren.

— Ei, garoto, levante-se!

— Hehe, está preocupada?

— N-não é hora para as suas bobagens!

— Não existe hora ruim para isso.

A serpente bateu a cabeça contra o chão, ficando levemente confusa por um tempo, mas quebrando o gelo.
A criatura então voltou-se para os dois magos.

— Quando ela chegar perto, quero que congele-a de novo — instruiu Soren. — Vou usar este feitiço novamente.

— Tolo! Não está vendo como ficou por usar uma única vez?

— Você está comfundindo o céu com a superfície de um lago — comentou Soren. — Eu só estou um pouco cansado. Ficarei bem em breve. Mas quero estar vivo para isso. Não virei um lich ainda.

— E espero que nem vire.

Soren sorriu de canto.
A serpente deu o bote. Herys, resolvendo fazer o que Soren pediu, congelou-a. A criatura caiu no chão, provavelmente irritada por ter sido congelada novamente.
Soren, notando que a serpente começava a levantar-se para longe do solo, pulou onde seria o pescoço da cobra.
Enquanto a serpente sacudia-se, Soren gritava, quase caindo no chão. Conjurar um feitiço naquele momento seria um pouco difícil.
Mas Soren precisava conseguir.
Invocou as chamas profanas, mas finalmente caiu na água. Temendo o que ocorreria em seguida, extinguiu as chamas e começou a nadar com a maior velocidade que conseguia para a margem do lago novamente.
Assim que Soren tocou a areia, o gelo que prendia a serpente se partiu. Herys praguejou.
A criatura de Yont-i avançou contra Soren, determinada a dar um fim ao mago das trevas e finalmente alimentar-se. Abriu a bocarra, e Soren já não aguentaria outro feitiço.
Herys colocou-se entre o mago das trevas e a serpente de escamas escuras, criando uma esfera de chamas pequenina que foi disparada no formato de um raio contra a mandíbula aberta da serpente.
O raio atravessou a serpente, incinerando-a e destroçando-a por dentro. Mesmo assim, morta, seu cadáver continuava vindo.
Soren empurrou Herys para o lado. “Obrigado, garota. Se eu sair vivo, juro que compro algo muito legal para você…”
O cadáver da serpente atingiu Soren e arrastou-o consigo por vários metros até finalmente parar.

— Soren!

Herys correu até o garoto. Empurrou a pesada cabeça da criatura de Yont-i e viu o mago das trevas sorrindo, e também sangrando.

— Se alguém perguntar, nós lutamos contra mil dragões furiosos.

Herys sorriu.

*

Assim que Herys e Soren chegaram, com as roupas sujas, surradas — e molhadas, no caso de Soren —, Lira sorriu com pura malícia.

— O que foi que eu falei?

— Nós acabamos de enfrentar mil dragões furiosos e selvagens — informou Herys com seriedade e sinceridade.

— Claro. E eu sou um anjo.

— Acho que foi uma comparação exagerada — resmungou Soren. — Você é completamente o oposto!

— O amor entre irmãos é lindo — comentou Zerafinie.

— Sim — concordou Killian. — O respeito mútuo e demonstrações de carinho. Admirável.

— V-vamos ficar aqui por muito tempo? — indagou Artariel. — A floresta não nos quer aqui.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Não mesmo. Vamos descansar e então seguir nosso rumo. Quero que vocês cheguem ao fim desta floresta.

Descansaram. Os sons da floresta eram desagradáveis e tiravam o sono. O solo era irregular devido a pedras e raízes que tornavam quase impossível alcançar uma posição confortável para dormir.
Após acordarem, seguiram o caminho que acreditavam ser o correto. Artariel, embora inseguro, era inegavelmente o mais experiente naquele ambiente, e indicava quais caminhos seguir, quais poderiam ser armadilhas de criaturas — ele reconhecia por haver formatos pouco naturais em certos locais —, quais plantas eram comestíveis e ainda que madeiras usar para as fogueiras, indicando que algumas produziam mais fumaça do que outras e o que eles menos queriam era chamar a atenção.
Chegaram a um rio que devia ter meia milha de largura.

— E como vamos atravessar isso? — indagou Killian. — Nadando?

— Não! — exclamou Artariel, tremendo. — N-não sei nadar…

— Tem medo de se molhar? — zombou o escudeiro.

— Não importa — disse Soren. — Se você não sabe nadar, precisaremos de outro jeito de atravessar…

— Magia?

— Duvido que a mestra Zerafinie vá fazer isso por nós, não é? — indagou Soren, já sabendo a resposta. — Muito bem. Deve haver um jeito…

— Talvez possamos usar aqueles troncos que encontramos lá atrás — sugeriu Herys. — Pareciam grandes e resistentes o suficiente.

— Mesmo com algo para remar — argumentou Killian —, a correnteza é forte.

— Eu poderia tentar ajudar — disse Lira. — Posso ajudar a mover os troncos.

— Certo. Estamos em seis — contou Killian. — O tronco comporta três pessoas. Eu vou primeiro, com Herys e Soren. Depois voltarei e buscarei a mestra Zerafinie e o Artariel. Depois disso, eu e Lira voltamos. Alguém contra?

— Não — responderam, desordenadamente.

— Ótimo. Então, vamos.

Killian era inegavelmente o mais forte dali. Com ajuda de Soren, voltou até o local onde haviam visto os troncos cortados — provavelmente derrubados por algum animal gigante — e ergueram-nos.

— Hehe, a rivalidade entre magos e cavaleiros é tola, não acha? — comentou Soren, sorridente. — Sem a minha inegável força, você não conseguiria levantar este tronco.

— Continue acreditando nisso.

Enquanto voltavam para onde os demais do grupo esperavam, Soren voltou a falar.

— Ei, Kil, se eu começasse a usar armas, você me treinaria?

— O quê? — disse Killian, confuso. — Por que você faria isso? Ouvi dizer que a magia ocupa todo o tempo livre.

— Digamos que, por certos motivos, terei mais tempo livre que os outros. Você é o melhor escudeiro do primeiro ano da academia, de longe, então eu estou querendo que você me ensine alguns truques… Aceita? Quer dizer, você é incrível.

— … Tudo bem. Eu acho…

— Hehe. Eu sabia que você não resistiria ao meu pedido bajulador.

— Ainda posso mudar de ideia.

— Vou ficar quieto.

Assim que havia três troncos — por garantia — ao lado deles, Killian sorriu.

— É hora de começar. Vamos lá. Soren, Herys.

Killian sentou-se um pouco mais à frente, segurando um pedaço de madeira que ele deixou o mais próximo de um remo que conseguiu. Não era muito, então contava mais com a condução de Lira.
Soren sentou-se logo atrás dele, e Herys foi atrás do incógnito mago das trevas. Apertou-o com força, fazendo Soren corar levemente.

— Se me deixar cair na água eu te puxo junto — ameaçou Herys.

— Relaxe. Eu sou super confiável.

Enquanto Killian remava, Lira, com os olhos fechados, apontava para o tronco. Todos podiam sentir aquela energia invisível que indicava o uso da magia mental.
Chegaram ao outro lado do lago. Herys saltou do tronco.

— Nunca mais farei isso — anunciou com convicção.

— Sério? Eu gostei.

Herys olhou para o mago sombrio de maneira estranha. Sem dizer nada, sentou-se no chão, segurando os joelhos com os braços e esperando Killian repetir o processo com os demais membros do estranho grupo.
“Se alguém me dissesse que um dia eu estaria ao lado de um escudeiro de Cavaleiro Santo, de um elfo de sangue puro e de um mago das trevas”, pensou Herys, sorrindo de canto, “eu diria que essa pessoa era louca”.
Killian chegou à margem onde a maioria o esperava sem grande dificuldade.
Artariel e Zerafinie olharam para ele.

— E-eu acho que vou dar a volta pelo rio — murmurou Arty. — Não deve ser tão extenso…

— E eu não vou pelo seu tronco — anunciou Zerafinie.

A mestra de magia elemental então, com um simples gesto, criou um caminho de gelo, uma estreita ponte que passava por cima do rio.
Zerafinie Darkandew passou pela ponte com calma. Quando Arty tentou segui-la, a ponte se desfez, e os fragmentos dela caíram no rio e foram levados pela correnteza.

— Supere seus medos — disse Killian.

— Não consigo…

— Não se preocupe, Arty — disse Lira, sorrindo. — Estarei guiando vocês.

Soren não gostava da ideia de deixar a irmã sozinha do outro lado do rio. Principalmente porque pensava ter sentido algo na noite passada. Presenças estranhas, malignas.
Mas não havia muito que podia fazer.
Killian subiu no tronco, e Artariel segurou-o com força e medo. “Por favor, que eu não caia. Que eu não caia.”
Killian remava, e Lira usava de sua magia para impedir que a falta de apoio ao escudeiro o fizesse ser levado pela correnteza. Em pouco tempo, chegaram ao outro lado do rio.

— Eu consegui! — disse Artariel, como se para confirmar se tinha mesmo sobrevivido.

— Agora, vou buscar a Lira. E rápido.

Soren olhava para as árvores atrás de sua irmã. Só agora ele percebia que elas estavam desagradavelmente próximas à garota.
Quando Killian estava na metade do caminho pelo rio, Lira ouviu uma movimentação atrás de si. E então viu dois pares de olhos brancos. E logo eles estavam por toda parte.
Madadh-allaidh.
O primeiro avançou, e logo todos estavam atrás dele. Killian não contava mais com o apoio de Lira, então seu progresso era lento.

— Lira!

O grito dele mal chegou aos ouvidos dela. Estava mais preocupada com as criaturas que aproximavam-se.
Zerafinie não perdeu tempo. Murmurando uma fórmula mágica, um par de asas semelhantes à de pássaros, porém feitas de pura eletricidade, formaram-se em suas costas.
“A ideia era ajudar os alunos o mínimo possível, mas algo está errado com estes lobos. Retaliadores comuns não nos perseguiriam por tão longe para dentro da floresta.”
Killian remava com a maior velocidade que conseguia. Zerafinie já alçava voo. Lira apontou a mão contra o Madadh-allaidh mais próximo e disparou um pulso de energia psíquica que arremessou-o contra outro Retaliador.
Outros dois aproximavam-se dela. Lira criou uma [Barreira Arcana] entre ela e os lobos, que pararam momentaneamente. Logo em seguida, contornaram a barreira.
Antes que alcançassem Lira, Zerafinie surgiu, disparando um par de relâmpagos contra as criaturas. Murmurando coisas inaudíveis para Lira, um grande lobo feito de chamas surgiu à frente da maga mental.
O lobo de Zerafinie atacou um dos Retaliadores. Abocanhou seu pescoço e sacudiu-o. Outro Madadh-allaidh atacou o lobo de chamas.
Zerafinie pousou à frente de Lira e criou uma [Barreira Arcana]. Lira percebera que era muito mais potente do que aquela que ela conjurara.
Assim que um Madadh-allaidh destroçou o lobo de chamas, uma enorme explosão de chamas incinerou quatro dos Retaliadores.
“A agressividade deles também está muito maior”, percebeu Zerafinie, com um sentimento estranho.
Killian chegou à outra parte do rio, parando o tronco de árvore e saltando deste, desembainhando a espada.
Contrariando os avisos de Zerafinie, Killian atirou-se contra um dos lobos monstruosos, golpeando sua cabeça com uma estocada no exato momento em que o lobo abria a mandíbula (dividida em quatro partes), trespassando sua cabeça.
Outro Madadh-allaidh atacou, mas Lira enviou um pulso que quebrou o pescoço do monstro. Zerafinie disparou uma flecha de chamas que dividiu-se em três e atingiu três lobos.
Killian protegeu-se do ataque de outro Retaliador, contra-atacando com um corte transversal.
Ainda havia seis lobos, rosnando furiosamente e de modo pouco comum para aquelas criaturas.
Zerafinie ordenou que Killian fosse para trás dela. O escudeiro assentiu e correu para ficar ao lado de Lira. Os dois agora estavam atrás de Zerafinie.
A mestra liberou uma imensa quantidade de Mana, que até Killian, que não era sensível a esta energia, perdeu o ar.

— [Rfroraduldrame Rorazisu Ramihora]!

Uma quantidade simplesmente imensa de energia elétrica concentrou-se em uma esfera entre as mãos de Zerafinie. Um círculo de nove camadas surgiu à frente da professora.
“Um feitiço de 9° círculo?!”, espantou-se Lira. “Isso é um passo atrás de feitiçaria catastrófica.”
O Grande Raio Alfa, provavelmente o mais poderoso feitiço do ramo da feitiçaria do relâmpago, foi disparado contra as criaturas em um feixe de luz que não envergonharia o Sopro Dracônico dos extintos arquidragões, desintegrando tudo no caminho, fosse ele lobo, planta, pedra, madeira, insetos ou qualquer outra forma de matéria, que era reduzida a nada perante o feitiço.
Quando os relâmpagos dissiparam-se, já não restava nada à frente de Zerafinie. A mestra de magia sorriu para os jovens.

— Terminei.

— Você podia ter feito isso antes — reclamou Lira.

“Não. Eu não queria resolver todos os seus problemas… Mas estes Retaliadores não eram comuns. Havia algo de errado neles. Algo ruim.”
Zerafinie Darkandew não externou seus pensamentos. Simplesmente ignorou as reclamações e ordenou que seguissem.
Estavam quase no fim da floresta. Zerafinie precisava falar logo com o Arquimago.

*

Andaram por mais dois dias. Para a surpresa deles, a noite parecia ainda mais escura que o normal. Mesmo assim, o medo já não os acompanhava tanto. A morte dos Madadh-allaidh fez com que pudessem dormir com maior tranquilidade.
As duas exceções eram Soren e Zerafinie. A mestra de magia estava com uma suspeita crescente, e aquilo poderia significar algo horrível. Algo que fez muitos magos perderem o sono por décadas, até séculos, até finalmente perderem o medo.
“Mas e se finalmente for ocorrer? A profecia de Iwe irá finalmente se cumprir? O Terror Adormecido irá acordar? A escuridão engolirá o mundo uma segunda vez?”
Já Soren, embora não possuísse o conhecimento da maga mais velha, pensava no mesmo assunto. O comportamento estranho dos Madadh-allaidh. Mais especificamente: a sensação que eles fizeram-no sentir.
Pois Soren havia sentido miasma. Havia sentido magia das trevas. Não. A magia das trevas usada pelos seres humanos não era assim.
Soren Heirdarus havia sentido, naqueles Madadh-allaidh, magia demoníaca.
Aqueles pensamentos tiraram quase completamente o sono dos dois magos. Eles adormeceram faltando menos de três horas para o dia chegar em Yont-i.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

*

Finalmente, eles viram a sua luz no fim do túnel.
A floresta desapareceu atrás deles. À sua frente, havia apenas uma atalaia solitária, uma torre que erguia-se acima do solo, porém abaixo das enormes árvores de Yont-i.

— Chegamos? — perguntou Lira, esperançosa.

— Não. É uma ilusão criada pelo rei Aemond — zombou Soren.

Lira mostrou a língua para ele e ficou em silêncio.
O grupo finalmente chegou aos pés da grande atalaia. Olharam para cima, e a torre era como um farol de esperança. Não queriam passar nem mais um segundo naquele Plano.
Zerafinie começou a subir, seguida por Herys, Soren, Lira, Artariel e, fechando a fila, Killian. Subiam a enorme escada em caracol que ficava junto à parede. Não havia nada no centro da torre. Possuía apenas a escadaria, poucas janelas e, no topo dela, um teto de pedra — ou, mais precisamente, um piso.
Assim que chegaram a esse piso, do último andar, viram, sobre um pedestal, um desenho estranho. Todos, até mesmo Killian, sabiam que tratava-se de uma runa mágica. Para ser exato, uma runa de teletransporte extraplanar.

— Parece que acabou — anunciou Zerafinie, sorrindo. — Quem vai primeiro?

— Eu! Eu! — pediu Lira, animada, erguendo e balançando a mão.

A garota aproximou-se da runa e tocou-a. Logo, após uma ventania súbita, Lira sumiu em uma esfera negra, como um pequeno buraco negro.
Soren olhou preocupado para a mestra de magia, mas Zerafinie apenas sorriu para ele.

— Sua vez, garoto. Vá.

E assim ocorreu. Logo, todos os alunos haviam voltado à Academia Greyhorn.

*

Assim que Soren olhou ao redor, viu que os mestres da academia olhavam para eles. Soren esforçou-se para não encarar Sor Arkhim Streffar, que olhava para eles com um sorriso de canto.
Então Soren deu-se conta de que não haviam sido os últimos. Mestre Wixxard ainda não havia voltado.
Zerafinie aproximou-se dos demais mestres com calma.

— Receio que tenhamos de deixar os comentários para um momento futuro. Há um assunto que desejo discutir com o Arquimago, Tulin Silleskrow, em particular.

O ancião sorriu para ela e assentiu. Com um gesto, todos entenderam, aprendizes e mestres, que deveriam deixar a sala.
Assim que saíram da sala ligada à runa de teletransporte, Arkhim, com um movimento rápido, ordenou que Killian o seguisse. Killian despediu-se dos demais em um sussurro e correu atrás do Cavaleiro Santo.
Enquanto Soren, Lira, Herys e Arty caminhavam pelo corredor, ouviram passos correndo atrás deles. Quando se viraram, lá estava o mestre de magia mental, Luk von Silennar.
O jovem mago de longos cabelos loiros sorriu para os alunos.

— A Zerafinie foi bem cruel por deixar-nos curiosos, não?

— Mestre Luk — disse Lira, semicerrando os olhos —, espero que não esteja querendo espiar.

— Não. Hehe, claro que não. Só queria conversar um pouco com o jovem prodígio.

“Fala de mim, Luk?”, indagou-se Soren. “Do que adianta ser um prodígio se minha magia é proibida e punível com a morte?”

— Vá falar com o mestre Luk, “jovem prodígio” — disse Herys, sarcástica, seguindo o caminho pelo corredor. Logo Arty e Lira seguiram-na.

Luk colocou a mão no ombro de Soren.

— Deve ser complicado para você, não é? Ter de usar uma magia sem poder atingir seu verdadeiro potencial.

— Sim — murmurou Soren, hesitantemente.

— Eu entendo. Mas veja bem, Soren von Dartã, eu acredito que estou fazendo progresso.

— Fazendo… progresso?

— Em breve, vou conseguir permissão para que você possa praticar a magia das trevas livremente. Nesse momento, sua única limitação será o quão longe você próprio estará disposto a ir.

Sorrindo uma última vez, o mestre de magia deu as costas para um Soren confuso, curioso e pensativo.

*

Zerafinie estava sentada à frente de Tulin. Olhava para o Arquimago com evidente preocupação.
Após um breve momento, Tulin pediu com calma que Zerafinie falasse o que queria dizer.

— Em Yont-i, o Plano da Natureza — informou Zerafinie —, havia alguns Madadh-allaidh. Nada de especialmente estranho. O estranho era que eles eram muito mais agressivos e, além disso, nos perseguiram por grande parte da floresta de Ophell.

— Não é comum — concordou Tulin, começando a perder o sorriso.

— Além disso, eu temo ter sentido… magia demoníaca naqueles Retaliadores.

— Demoníaca?

— Sim. Do tipo que só se tem em Apokris.

— Então você percebeu.

— O senhor já sabia?!

— O Plano das Sombras anda especialmente agitado. A barreira entre Apokris e os outros mundos está ficando instável. Temo que algo ruim venha a ocorrer. Mas não se preocupe com isso. Se algo acontecer, não poderemos impedir.

Houve um momento de silêncio, mas logo Zerafinie abordou outro assunto.

— O mago das trevas…

— Soren. Não me preocupo com ele.

— E se a agitação de Apokris afetá-lo?

— Não afetará.

— Como tem tanta certeza, Arquimago?

— Porque o único jeito dele ser afetado será entrando na própria Apokris. Sem isso, ele não será afetado. Mas ele ainda pode corromper-se naturalmente.

— Acha que ele o faria?

Tulin não respondeu. “Não. Eu não acho. Pelo menos, não acho que ele entraria na escuridão por vontade própria…”

— Nós — anunciou Tulin, finalmente — iremos cuidar dele. Para que não cometa erros.

— Sim, senhor.

“E, até lá”, pensou Tulin, “teremos que pensar um pouco na profecia de Iwe… O Terror Adormecido… Talvez já esteja chegando o tempo da grande catástrofe…”
Tulon balançou a cabeça. Teoricamente, não haveria como aquilo que ele temia viesse a acontecer.
Teoricamente.