Os Lordes de Ferro

Capítulo 16 – Wando


Era a terceira loja que Yhago entrava naquela manhã pós-chuva. E a resposta era sempre a mesma. Cordial, mas sempre a mesma. Não havia trabalho para ele. Não havia nenhuma ocupação para alguém com suas habilidades. Nenhum bandido a ser capturado, nenhuma recompensa pela cabeça de algum malfeitor condenado, nenhuma pessoa desaparecida, ou nada que o valha. Nada.

Não era como se estivesse sem dinheiro. Longe disso. Ele tinha economias o suficiente para amargar um ano de “vacas magras” se fosse o caso. Não... Havia alguma coisa incomodando o gigante de cabelos negros. Alguma coisa sutil, mas palpável, como uma espinha prestes a romper a pele, ou uma coceira que não conseguia coçar. E sempre dois passos atrás dele vinha Sara com a sua nova conquista, de braços dados. A menina trazia a mulher da noite passada ao seu lado como um cavaleiro carregaria uma donzela nobre da alta sociedade.

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— Esse lugar deve ter comida boa. Nunca comi aqui, mas tenho certeza disso. – comentou o rapaz após escolher um restaurante às margens da rua do templo.

— E como você tem certeza disso? – perguntou Sara.

— Basta olhar... Não precisa ser um gênio para saber... – diante do silêncio da menina Yhago comentou – Basta olhar... vê bem o número de carroças e carruagens ao lado dele. Se tem tanto viajante ali a comida deve ser boa.

A menina concordou, embora estivesse contrariada. Não era a primeira patada que o colega de aventuras tinha dado desde que o dia tinha começado. Desde que ela descer as escadas com Keddy para o café da manhã, Yhago estava agindo como se tivesse ido defecar num vespeiro. Estava irritadiço e com respostas curtas e abusadas. A paciência de Sara estava se esgotando rapidamente.

A taverna era enorme. Um salão de pelo menos 40 metros de fora a fora, piso de madeira clara e bem pintada. Afrescos de paisagens pintadas com cores firmes e fortes decoravam as paredes. As paredes, aliás, eram feitas de tábuas de madeira lixada, pegadas do lado de fora com pregos de ferro. Uma extravagância para um lugar como Pedreiras. Havia um grande balcão logo depois da entrada onde vários homens se revezavam servindo bebidas e entregando pedidos para as atendentes que praticamente corriam por toda a extensão do salão. Uma dezena de janelas de cada lado do salão garantia uma iluminação natural muito bonita, ressaltando as cores do lugar e permitindo a circulação de ar. Para cada janela existiam duas colunas grossas de madeira vermelha que sustentavam o que deveria ser o piso do primeiro andar. No final do salão, para além das mesas havia um pequeno palco. Parece que além de servir boa comida, a taverna contava com entretenimento ao vivo.

Keddy olhava tudo aquilo com um misto de excitação e espanto. Apesar de morar em Pedreiras por praticamente toda a sua vida, nunca tinha deixado o mercado e as ruas nas suas imediações. Tinha passado a noite de ontem agradecendo a Sara pela sua vida. E agradecia da única forma de que sabia que tinha algum valor naquele mundo: o com a noite de amor mais sincera que ela podia proporcionar. Depois de demonstrar toda sua gratidão à Sara ela sentiu-se á vontade para contar de sua vida. Do passado lembrava pouco. Os pais moravam numa pequena fazenda de porcos. Ela e os parentes viviam de forma tão miserável quanto os porcos. Uma noite um bando de ladrões invadiu a fazenda em busca de dinheiro. E como não encontraram, mataram todos. Keddy foi então levada aos cuidados de um tio em Pedreiras. A situação não melhorou muito. E quando o tio faleceu ela foi “adotada” por um pequeno comerciante local de nome que a fazia de empregada, faz tudo e boneca sexual. Não sabia ao certo sua idade, mas Sara chutou que deveria ter entre catorze a dezoito anos. Seu corpo mostrava as marcas de anos de abusos por baixo do vestido: queimaduras, cortes que deixaram cicatrizes, marcas de chicote e outras que Sara não conseguiu imaginar como foram feitas. Na noite de ontem foi dada aos guardas como pagamento por taxas de proteção atrasadas.

Sara olhava a menina que lhe devolvia os olhares cheios de devoção e amor. Sara deve ter sido a primeira pessoa que lhe dispensou atenção e cuidado ao longo dos anos. A primeira a trata-la como um ser humano e não como um pedaço de carne para ser usada e abusada como tinha sido até aquele momento. E quando não estava ocupada dando atenção para a sua nova amiga Sara tinha que lidar com a cara de cu que Yhago lhe dispensava desde as primeiras horas da manhã.

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Por fim sentaram num mesa pequena, para quatro pessoas, perto de uma das janelas, mais ou menos na metade do salão. Logo que sentaram, foram avisados por uma das atendentes que em breve teriam um espetáculo de uma barda chamada Laura. Yhago pediu para ver o cardápio e enquanto não o traziam comentou alguma coisa com Sara. Como a menina estava absorta com Keddy ela não respondeu.

— Atenção aqui, porra! – disse Yhago em bom tom, estalando os dedos na frente do nariz de Sara. A demonstração de impaciência despertou medo em Keddy e ela se encolheu como um bichinho em cima da cadeira que estava sentada. Aquela tinha sido a gota que havia entornado o caldo todo. – Caramba, de que é que adianta eu ficar falando aqui para as paredes? Você não está prestando atenção em uma palavra do que eu estou dizendo. Parece tão retardada quanto essa daí. – Keddy se encolheu mais ainda.

Sara olhou fundo nos olhos de Yhago e pegou de um de seus bolsos um moeda de dez paus. Ela virou para Keddy e falou com docilidade:

— Toma aqui, meu docinho. Vai ali na barda que vai tocar e pede uma música bem bonita.

— Que música, senhora? – respondeu a menina, tremendo ao segurar aquela moeda nas mãos. Moeda que a seus olhos era uma pequena fortuna.

— Escolhe uma bem bonita. Confio no seu bom gosto. – disse Sara, com um sorriso capaz de engolir brincos. Vai lá...

A mocinha fez uma mesura antes de levantar da mesa e ir até onde até a beira do palco conversar com a barda que já dedilhava algumas canções e versos. Quando percebeu que Keddy não poderia mais vê-la ou ouvi-la, Sara virou para Yhago.

— Ok cara. Qual é o seu problema? Alguém te deu uma dedada e depois passou o dedo melado de bosta num pão e te obrigou a comer? Caramba, tu tá me tratando feito lixo desde de hoje de manhã.

— Como é que é? – disse Yhago, revirando os olhos, nitidamente ofendido. – Eu não estou fazendo nada. Você é que está com essa bonequinha de pano para cima e para baixo, como se fosse um brinquedo novo e não está prestando atenção em nada do que eu digo. Eu não sou papagaio para focar repetindo tudo só porque você ficou burra com a namoradinha nova.

— Ah fala sério! Vai dizer que o bonito aí é homofóbico, é? Que decepção! Esperava mais de você, cara. – dardejou Sara, fazendo cara feia para Yhago.

— Um amor quando se vai, deixa a marca da paixão... – Ao longe a barda começou uma melodia. Keddy olhou de volta para a mesa e viu que Sara e Yhago discutiam. Achou melhor ficar mais uns minutos ali, aproveitando a boa música.

— Como é que é? Eu? Homofóbico? Minha filha, alguns dos meus melhores amigos são gays. Eu sou padrinho de casamento de um homem trans. Se eu tivesse a minha carteira aqui eu mostrava as fotos para você. Eu respeito toda forma de diversidade. Vira essa sua língua esquerdista para lá!

- É um nó que não desmancha, é viver sem ter razão... Chora, coração – continuava a barda de cabelos longos e voz pungente, enchendo o salão com aquela melodia linda e triste. Numa mesa ao lado uma senhora levou as mãos ao rosto e desatou em choro.

— Se tu não és homofóbico por que é que fica olhando para mim e para Keddy como se a gente fosse uma aberração? Por que está me tratando aos pontapés? Juro que se você não fosse meu irmão de armas eu já teria deitado você na porrada. – Redarguiu Sara com rispidez. Yhago conteve o riso. Não achava mesmo que Sara fosse capaz de derrota-lo numa luta, mas do jeito que ela estava rir seria a pior estratégia.

— Olha, não sei do que você está falando – disse o rapaz baixando o tom de voz – se eu disse alguma coisa que te ofendeu eu...

— ...É o galho que se dobra sob o corte do facão, é o mar que sai dos olhos, pra banhar a solidão... – continuava a barda, ela mesma com a voz já um pouco embargada. Esse trecho da música tinha calado a voz de Yhago e Sara aproveitou para estalar os dedos em frente ao rosto do homem. Yhago pareceu sair de um transe.

— Tu fizeste isso comigo a manhã inteira. Vai dizer que não tem nada de errado? O que é? Tu estás com ciúmes de mim e da Keddy? É isso?

— Ciúmes? Eu... Não seja... Quer dizer... Eu... – Yhago virou para Sara transtornado, confuso, como se sua mente estivesse lutando para estar ali naquele momento. Ele virou para o palco pela primeira vez e viu a menina dedilhado um alaúde pouco antes do refrão da música que explodiu segundos depois, num coro com boa parte da taverna cantando junto...

— Chora, coração, chora, coração... Passarinho na gaiola, feito gente na prisão... – declamou a barda, com a face banhada em lágrimas. Não apenas ela. Boa parte da taverna. Homens e mulheres. Até mesmo Keddy chorava sem esconder o choro. Até mesmo Yhago deixava lágrimas rolarem dos seus olhos. Só Sara e mais alguns frequentadores pareciam imunes àquele estranho efeito.

Quando a música terminou a barda deixou o palco e foi para as coxias. Keddy voltou de lá se aninhando nos braços de Sara como uma criança desesperada por colo. Yhago fez força para engolir o choro e fez menção para se levantar.

— Tenho que falar com aquela barda... Nós dois temos. – disse ele ainda com a voz embargada.

— Mas por quê? Será que dá para explicar sem ter quatro pedras na mão? – perguntou Sara, aninhando Keddy ainda mais em seu colo, ouvindo a menina soluçar levemente.

— Aquela música... Ela se chama “Chora Coração”, do cantor Wando. – disse Yhago, se levantando. Sara fez uma cara de quem não estava entendendo nada. – Wando é um cantor romântico da década de oitenta lá no nosso mundo. Essa barda jamais teria como ter ouvido essa música a não ser que...

— Tivesse contato com alguém do nosso mundo! – disse Sara finalmente entendendo porque falar com aquela barda era tão importante.

Os três foram em direção ao palco, quando uma voz grito atrás deles. Cinco homens da guarda da cidade avançavam com espadas na mão e cara de poucos amigos. Lá atrás destes um comerciante se encolhia atrás de outro oficial, com seus olhos apertados faiscando maldade. Um homem que Sara jamais tinha visto, mas que conhecia dos relatos de Keddy: Zacarias, o manco. Sara sacou de sua espada. As coisas estavam realmente saindo de controle.

Yhago não teve tempo de raciocinar. Quando deu por si, Sara já tinha largado as mãos de Keddy e corria na direção dos soldados. Tanto Yhago quanto os homens ficaram espantados. Sara não parecia o tipo que se revestiria da imagem de um guerreiro bárbaro tomado pela fúria, mas lá estava ela, correndo na direção dos homens, gritando enfurecidamente.

Os homens fizeram uma linha defensiva, com as espadas apontadas para frente em várias alturas. Se Sara não parasse seria gravemente feriada ou mesmo empalada pelas lâminas longas dos homens usando armadura de couro batido. Mas a menina não desacelerou e estendeu a mão para frente. Sentiu se novo a pressão no peito e a direcionou para frente com um grito audaz. A onda de energia invisível e irresistível jogou os defensores para longe, como se fossem pinos de boliches acertados por uma bala de canhão. Alguns ainda batiam no chão quando Sara passou por onde antes havia a sua barreira. O oficial da guarda posicionou-se na frente do comerciante e sacou de sua espada, atacando Sara. Seu golpe foi defletido com facilidade pela menina que ainda mantinha a ofensiva.

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— Em nome da lei, eu ordeno que pare! – berrou o oficial ao perceber que cometera um erro em não mensurar corretamente a força da menina. Os dois ainda trocaram alguns golpes quando Sara foi agarrada por trás. Ela reconheceu imediatamente os braços de Yhago.

— Me solta grandão. Foi esse aí o bastardo que torturou e estuprou a Keddy.

— Que é isso? Oficial, exijo que essa bruxa seja colocada à ferros! Estou em busca de minha filha de criação e eu a encontro seduzida e enfeitiçada por dois monstros. Exijo reparação!

— Vai atrás da barda... e leva a Keddy como você – Era a primeira vez que Yhago se referia a Keddy pelo nome. – Eu cuido disso aqui. Por favor. Confia em mim. Só corre e jura que não vai olhar para trás.

Sara afrouxou os braços e Yhago a soltou. Ela correu para as coxias arrastando Keddy pela mão. Ao fechar subir no palco e entrar para os bastidores ela ouviu um grito esganiçado atrás dela, mas não se deu ao luxo de parar...