A Última Chance

Surpresas


Sete meses depois...

Susana Pevensie

Deveria ser umas quatro ou cinco da tarde quando o advogado para quem eu trabalhava de secretária avisou-me apressadamente que teria uma reunião fora do escritório e que eu estava liberada para ir para casa.

Enquanto organizava a papelada em cima da mesa antes de ir embora, refleti sobre o quanto aquilo era estranho. O doutor Turner sempre me recomendara que marcasse suas reuniões por telefone para serem realizadas no escritório mesmo, creio eu para passar uma imagem mais profissional. Fora que Turner nunca finalizava as atividades antes do horário estipulado, seis da tarde.

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Refreei os pensamentos assim que ousei pensar na possibilidade de que tivesse uma amante. Eu já desconfiava disso havia dois meses, porém digamos que ultimamente ele havia ficado mais... descuidado.

— Boa tarde, senhor Turner, tenha um bom fim de semana – Cumprimentei quando minha bolsa estava arrumada e eu pegava o sobretudo no cabideiro.

— Boa tarde, senhorita Pevensie – Falou simpaticamente, apesar de sequer olhar para mim.

Eu começara a trabalhar para ele três meses após a... morte de meus pais. Sim, ainda era algo delicado sobre o qual falar. Tão de repente, bem na minha frente. Era uma imagem dolorosa demais para repassar. Ouvir o ruído das falhas mecânicas, o grito das pessoas, ver o vagão despencar rumo à primeira rocha que encontrara...

Sacudi a cabeça. Não devia pensar nisso agora. Tinha um caminho longo até em casa, choraria quando deitasse a cabeça no travesseiro, como costumeiramente fazia antes de dormir.

A situação financeira lá em casa não era das melhores. Nossos pais felizmente nos deixaram algum dinheiro como herança, mas não era muito e o estávamos gastando com sabedoria, pois sabíamos que não duraria para sempre.

A família do senhor Turner era muito próxima dos Hughes, cujo filho mais velho era oficial da marinha, o mesmo que me convidara para um chá enquanto estávamos na América. Era notável o interesse de George Hughes em mim, mas ele sempre fora respeitoso e, quando soube da morte terrível que meus pais tiveram, logo mexeu os pauzinhos para me ajudar assim que soube que eu procurava emprego.

Era bom homem. Diversas vezes me vi pensando na possibilidade de deixá-lo se aproximar. Aceitar algum de seus convites para jantar, ou para passear no parque, ou para comparecer às inúmeras festas de aniversário que a imensa família dele fazia de tempos em tempos. Já me imaginara casada com ele. Não porque estava apaixonada, não por interesse em seus recursos financeiros, mas para me dar ao luxo de ser cuidada... desvencilhar-me dos traumas, das portas que a vida fizera questão de fechar.

A porta de Nárnia estava fechada. Não só para mim, não só para Pedro – que depois do dia duro na universidade, emendava no trabalho pesado de estagiário num hospital por metade de um salário –, mas para Lúcia e Edmundo também e, por mais que eu relutasse em admitir, parecia impossível aceitar que vivíamos na Inglaterra permanentemente. Estávamos ali, todavia não éramos dali. Éramos estrangeiros. Nossos corações pertenciam à outra terra.

E o casamento... bem, talvez a mente descansada de problemas financeiros e preocupações familiares me desse a chance de ser feliz. De tornar suportável a falta que Nárnia fazia. De substituir o amor singelo e inocente que tomara conta do meu ser desde o dia em que o conhecera. De esquecê-lo.

— Pensei que ia ser só uma visita – Fui surpreendida à porta do edifício por Edmundo – Mas acho que já posso levá-la para casa!

Parei por um segundo. Eu havia deixado a sala do escritório, descido todos os cinco andares de escada, percorrido o imenso corredor até chegar ao hall de entrada e já alcançava a rua sem sequer ter notado. Em que mundo eu estava?

— Não acredito que veio até aqui – Comentei, voltando-me a ele – Lúcia não veio com você?

— Lúcia foi fazer uma surpresa para Pedro – Respondeu, oferecendo o braço para mim e eu o peguei – Ela acabou de bordar o vestido da senhora Robinson, foi entregar e quando voltou, surgiu com a ideia de alegrarmos o dia de vocês com um passeio pós-trabalho. – Edmundo tentava sustentar um olhar alegre, porém eu o conhecia o suficiente para saber que ele mesmo precisava ser alegrado – Preparou uma sobremesa e vai levá-lo para jantar.

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— Ele sempre chega tão cansado, não é? – Ponderei – Quase não tem coragem de comer.

Pedro, sem dúvidas, era o mais sobrecarregado. Era um martírio vê-lo chegar em casa com olheiras enormes, os olhos miúdos, quase arrastando-se sobre os pés. Eu sequer perguntava sobre as notas da universidade. Ele era um discente dedicado, porém com certeza o trabalho tirava grande parte de sua disposição e produtividade.

Gostaria de fazer algo por ele, aliviar a responsabilidade de cuidar de nós apesar de todos tentarmos ajudar. Sim, porque por mais que tentássemos dividir as tarefas, Pedro insistia em tomar conta de tudo. Eu acreditava que ele sequer tivera tempo de viver seu luto. Não gostava de imaginar o que aconteceria quando aquela dor finalmente recaísse sobre ele.

— O que acha de tomarmos um café? – Edmundo percebeu minha distração. Eu realmente não estava dando valor à sua tentativa de animação.

— Vamos, mas vamos passar numa loja de sapatos primeiro. Faz tempo que Lúcia se queixa de precisar de um sapato, então economizei e chegou a hora de comprar.

— Nossa, ela vai enchê-la de doces em agradecimento – Edmundo riu, imaginando a cena. Eu imaginei também: Lúcia me enchendo de abraços e me prometendo o mundo. – Já sabe onde vai?

— Isla, a recepcionista do prédio, recomendou-me uma sapataria a duas quadras – Indiquei com o queixo o sentido a esquerda – Disse que os preços eram bons e os sapatos, de qualidade. Nada de grife, obviamente, mas deve ser suficiente.

— Não acho que Lúcia se importe com marcas, sabe disso – Meu irmão discordou – Ela seria feliz com muito menos se sentisse que Finchley é seu lar.

Eu entendera o que queria dizer. Era o nosso desejo comum mais secreto, apesar de ser mutuamente conhecido. Procurávamos não falar daquilo, não falar de Nárnia. A saudade nos atingiria com força, mais uma dor com a qual lidar. Não gostaria de provocar Lúcia, sempre esperançosa, a se revoltar contra Aslam, culpando-o por permitir que vivenciássemos momentos tão difíceis.

Chegamos mais cedo do que esperávamos à sapataria, o sinal havia fechado rápido para que passássemos.

O local era simples, porém agradável e bem decorado. As paredes eram tomadas de estantes de madeira escura, cujos espaços eram quadrados com fundo branco, abrigando os modelos de sapatos. O piso era forrado por um carpete cinza quente, que combinava com o marrom e era iluminado pelas lamparinas penduradas.

Duas clientes eram atendidas pelas funcionárias, que as serviam nos estofados no centro da loja. Uma das atendentes, de alguma forma, me pareceu familiar, embora estivesse de costas para mim. Os cabelos negros, o rosto oval de expressividade firme...

— Boa tarde, senhores – Outra moça veio até nós, tão rápido que nem vi de onde veio. Esta tinha cabelos loiros escuros, expressão simpática, lábios delicados e sorriso gentil. – Desejam algo em especial? Ficarei feliz em atendê-los!

— Ah, obrigada – Surpreendi-me com a gentileza. Era o tipo de tratamento que faltava no comércio – Procuramos um par de sapatos pretos para minha irmã.

— Trarei alguns modelos para que... – A voz da moça se tornou longínqua quando percebi que a atendente que eu conhecia de algum lugar parou o que estava fazendo para nos ouvir.

Vi de relance a loira se afastar para buscar as caixas no estoque e a atendente de cabelos escuros finalmente se virou para nós, mostrando seu rosto.

— Prunaprismia – Ouvi Edmundo pronunciar, concretizando em seu tom a mesma surpresa que eu tive.

Seu rosto nos encarava séria e surpresa enquanto suas mãos seguravam a caixa de sapatos pelos quais sua cliente não se interessara. Ela piscou um par de vezes quando a madame lhe chamou para levá-la ao caixa e Prunaprismia pegou o sapato que a senhora compraria.

Cerca de vinte minutos infindáveis se seguiram. Minha atendente nos trouxe alguns modelos, todos pretos, para que eu escolhesse algum para Lúcia. Dois me interessaram e Edmundo me ajudou a tirar a dúvida. Enquanto escolhíamos, vez ou outra trocávamos olhares com a viúva de Miraz, que retribuía com desconfiança e até medo.

Não imaginava que a encontraríamos um dia, não em nosso mundo. Quando Aslam disse que viriam para uma ilha, o lar dos antepassados, de fato falava da Inglaterra, mas era uma terra tão grande... por que Londres?

— Vão levar este mesmo? – A moça indagou por fim.

— Sim, acho que nossa irmã gostará muito – Assegurou meu irmão.

— Vou levar ao caixa – Avisou – E após o pagamento, não vão embora, farei uma embalagem para presente.

— É muita gentileza sua, obrigada – Ofereci um sorriso a ela, que fora tão atenciosa. Parecia até que tinha sido sua primeira venda. A felicidade no olhar me lembrou do primeiro cliente que atendi no escritório sem cometer nenhuma gafe.

Levantei do assento estofado bege e Edmundo e eu nos dirigimos ao lugar de pagamento. A mulher que ali estava se vestia mais elegante, poderia ser a gerente ou a própria dona. Ela verificou os sapatos, cuja caixa era marcada com algum tipo de numeração que ela olhou num longo livro tabelado para conferir o preço. Assim que tudo estava certo, entreguei o dinheiro a ela, que me deu o troco junto ao sapato.

— Prometo que serei breve – Certificou a atendente, levando a caixa para embalar.

Foi quando tudo se acalmou. Prunaprismia estava bem diante de mim, separa de nós por alguns metros, esperando o próximo cliente. Era a oportunidade perfeita para falar com ela, perguntar como estava a vivência em Londres.

— Vai falar com ela? – Edmundo indagou mais hesitante que eu – Acho que não vai querer conversar conosco. É viúva de Miraz, deve nos odiar.

— Ela também é tia de Caspian – Lembrei a ele – E se estiver precisando de ajuda? Ela veio com uma criança para cá, lembra? Não custa tentar.

Engoli em seco antes de me aproximar. Ela já esperava por isso, apesar de não parecer confortável.

— Prunaprismia – Cumprimentei com um sorriso simples – Como vai? Acredito que se lembre de nós.

— Vou bem – Maneou com a cabeça – E sim, me lembro. Como... esquecer? – Dava para sentir de longe seu ressentimento. No fundo, eu entendia. – Aslam os enviou para nos encontrar?

Não compreendi de início, mas não demorei a entender. Ela provavelmente pensava que Aslam nos mandara para... vigiá-la, saber como se comportava no novo mundo.

— Viemos apenas para comprar sapatos – Assegurei com um meio sorriso – Não tenho intenção de aborrecê-la, só me aproximei para – Dei de ombros – Oferecer ajuda, não sei.

— Perdoe-me – Ela relaxou os ombros, um tanto sem graça – Não esperava encontrá-los aqui. Bem, não ficaram em Nárnia? – Aquela foi a sua forma de recomeçar o diálogo, mencionando a terra secreta em tom baixo.

— Viemos de Nárnia no mesmo dia que você, sua família e o general Glozelle atravessaram aquela árvore – Contei. Ela descruzou os braços.

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— Teria sido bom ficar – Edmundo tomou coragem para entrar na conversa – Porém temos uma vida aqui. Deveres aqui. Tínhamos que voltar.

— Então, suponho que... não saibam como Caspian está – Não era bem uma pergunta, mas ela se fez entender. Parecia receosa em perguntar pelo sobrinho, depois de ter ficado contra ele e quase o acertado com uma flecha.

— Edmundo e minha irmã Lúcia estiveram lá meses atrás – Mencionei e ela ergueu as sobrancelhas. – Ele pode falar melhor.

— Caspian está conduzindo bem as coisas. Atenuou as tensões entre telmarinos e narnianos, fez os gigantes do norte se renderem, venceu exércitos de Calormania no Grande Deserto, retomou as Ilhas Solitárias para Nárnia, descobriu novos territórios...

— Prunaprismia, aqui estão os sapatos que a senhorita Thompson... – Nada menos que Glozelle apareceu vindo dos fundos da loja, com um avental surrado e com um par de sapatos nas mãos. Parou de falar ao nos ver – Está tudo bem aqui?

— Está, querido – “Querido”? – Eles estavam contando sobre Caspian, disseram que está sendo um bom rei.

— Ah, isso é ótimo – Falou o ex-general, ainda levemente desconfiado – Miraz se lamentava que todos o consideravam inapropriado, mas nunca tive dúvidas de que Caspian seria um rei admirável. Pergunto-me o que as famílias tradicionais acham disso. Ele já se casou?

Ele perguntou sem maldade, mas a sentença me atingiu em cheio. Edmundo percebeu isso, tal qual Prunaprismia, o que foi uma surpresa para mim. Ela sequer vira o beijo que depositei nos lábios de seu sobrinho quando parti, então como poderia ter notado?

— Até o momento em que o vi, ainda não – Edmundo tomou a palavra – Mas nós... conhecemos uma moça que... talvez pudesse o ter interessado.

E ele não falava de mim. Eu sabia disso, Lúcia me contara. Falara da bela e iluminada filha de Ramandu, aquela que os guiara para a Ilha Negra, o coração de toda a energia negativa que sequestrara inúmeras pessoas nas Ilhas Solitárias.

— Obrigada pelos sapatos, Glozelle – Ela não precisou dizer para ele voltar para os fundos, ele entendera o recado, apesar de não entender o motivo. Ele seguiu para dentro confuso, embora conservasse um sorriso de canto.

— Vocês... – Meu olhar foi suficiente para que compreendesse.

— Ele tem sido um bom companheiro para mim e ótima influência para meu filho – Respondeu Prunaprismia, aparentemente bem resolvida com a situação – Não estamos juntos oficialmente, porém talvez um dia estejamos.

— Nós ficamos felizes com isso – Eu disse.

— Aqui está, senhorita Pevensie – A atendente finalmente voltou com o pacote, a caixa de sapato bem embalado em lilás com fitas prata.

— Obrigada – Agradeci.

— Bem, Prunaprismia – Edmundo falou – Se precisar de nós, Susana trabalha no escritório de advocacia a duas quadras. Ficaremos felizes em ajudar.

— Obrigada, majestades— Ela disse a última palavra baixo, mas ainda assim a mocinha loira ouviu e estava prestes a perguntar quando decidi que era a hora de ir embora.

Já estava mais escuro quando saímos, as luzes dos postes já acesas e as ruas menos movimentadas. Não era tarde da noite, óbvio, ela mal começara. Porém era melhor nos apressarmos.

— Eu não esperava encontrá-la – Meu irmão falou, dando-me o braço – Apesar de tudo, parece feliz. Vi o jeito que olhou para o general. Ela finalmente deve ter encontrado alguém melhor para compartilhar a vida.

— E você? Quando vai achar alguém? – Alfinetei e ele fez cara feia para mim no ato.

— Por mim, nunca! – Exclamou, apressando o passo e quase me arrastando – Aturar vocês três já é trabalho demais! – Eu ri – Aliás, você que anda de pretendente!

— Por que você e Lúcia sempre jogam a bola para mim? – Reclamei.

— Oh, perdoe-me, Senhora Hughes – Alfinetou e tive vontade de beliscá-lo – Mas, falando sério – Paramos para atravessar – Não pensa em aceitar o convite de George para jantar?

— Isso daria esperanças a ele, Edmundo – Respondi simplesmente. Os carros pararam e nós caminhamos transversalmente pela pista – Não quero nada com ele.

Um momento de silêncio. Pela visão periférica, vi Edmundo abrir e fechar a boca umas duas vezes, hesitante sobre se deveria falar o que quer que estivesse pensando.

— Fale logo – Encorajei.

— Não acha que já está na hora de tirar Caspian da cabeça? – Ele não falou em tom grosseiro, nem acusador. Era apenas uma pergunta, uma preocupação.

Eu não estava definhando por amor, obrigava-me a seguir a vida como dava. O problema nisso tudo era só que, a partir do momento em que um rapaz se apresentava, era impossível não comparar, impossível não ver – ou procurar – defeitos que o colocassem muito abaixo do homem que eu conhecera em Nárnia. Não havia um mais bonito, mais carismático, que me fizesse sorrir mais, querer mais sua companhia. Era Caspian e seria ele por muito tempo. Talvez até para sempre.

— O problema é que ele não está só na cabeça – Dobramos o quarteirão quando falei – Está no coração... e simplesmente se recusa a deixá-lo.

[...]

Após pararmos para tomar um café rápido, fomos para casa. Chegamos com certa demora.

Depois do acidente, eu me recusava a pegar um trem. Meus irmãos entendiam isso. O transporte não tinha culpa de nada, inclusive o governo inglês intensificou a fiscalização das instalações e mandou reparar as falhas na ferrovia. Meu subconsciente, no entanto, não entendia isso. Eu não era capaz de controlar a agonia toda vez que me via parada diante da estação. Não conseguia entrar.

— Acha que eles já voltaram? – Edmundo se referia a Lúcia e Pedro enquanto pendurava o casaco e o chapéu no cabideiro. As luzes estavam acesas quando chegamos, mas nem sinal de Pedro ou Lúcia.

— Você deixou as luzes acesas? – Indaguei, deixando o sobretudo no cabideiro e batendo os pés no tapete antes de entrar na sala.

— Lúcia ainda estava em casa quando saí – Respondeu, caminhando até a cozinha. Aparentemente, não estavam. A casa não era grande para que não nos ouvissem.

— Bem, não devem demorar – Deixei a bolsa no sofá e passei para a cozinha – Faço o jantar agora ou espero um pouco?

— Acho melhor fazer agora – Respondeu, voltando à sala – Além do fato de seu irmãozinho aqui já estar com fome – Sorri. Edmundo era um mimado – Pedro e Lúcia vão jantar juntos, então vamos ser só eu e você.

— Sim, senh... – Fui interrompida por uma rajada de vento que abriu as janelas da sala de repente. A areia que veio com o vento incomodou meus olhos e eu os fechei com força, tentando limpá-los coçando as pálpebras com a ponta dos dedos.

— Essa janela não estava fechada? – Edmundo falou irritado, lutando contra o vento forte para fechá-la. Ele conseguiu e o vento cessou.

Olhei em volta e tudo estava normal.

— O que foi isso? – Indaguei com o cenho franzido. – Não estava ventando tanto na rua.

Foi só eu terminar a frase para o chão tremer tão violentamente que caí no chão em segundos.

— Susana! – Edmundo gritou ao cair no chão também.

A porta foi escancarada, uma rajada de vento ainda maior entrou. Protegi meu rosto com os braços e ouvi o som das coisas de vidro e porcelana caírem no chão. Não demorou para as estantes que decoravam a sala desabarem.

— Edmundo! – Abri uma brecha entre os braços para gritar e vi o lustre antigo da sala balançar violentamente. – Edmundo, onde você está?!

— Eu estou aqui! – Gritou aparentemente atrás do sofá.

Ouvi o corrimão da escada rachar, quebrando-se em questão de segundos. Aquilo não era uma ventania, era uma tempestade dentro de casa, um tornado, qualquer coisa do tipo.

Aquilo não podia estar acontecendo, não depois de tudo o que passamos. A cada som de algo quebrando, algo rachando, algo desabando, eu temia que a casa caísse em nossas cabeças. Já sentia as lágrimas de pânico molharem o meu rosto enquanto o escondia abaixo dos braços.

Após alguns segundos, para alívio do meu coração acelerado, tudo foi se atenuando. No entanto, senti o piso abaixo de mim se tornar áspero, pontiagudo, como se a madeira tivesse se tornado... pedregulhos, com areia pálida coçando as mãos.

Apoiei os braços no chão e me levantei, sentindo o calcário furar levemente as palmas. Eram mesmo pedras. O piso de madeira havia sumido.

Olhei em volta. Estava ao ar livre, o sol de uma manhã de verão de um país tropical sobre minha cabeça. O céu límpido, com raras nuvens brancas emoldurando a bela vista junto a um pequeno grupo de pássaros em seu voo sincronizado.

Virei para o lado oposto e vi um rio a uma distância de quinze ou vinte metros, calmo ao ritmo do vento leve.

— Susana – Edmundo chamou. O alívio percorreu minha espinha antes mesmo de ter me dado conta de que ele havia sumido. Fui em sua direção. – Você está bem?

— Estou, apesar de confusa – E atordoada, esqueci de acrescentar – Onde estamos? Onde está a nossa casa e toda a bagunça que aquele temporal deixou?

— Acho que não estamos em Londres, Su – Meu irmão sorriu de lado, o mesmo sorriso que Lúcia me deu quando... na praia de Cair Paravel, na caverna onde surgimos.

— Não está dizendo que... – Falei descrente. Era loucura, mas era mais fácil acreditar que estávamos mortos, perambulando pelo paraíso, do que...

— Olhe em volta – Ele se aproximou para mostrar – O rio não é familiar? Largo e comprido a perder de vista, as águas cristalinas como nunca se viram? – Me virou para a direita – E ali, logo depois do horizonte, o encontro com o Beruna? E adiante, não vê as colinas do Monte? – Indicou a esquerda – As florestas que levam a Cair Paravel?

Relaxei os ombros. Ele estava certo.

— E ao norte – Falei em tom baixo, conformando-me com aquela realidade. Indiquei a pequena elevação próxima ao horizonte – O castelo de Caspian.

Estávamos numa das margens do Grande Rio, no centro do país.

— Parece impossível – Continuou ele – Mas estamos em Nárnia.

Vi meus olhos se encherem de lágrimas pelos olhos dele, também marejados. O sonho que compartilhávamos em segredo, o desejo mais profundo de nossos corações... Nárnia. Outra vez. Uma nova chance. Uma última chance.

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