Os Lordes de Ferro

Capítulo 1 - Bem-vinda à Guerra


Sara desceu do ônibus na parada indicada pelo panfleto que recebera duas semanas atrás, durante a última reunião do seu grupo de dança cigana. O panfleto não dizia muito, apenas mostrava um mosaico de fotos sobrepostas de pessoas usando trajes medievais e lutando usando espadas de espuma. Também trazia além do endereço e da hora do treino as linhas de ônibus mais perto. Ela ajustou a mochila de nylon nas costas e seguiu em direção ao parque onde os treinos ocorriam. Mas a cada passo que dava mais ela se enchia de dúvidas. Já era complicado explicar as pessoas que fazia dança cigana. Muito preconceito em pleno século XXI com uma cultura tão linda como aquela. O que dizer de se vestir como um “cospobre” de cavaleiro medieval e ficar se batendo com espadinhas de espuma no meio da rua?

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Ela já pensava em dar meia volta quando duas meninas passaram por ela. Uma mais baixa, morena e de cabelos bem escuros carregava duas adagas que pareciam saídas de um cosplay nas costas. A outra usava roupas de ginástica, coberta com uma camiseta larga e branca, a pele pálida e desacostumada com o sol, já começando a ficar rosada. Ambas traziam espadas de espuma.

“Ah vá... se essas duas podem pagar o mico eu também posso” – pensou Sara enquanto rumava atrás das duas meninas, mantendo uma distância segura. À medida que chegavam mais perto do ponto de encontro já via pelo menos uma dezena de jovens de várias idades, enfiados em batas coloridas se aquecendo. Alguns duelavam, outros conversavam sobre suas vidas e um grupo mais distante tentava imitar a coreografia de alguma banda de k-pop. Mesmo sem nunca ter participado de nada assim sara sentiu-se estranhamente bem vinda.

Mesmo assim a timidez ainda gritava dentro dela para que fosse embora. Então, cedendo um pouco à seus próprios medos, ela se recostou numa árvore perto. “Vou só olhar, só olhar”, repetia para si mesma como se fosse um mantra capaz de acalmá-la. Então, nos limites do campo um carro parou. Um fiat doblô, de cor vermelha. Ela viu alguns rapazes se dirigirem para lá. Ela viu quando uma mulher vestida como uma guerreira medieval, descer do carro e cumprimentar os rapazes, dando-lhes rápidas instruções.

— Lanças no banco da frente, arming swords, espadas curtas e adagas no porta-malas. Arcos e espadas longas no banco de trás. Vamos logo, galera. Vamos aproveitar esse sol delícia para suar nossos tabardos!

Os rapazes atendiam com uma presteza e agilidade digna dos “minions” do filme “meu malvado favorito”. Um rapaz mais gordo agarrou um saco enorme de espadas, enquanto outro, bem magrinho, com bigode fino e poucos pelos no rosto, agarrou um saco com flechas de pontas bem rombudas. Um rapaz negro de cabelos black power levava as lanças enquanto a mulher terminava de fechar o carro e amarrar os cabelos num rabo de cavalo bem firme.

Logo todos estavam reunidos num grande círculo. Mais longe do que Sara gostaria que estivessem. Num canto reuniram-se os participantes que pareciam mais graduados, ou que pareciam levar aquilo tudo mais à sério. Um rapaz loiro, de cabelos encaracolados, presos num coque samurai frouxo estava lá, vestindo uma linda bata azul escura com a pintura de um unicórnio branco na lateral esquerda da sua túnica. Ele usava uma faixa vermelha simples, que emprestava a seus cabelos loiros uma aparência menos descuidada e mais épica. Usava botas de couro longas, provavelmente feitas sob encomenda e também trazia à cintura uma réplica da famosa glandring, a espada de Gandalf em Senhor dos Anéis.

Ao seu lado estavam outros guerreiros e a mulher que trouxera o equipamento mais cedo, com uma roupa que faria inveja a qualquer guerreiro do filme World of Warcraft. Mas ela não carregava uma espada e sim uma enorme marreta, que parecia já ter visto uma boa cota de ação.

— Saudações nobres guerreiros! Sejam todos bem vindos! Essa é a nossa 8ª reunião deste anno domini. Antes de partir para o aquecimento, temos alguns avisos. Como vocês sabem vamos montar um stand na anime fest do colégio Compact. Preciso de voluntários. Falem com o Hobbit ou com o Poke. A nossa festa de aniversário está chegando. Se você não adquiriu seu convite, o faça logo! Vamos para o aquecimento. Depois disso os novatos que estão vindo aqui pela primeira vez podem procurar Annie. Annie, mostre-se para os novatos. – da fileira mais à direita surgiu uma menina de cabelos bem coloridos, vestindo uma bata muito parecida a dos outros participantes, mas na cor amarela, cheia de insígnias costuradas. Ela trazia nas mãos um tridente muito bonito. Ela acenou, mostrando um pouco de sua habilidade, girando o tridente numa firula bem legal e depois voltou para seu lugar no círculo. – duas voltas em torno do campo e quando chegarmos aqui a Gabi dará o alongamento. Lordes...

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— De ferro! – responderam todos num coro desordenado, começando a caminhar em volta dos limites do campo.

Sara começou a acompanhar todos com os olhos, especialmente aquele lindo rapaz loiro que parecia estar dando as ordens.

— Oi, quer treinar com a gente? – a pergunta arrancou Sara do seu quase transe e ela se assustou um pouco. Era aquela menina de cabelos escuros que tinha visto mais cedo, carregando as duas adagas de katarina. – Oi, eu sou a Titânia.

— Eu não sei... – respondeu Sara, desviando os olhos. – quer dizer o treino de vocês já começou e tal...

— Que nada menina! – respondeu Titânia com um sorriso e entusiasmo que demoliu todos os medos de Sara. – Vamos lá! Sempre tem um pessoal que chega atrasado mesmo e todo mundo é bem vindo! Palavras do Rei! Vem que eu te apresento todo mundo.

Logo Sara foi praticamente arrastada para o grupo dos novatos, onde uma dúzia de novatos tomavam seu primeiro contato com o “esporte”.

— Somos membros dos “Lordes de ferro”. – falou Annie com toda pompa e circunstância. Pena que todas essas firulas chegaram sem valor algum aos ouvidos atentos de Sara, que deixava claro pela expressão do seu rosto que estava entendendo pouco ou quase nada. Annie era uma típica menina rebelde: magra como um palito, não muito alta e com a pele branca e rosada. Os cabelos eram um tufo rebelde vermelho, verde e azul, crescendo em ondas sobre a cabeça. Não era exatamente feia, mas também estava longe de ser bonita. Na recém-criada escala Sara Dias de “gatinhas pegáveis” ela media pouco mais de três pontos. – Nós fazemos parte da associação brasiliense de Swordplay e da confederação Centro-Oeste de Swordplay.

Para cada um dos novatos foi entregue o mesmo equipamento: uma bata que imitava os trajes dos antigos cavaleiros medievais. Na cintura trazia um cinto de fivela simples e de couro, bem largo, com uma espada de espuma coberta com fita silver tape numa bainha de corino costurado. As regras foram passadas num borrão e ela aprendeu o básico da luta de espadas antes de ser mandada para a sua primeira batalha, junto com o batalhão dos novatos.

O treino básico com a Annie foi muito divertido. Ela fez todos os novatos (dez num total) se sentirem muito bem recebidos e passou uma boa hora e meia dando os fundamentos de como se lutava com aquelas coisas de espuma. Sara achou interessante que houvesse alguma coisa histórica por trás daquilo tudo. Não era só pegar uma espada de espuma e sair batendo nos outros. Tinha toda uma coisa de técnica por trás, com nomes de posturas e golpes.

Os novatos foram finalmente incorporados ao treino. A missão era simples: conquistar uma estrutura que se parecia com um castelo medieval. Sara e seu grupo de novatos, sob o comando da Annie foi mandado para dar apoio ao flanco esquerdo. Sara olhou em volta e percebeu que as pessoas estavam se fechando em pequenos grupos e como de costume, ela estava sobrando. Baixou a cabeça resignada e seguiu a caminhada, trotando de leve. Não era a primeira vez que era deixada para escanteio e não seria a última.

— Oi... se importa se eu andar do seu lado? Sou meio nova aqui e estou me sentindo meio deslocada.

Sara olhou para o lado e viu a menina de traços latinos logo atrás dela. Assim como ela, a menina também vestia o tabardo dos lordes de ferro, só que todo preto, mas ao invés de trazer uma espada na cintura ela trazia uma arming sword e um escudo redondo. Ela era linda: 1,60m de altura, cabelos pretos lisinhos cortados na altura dos ombros deixando uma franjinha na testa, olhos castanhos escuros e lábios vermelhos como os da Branca de Neve. O coração de Sara palpitou e sua boca ficou seca. Era a menina mais gatinha que via desde muito tempo. Na recém-criada escala Sara Dias de “gatinhas pegáveis” ela chegava facilmente a nove... quem sabe até um dez.

— Claro – apressou-se Sara, abrindo o seu melhor sorriso e estendendo a mão – Eu sou Sara Dias, mas pode me chamar de Sara.

— Prazer em conhecer você, Sara. Eu sou Rivca Rocha, mas meus amigos me chamam de Caska.

— Caska? – perguntou Sara, ajustando o passo para ficar ao lado de Rivca.

— É uma longa história. Tem a ver com uma série de TV muito legal. Eu gosto muito e ainda bem o apelido acabou pegando. Hei, eu já vi você antes, na escola. Você não é a menina que fez uma apresentação de dança cigana no começo do ano?

— É, acho que sou eu.... – respondeu Sara, finalmente entendendo o que a expressão “sua reputação a precede” realmente significava.

— Cara, se for, é mesmo um prazer conhecer você! Já estava na hora de alguém colocar um pouco de arte naquela escola! Você e seu grupo dançam muito bem. Você deve ser muito ágil.

Sara abriu outro sorriso. Pelo menos dessa vez a sua reputação não a tinha colocado numa situação desagradável.

Durante uma das primeiras investidas Sara se viu separada de seus companheiros e foi cercada pelo time adversário. Um gorducho que usava um tabardo preto e um escudo redondo enorme investiu contra ela numa manobra de carga. Sara tentou esquivar, mas tropeçou numa sinuosidade do campo de batalha, levando a carga com escudo bem na cara. O golpe forte, planejado para romper a linha de defesa de todo um time arremessou a menina sobre um pequeno jardim arbustos ali do lado. A menina rolou para o lado, evitando inconscientemente bater a cabeça no chão.

— Puxa, me desculpe, de verdade! – dizia o gorducho que tinha jogado fora o escudo e o a espada e agora estava quase em cima de Sara verificando se ela estava bem. O rosto dele estava vermelho, seja pelo esforço ou pela preocupação. Só que ele ficou mais aliviado quando Sara levantou, limpando a poeira do tabardo.

— Está tudo bem, foi um acidente. Eu não me machuquei. Mas acho que eu acabei morrendo por sair da área de combate. – disse Sara exibindo um sorriso apaziguador. – pode voltar para a luta, guerreiro. O cemitério fica onde?

— A zona de respawn. Ali, naquelas árvores. Basta contar até dez e voltar – o gorducho assentiu, mas antes de sair fez questão de inspecionar a cabeça de Sara... duas vezes. Não havia qualquer marca, arranhado ou mesmo vermelhidão. Nada. Não fosse por um pouco de sujeira, nunca diria que a menina mergulhou num jardim de arbustos.

— Que bom que você está bem. Prometo maneirar na força da próxima vez – disse o gorducho estendendo a mão – Sou o Sérgio, mas pode me chamar de Bardo.

— Sara – disse a menina apertando a mão de Sérgio com firmeza. – Mas “bardo”? Você não aprece do tipo que toca harpas e faz poesia.

— É uma longa história. Te conto outro dia. Deixa eu ir.

O resto do treino passara num borrão. O treino foi muito divertido mesmo. Ela se sentia boba por ter pensando em ir embora. Cara, quem deixaria uma oportunidade dessas escapar pelas mãos? Ainda bem que a Titânia a convidou para a entrar! Mas quando viu as horas percebeu que tinha se metido em confusão: de novo. Prometera estar em casa as 18:00 e já passava das 19:30. Horário de verão. “Putz, a mamãe vai comer meu fígado com cebolas!” pensou a menina apressando o passo depois de devolver a espada e o tabardo.

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Ela se apressou para cruzar o parque em direção à sua parada de ônibus quando ouviu alguém gritando atrás dela. Era a menina gatinha que ela tinha conhecido no treino, Caska.

— Puxa, quando você quer você corre rápido hein? Já pensou em entrar para a equipe dos batedores? – disse a menina arquejando, apoiando-se sobre os joelhos, tentando retomar o fôlego.

— Desculpe... é que surgiu uma coisa e eu tenho que ir para casa o mais rápido possível. Emergência familiar. – disse Sara tentando ser educada com a escudeira. – espero que possa entender.

— Claro, eu entendo. Quando o meu pai me chama pelo nome completo é quase uma crise mundial. Eu só queria te dar o meu telefone. Quem sabe a gente pode marcar uma sessão de netflix na minha casa. Eu faço um chocolate quente com marshmallow que é uma delícia debaixo do endredon. – disse Caska entendendo a mão e entregando o papel dobrado a Sara. Quando as mãos das duas se tocaram Rivca abriu um meio sorriso. Sara pegou o número e leu rapidamente. Depois forçou um sorriso e colocou o papel no bolso.

— Desculpe, mas tenho que ir mesmo. Podemos conversar outra hora? – perguntou Sara praticamente deixando Rivca para trás. Logo ela estava a mais de uma centena de metros de distância. Titânia surgiu ofegando logo depois.

- Menina, o que tu fez para ela correr tanto assim? – perguntou Titânia.

— Ela disse alguma coisa sobre emergência familiar. – respondeu Rivca, olhando o relógio. – E olha só, se eu não for para casa agora, quem vai estar numa sou eu. Você viu o meu irmão?

— Ah ele saiu com Miguel e outro graduados. Já deve estar a caminho da sua casa. Quer carona? Estou de moto hoje.

— Claro.