Além dos Reflexos

Aquela noite fria


Nós tínhamos uns 9, quase 10 anos. Era nosso terceiro inverno em Sapporo e não estávamos muito acostumados com o frio ainda... Na verdade, um típico outono frio daqui: se me lembro bem, isso aconteceu em um novembro.

Como sempre, nossos pais tinham ido até Leon e minha tia Ágata cuidava de Len e eu no Japão. Comemos pizza no jantar, com direito à sobremesa, brincamos e jogamos videogame até tarde, aproveitando o final de semana. Típico dos dias divertidos passados com a irmã mais nova de nossa mãe ausente. Apesar disso, Len estava doente: pneumonia. Já havia melhorado e saído do hospital há uns 3 dias, mas continuava com uma insistente falta de ar e um cansaço que disfarçava para aproveitar o dia. Parecia que eu era a sortuda por não estar doente também nessa ocasião, mas na verdade, adoeci primeiro e passei para ele em seguida.

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Len e eu nos tornamos próximos durante esse período de dois anos e alguns meses após a mudança, criamos o hábito de conversar sobre qualquer coisa, ou sobre o dia, antes de dormir. Nessa noite, agitados e distraídos com a visita e os momentos felizes, o nosso diálogo se estendeu por um tempo maior que o habitual, até começar a ficar difícil formar frases por conta do sono.

Dividindo a cama, percebi quando Len não conseguiu mais manter os olhos abertos e eu finalmente consegui dormir também. Sem querer, mas de costume, esperei que dormisse primeiro para que eu sentisse tudo bem.

Não percebemos, em algum momento, quando o vento abriu a janela que esquecemos de trancar e o frio invadiu nosso quarto quentinho. O cansaço demorou a ser menor para que o ar gelado nos acordasse apesar do montinho de cobertores sobre nós. O cômodo estava completamente silencioso quando ouvi Len ofegante, o ruído de seu pulmão com a crise de asma causada pelo choque térmico. Senti agarrar e puxar a minha blusa, me acordando com o susto e o escuro me deixando desorientada.

Em choque, olhei para trás por reflexo, pensando ser outra coisa, mas o que vi foi meu irmão num estado em que já quase não se movia pelo incômodo e sufoco. Apesar do medo, não foi impossível para mim alcançar o inalador que deveria estar na mesinha ao nosso lado... deveria. Len esqueceu na sala, antes de virmos para o nosso quarto.

Desci as escadas correndo, revirei as almofadas do sofá até encontrar e subi de volta o mais rápido que pude. Só consegui me acalmar e ter certeza de que não entraria em crise também quando vi Len respirando fundo, aliviado depois da tensão. Ele sorriu para mim, sem jeito, eu continuava tensa, em silêncio. Me fixei ao lado da cama, em pé, como se precisasse sair correndo atrás de algum socorro de novo a qualquer momento.

— Obrigado – murmurou.

— Tudo bem? – perguntei.

— Eu tô bem. – Com a voz meio rouca, não deixou de tentar me acalmar. – Quero água. Quer ir na cozinha comigo?

— Vamos.

Antes de sair, lembrei de trancar a janela e ligar o aquecedor para que o quarto voltasse a ser habitável em menos tempo. Len disse estar bem, mas eu ainda escutava um chiado no silêncio perturbador que nos cercava enquanto caminhávamos devagar até a cozinha.

— Você está quieta, tensa – Len comentou baixinho, enquanto enchia o copo de água do filtro. – Eu te assustei quando te acordei?

— Um pouquinho, mas já passou. Tudo bem com você, mesmo?

— Tudo bem – repetiu, sem perder a calma. Tomou a água do copo enquanto eu, contrariando o que havia acabado de me responder, acompanhei cada gole com cautela. Encarei o vidro fechado da janela da cozinha e me assustei com a sombra do nosso reflexo embaçado pela escuridão da noite, feita de nuvens pesadas de neve prestes a cair, além da ventania bagunçando os galhos das árvores do lado de fora.

A ventania… A luz da cozinha piscou, a eletricidade oscilando com o tempo feio. Como previ, Len se engasgou com o susto. O copo caiu no chão, espatifando cacos e respingos do resto da água.

— Eu tô... bem – repetiu em meio a tosse. A luz não retornou. – Eu só... engoli torto... Eu tô bem!

Bem ou não, sem querer ou não, a crise começou a voltar. Dessa vez, em pânico, minha primeira reação foi gritar pela minha tia, que dormia no quarto ao lado do nosso. Sabia que o caso era mais grave do que parecia para que eu lidasse sozinha.

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No mesmo instante... não, no mesmo segundo, Ágata brotou do corredor escuro para a cozinha e não abriu a boca. Mal consegui ver seu rosto, fui tomada pelo susto. Balbuciei alguma coisa sobre o medicamento enquanto ela nos empurrava para a sala com as mãos geladas, nos tirando de perto do vidro sem dizer nem uma palavra, enquanto Len aos poucos começava a se contorcer.

A energia voltou e iluminou a sala, acasa continuou em silêncio. Tentei ajudar Len a controlar a respiração de todas as formas possíveis, com todas as dicas e truques que conhecíamos. Funcionava apenas um pouco... A luz da cozinha, apenas, se apagou novamente. Impaciente, levantei e fui até o corredor tentar saber o que estava acontecendo.

A cozinha vazia.

Vazia.

Com a parca iluminação da sala, avistei os cacos de vidro e a janela aberta. Nada de tia Ágata.

Um arrepio tomou conta do meu corpo, me congelando no mesmo ponto. Len perdia a cor por falta de ar e eu por pânico. Gritei por ela novamente.

Ágata desceu as escadas afobada e descabelada como sempre... com outra roupa.

— O quê?! O quê foi!? O quê aconteceu?!

Eu não sabia explicar. Senti meu rosto formigando, lágrimas brotando. Não me lembrava de ter visto a face de seja lá quem ou o que nos empurrou até a sala com o sangue frio de ignorar o sufoco de Len. No escuro, distingui pouca coisa além dos fios de cabelo louro bagunçados que assimilei com os de de nossa tia.

Bastou um rápido olhar para que nossa tia entendesse o que precisava fazer. Enquanto eu chorava, Len melhorava. Enquanto eu chorava mais, Len entendia o que havia acontecido e chorava também. Ágata tentava o tempo todo nos acalmar com palavras e aconchego, nos envolveu num abraço coletivo morno.

Nenhum de nós dois encontramos palavras para explicar o que aconteceu por um bom tempo, tivemos medo de sair do sofá e ter de passar pelo corredor. Ela ficou conosco por mais ou menos uma hora até que conseguíssemos, mais ou menos, explicar em meio a nossa confusão.

Ágata racionalizou tudo, de imediato. Eu estava em pânico, assustada desde que saí da cama. Tínhamos uma imaginação fértil (e perturbada, hoje eu entendo), e Len provavelmente já estava delirando sem oxigênio no cérebro. Talvez eu estivesse sem ar também, mas a adrenalina de ajudá-lo não me deixou perceber.

Passado o susto, subimos os degraus da escada, de volta aos nossos quartos, por mais que o sono tivesse desaparecido.

— Só vou limpar a bagunça lá embaixo amanhã de manhã, então me chamem se precisarem de qualquer coisa – Ágata disse, se despedindo. – Boa noite.

— Boa noite – respondemos ao mesmo tempo.

Entramos novamente no quarto... frio.

— Eu juro que tranquei a janela e liguei o aquecedor – sussurrei. Len agarrou minha mão, eu agarrei de volta. Não passamos da porta. O aquecimento foi desligado com a oscilação da energia, mas e a janela muito bem fechada? – Eu tenho certeza.

— Eu vi, eu sei – Len respondeu no mesmo tom amedrontado.

Deixamos tudo como estava. Fomos até a porta do quarto ao lado.

Dormimos todas as noites seguintes com a tia Ágata.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.